Presença de amianto e urânio ameaça construção do Alpetunnel entre França e Itália
2006-01-04
O Mont d Ambin ajuda a delimitar a fronteira da Itália com a França nos Alpes. Mas, ultimamente, sua existência não se resume a isto. A montanha virou ponto de discórdia entre os moradores da cidade italiana de Venaus, no noroeste do país, e as autoridades. O motivo do conflito é a escavação do Alpetunnel, um túnel de 53 quilômetros de extensão por onde passará uma ferrovia de alta velocidade ligando Turim, na Itália, a Lion, na França.
A população local teme que a exploração do monte acarrete perigosas conseqüências ambientais. Geólogos afirmam que o Mont d Ambin tem em seu interior amianto e urânio, substâncias cancerígenas. Os 15 milhões de metros cúbicos de detritos que serão extraídos durante a obra — o equivalente a seis pirâmides de Quéops, no Egito — serão depositados no Vale de Susa, a menos de 30 quilômetros de Venaus, ameaçando a saúde de 60 mil pessoas.
EIA-Rima incompleto
O governo dos dois países e a União Européia defendem que a ferrovia — parte do corredor de alta velocidade Lisboa-Kiev — é estratégica para o desenvolvimento da Itália. Só ela seria capaz de atender ao crescimento futuro do fluxo de cargas na região. E o ramal, segundo eles, ainda pode trazer benefício ecológico, pois reduzirá pela metade o tempo de viagem entre Turim e Lion — que hoje dura mais de quatro horas — desestimulando o transporte rodoviário.
Previstas para durar cerca de 15 anos, as escavações têm um relatório de impacto ambiental incompleto, feito com base no projeto preliminar da ferrovia. Não houve um estudo geológico do Mont D’Ambin. O levantamento deveria ser feito somente na atual fase do projeto, mas uma série de violentos protestos impediu a abertura das primeiras galerias em 30 de novembro. Há duas semanas, um choque entre a polícia e manifestantes deixou mais de 30 feridos.
Na França, outro tom
Do outro lado da montanha, em Saint Jean de Maurienne, na França, as perfurações estão em andamento e têm apoio inclusive dos ambientalistas. O Vale de Susa já dispõe de um túnel ferroviário transalpino, o Fréjus, e ele está longe da saturação. Pelo local passam cerca de 9 milhões de toneladas por ano, enquanto a capacidade de transporte em seus trilhos é de 20 milhões de toneladas. A maior parte das cargas movimentadas entre Itália e França naquele vale — cerca de 38 milhões de toneladas/ano — ainda viaja sobre pneus, tendência prejudicial ao meio ambiente que tem tudo para se agravar.
Com a expansão econômica e territorial da União Européia, a estimativa é que o total transportado na região suba para 60 milhões de toneladas em 2015, um tráfego que vai provocar a emissão de 465 milhões de toneladas de dióxido de carbono por ano. O Alpetunnel foi a solução apresentada pelo governo italiano e União Européia para amenizar esse quadro. A nova ferrovia terá condições de movimentar 125 milhões de toneladas por ano. Seis vezes mais que o Fréjus.
O ecologista Gerard Leras, líder do Partido Verde na região de Rhone-Alpes —que também será atravessada pela nova ferrovia — conta que os moradores de Saint Jean de Maurienne não suportam mais o tráfego diário de 6 mil caminhões. “Uma ferrovia [Fréjus] com capacidade para 20 milhões de toneladas não vai longe. O que o meio ambiente e a saúde das pessoas precisam é de uma infra-estrutura competitiva, eficaz e moderna que tire os caminhões das estradas”, diz Leras.
Amianto e urânio
O engenheiro especialista em escavações e geologia Claudio Scavia, do Politécnico de Turim, diz que a presença de amianto e urânio no Vale de Susa é garantida. Ele é membro de uma comissão que reúne representantes do governo e da comunidade atingida, e teve acesso a um estudo da Universidade de Siena, encomendado pela companhia ferroviária estatal italiana, que comprova a existência do amianto na região. Já o urânio chegou a ser motivo de cobiça de mineradoras no passado.
