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2006-01-04
Os opositores do projeto de transposição das águas do Rio São Francisco encerraram o ano com mais uma vitória: o Ministério da Integração Nacional suspendeu a licitação para execução da primeira etapa das obras.

A decisão, da semana passada, foi motivada pelo fato de o Supremo Tribunal Federal ainda não ter se pronunciado sobre as liminares da Justiça Federal da Bahia que suspenderam, em outubro, todos os atos relacionados ao projeto. Com o STF em recesso, o mais provável é que as ações só sejam apreciadas em fevereiro.

Pelo cronograma original, deveriam ter sido abertas no dia 22/12 as propostas apresentadas na licitação para as obras civis, que dariam a largada na primeira etapa do projeto.

O ministro interino da Integração Nacional, Pedro Brito, disse que não houve recuo do governo. Segundo ele, Lula está disposto a levar a obra à frente.

“O que houve foi um atendimento às determinações judiciais que proíbem o prosseguimento do processo licitatório até que o Supremo se pronuncie”, disse Brito, coordenador-geral do projeto, que já tinha admitido em Brasília o atraso no cronograma de seis meses.

“Não deixa de ser uma vitória, pois o governo teve que reconhecer que nós estamos num estado democrático de direito e que existem regras a serem seguidas. Por mais legítimo que seja, o governo não está acima das leis, nem pode descumpri-las por decisão própria”, comemorou a promotora da Bahia Luciana Khoury, que atua contra a execução do projeto.

Ainda está em vigência a liminar concedida no dia 5 de outubro pela juíza Cynthia Lopes, da 14ª Vara da Justiça Federal da Bahia, suspendendo a licença prévia emitida pelo Ibama em abril, autorizando as obras de desvio da água do rio.

A medida proibiu inclusive a concessão de novas autorizações necessárias ao início da obra. A juíza acatou a argumentação dos Ministérios Públicos Estadual e Federal, que entraram com a ação em conjunto com o Fórum Permanente em Defesa do São Francisco, que apontou diversas irregularidades no projeto.

Outros procedimentos também foram suspensos
Segundo Brito, além de suspender a licitação, o governou estancou todos os outros procedimentos que antecederiam ao início da obra, como os que estavam sendo realizados por tropas do Exército a partir de Cabrobó, em Pernambuco, e a liberação de recursos para as desapropriações de áreas ao longo do canal de transposição.

A promotora disse que, apesar do anúncio do governo, vai pedir ao Ministério Público Federal de Pernambuco que investigue o real motivo da permanência do Exército não só em Cabrobó, início da transposição, como na área de Itaparica (PE).

Segundo Brito, o Exército está trabalhando apenas na construção de uma estrada vicinal e no asfaltamento de outra que liga a Ilha de Assunção a Cabrobó, facilitando o escoamento da produção agrícola dos índios da tribo trukás, habitantes da ilha.

Liminar impede uso de dinheiro na transposição
O governo federal já tem disponibilidade imediata de R$ 122 milhões para as obras da transposição do rio São Francisco, mas está impedido de gastar o dinheiro por causa de liminares na Justiça. O Ministério da Integração Nacional repassou R$ 100 milhões ao batalhão de engenharia do Exército para o início das obras em Cabrobó, em Pernambuco. O dinheiro está reservado para as primeiras obras do projeto que incluem três quilômetros de um canal e barragens na região.

Outros R$ 21,8 milhões foram liberados no fim da semana passada para reassentar famílias residentes em áreas afetadas pelo projeto. O recurso saiu junto com a liberação de R$ 2,12 bilhões em créditos extraordinários do orçamento autorizados pelo Executivo nos últimos dias do ano de 2005.

Vazão reduzida faz mar avançar rio adentro
Enquanto o governo briga pelo direito de iniciar as obras de transposição, o Rio São Francisco sofre com a redução de sua vazão, o assoreamento e a erosão das margens.

Antes da construção das barragens, principalmente a de Sobradinho, o Velho Chico era tão caudaloso que jogava água doce mais de 16 quilômetros adentro no Oceano Atlântico. Atualmente, verifica-se um processo inverso: como a vazão diminuiu, o mar avançou rio adentro.

“Era possível colher água doce em pleno mar. Agora, chegamos ao extremo de pescar espécies próprias do alto-mar como a pilombeta, a até 150 quilômetros da foz, porque o rio não tem força para conter o avanço do mar”, diz o governador de Sergipe, João Alves.

O fenômeno já levou à destruição da Ilha do Cabeço, que ficava na foz do rio e foi engolida pelo mar.

O povoado de 400 famílias de pescadores teve de ser removido e o farol construído na rua principal da ilha hoje está dentro do mar, resistindo como testemunha das agressões ao rio. A despeito de sua base de concreto, o farol balança ao sabor da correnteza.

Para o professor de geologia da Universidade Federal do Sergipe Luiz Carlos Pontes, membro do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco, as barragens provocaram os impactos ambientais observados desde que o São Francisco começou a perder volume.

Isso, diz ele, deve-se ao fato de as usinas hidrelétricas terem sido construídas sem preocupações ambientais.

A degradação piora com os resíduos dos esgotos que as cidades lançam diretamente no leito do rio e de seus afluentes.

Segundo Pontes, dos 504 municípios que compõem a bacia, apenas 5% têm tratamento de esgoto. As carvoarias também desmatam para alimentar siderúrgicas de Minas.

Drama dos ribeirinhos que precisam se mudar
Quem mais sofre com os problemas do Rio São Francisco são os ribeirinhos. A pescadora Beatriz dos Santos, 53 anos, não esquece a madrugada em que precisou abandonar às pressas a sua casa invadida pelo mar.

Atualmente, ela e outras 100 famílias vivem num lugarejo do município de Brejo Grande, um dos mais baixos índices de desenvolvimento humano (IDH) de Sergipe.

Ainda assim, Beatriz agradece a ajuda dos governos estadual e municipal, que desapropriaram terras para os desabrigados do mar.

“Foi muito triste, perdemos tudo, mas agradeço pela vida”, diz ela.

Os demais pescadores foram remanejados para outros municípios da região. Mas, segundo o professor Luiz Carlos Pontes, da Universidade Federal de Sergipe, a Companhia Hidrelétrica do Rio São Francisco (Chesf), responsável direta pelo drama vivido pelos pescadores, nunca se importou.

Há um processo pleiteando indenização às famílias, mas o governo sempre recorre.

“Nossa vida nunca mais foi a mesma. Vivíamos próximos do mar e do rio, tínhamos uma vida tranqüila, com pescarias fartas. Cansei de virar a madrugada tratando de peixe. As redes vinham cheias. Hoje, feliz daquele que consegue alguma coisa pra vender”, sente a pescadora Beatriz.

O governador de Sergipe, João Alves, também questiona o uso das Forças Armadas nas obras de infra-estrutura.

Para ele, o fato de o Exército continuar fazendo medições topográficas a despeito de a Justiça ter proibido o início das obras, é um exemplo claro de que o governo Lula se considera acima do bem e do mal, sentindo-se no direito de confrontar a Justiça:

“Os militares que estão lá estão constrangidos, mas devem obediência à autoridade do presidente, que age de forma autoritária, absurda”.

Para o governador da Bahia, Paulo Souto, o valor do investimento é alto e não vai cumprir os objetivos de tirar o semi-árido nordestino do atraso e garantir água para a região.

“Esse projeto não tem a menor viabilidade. Os organismos multilaterais de crédito sempre financiaram projetos relacionados a recursos hídricos. Por que não esse? É preciso discutir isso”. (O Globo, 03/01 e 31/12)

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