Scavia teme que as obras comecem sem a elaboração de um estudo geólogico do Mont d Ambin. “É clara a existência de amianto na superfície. O problema é saber se existe também em grandes profundidades. Para isso, é preciso fazer um modelo geológico da montanha, o que não está previsto”, explica.
O projeto também falha, segundo o especialista, ao não estabelecer a destinação do material retirado da montanha. “É preciso analisá-lo e transportá-lo para depósitos em caminhões blindados, mas não vemos nenhuma preocupação do governo nesse sentido”.
E isso não é tudo. Existe o temor de que as escavações drenem os lençóis
freáticos que alimenta aquedutos responsáveis pelo abastecimento de boa parte
do Vale de Susa. “O estudo de impacto ambiental precisa ser reaberto. A vida e o meio ambiente estão em perigo”, alerta Scavia.
Linhas ociosas
A necessidade de transferir as cargas transportadas sobre pneus para os trens é o único consenso no debate a respeito da ferrovia Turim-Lion. Para isso, ambientalistas italianos e a população de Venaus propõem que o governo aumente a taxação do transporte rodoviário e diminua o tempo de viagem entre Turim e Lion modernizando os seis ramais já existentes nos Alpes, como o Fréjus, que seriam capazes de atender à demanda futura e absorver as cargas dos caminhões. O especialista em transportes Andrea Debernardi, da WWF italiana, elaborou um estudo que aponta a estagnação do transporte ferroviário transalpino de cargas
nos últimos 20 anos, período em que houve crescimento anual de apenas 1,6% no
número de toneladas movimentadas.
O serviço de passageiros entre Turim e Lion foi suspenso em dezembro de 2003 devido à falta de viajantes. “A nova ferrovia não tem razão de existir. Os seis ramais ferroviários em operação têm potencial de transporte de mais de 130 milhões de toneladas/ano, mas o tráfego ferroviário nestes trechos não passa hoje de 45 milhões de toneladas/ano. A taxa de utilização da ferrovia Ventimiglia, por exemplo, é de somente 8%. O certo seria investir na modernização das linhas atuais”, defende o especialista.
Argumento endossado pela senadora Anna Donati, do Partido Verde. Ela menciona um estudo das estatais ferroviárias italiana (RFI) e francesa (SNCF), feito em 2000, que sugere investimentos tecnológicos e em infra-estrutura capazes de adequar as ferrovias existentes para a demanda de transporte até 2020. O custo das melhorias seria de 1 bilhão de euros. A nova obra vai custar 15 bilhões.
“A modernização da rede seria capaz de atender à demanda de décadas, porque o estudo considera estimativas de crescimento otimistas demais, enquanto o movimento real caiu 9% no ano passado. Infelizmente, porém, o governo continua a defender a ferrovia e ainda incentiva o transporte sobre pneus, desenvolvendo projetos de incremento das auto-estradas como a duplicação do túnel no Mont Blanc, e contrariando o protocolo de transportes da Convenção dos Alpes”, critica a senadora.
A polêmica já chegou ao gabinete do presidente da Itália, Carlo Azeglio Ciampi, que não abre mão do Alpetunnel. Durante as celebrações do Dia Internacional da Montanha, em 30 de novembro, Ciampi disse que a Itália não pode isolar-se das redes ferroviárias de alta velocidade européias em nome da salvaguarda de suas montanhas.
Já a União Européia — financiadora de 20% do projeto — anunciou que vai montar
uma comissão de especialistas independentes para realizar um novo relatório de impacto ambiental e propor soluções caso a presença de amianto e urânio no Mont dAmbin seja elevada. (Rodrigo Werneck, O Eco, 02/01)