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2006-01-03
Ainda é cedo para fazer um balanço histórico dos complexos movimentos que estamos vivenciando na cena internacional. Mas seus traços mais marcantes já começam a ser compreendidos (ou pelo menos detectados). Um desses componentes fascinantes foi percebido pelos sociólogos Anthony Giddens e Ulrich Beck, que o batizaram de “modernidade reflexiva”.

Para entender esse conceito é importante notar no mundo atual, ou em parte significativa do mesmo, a confluência histórica de vários fatores - o número cada vez maior de pessoas escolarizadas, a velocidade e presença dos meios de comunicação, o estabelecimento de múltiplos espaços de interação e debate (hoje potencializados pela internet), a institucionalização do trabalho científico e intelectual (com produção crescente de especialistas dedicados a estudar e opinar sobre diferentes assuntos), e por aí vai. Tudo isso vem produzindo sociedades que cada vez mais refletem e discutem sobre o seu presente e futuro.

Apesar das manipulações e alienações que certamente estão presentes nas sociedades modernas – que têm na “publicidade” uma de suas maiores indústrias – pode-se afirmar que o seu nível de reflexão coletiva, ao menos em termos quantitativos, é bem superior ao das sociedades tradicionais, onde os grandes temas políticos eram privilégio de uma pequena elite. As sociedades modernas em processo de globalização conhecem cada vez mais seus problemas (especialmente aqueles que não conseguem resolver...).

De toda forma, o exercício da opinião ativa possui uma grande visibilidade no mundo da globalização. O que não significa, como indiquei acima, que sua eficácia política seja automática. Vivenciamos um fenômeno histórico possivelmente inédito no ano de 2003, quando a opinião pública mundial, do Oriente ao Ocidente, debateu durante meses, tendo a ONU como epicentro, as razões e justificativas dos Estados Unidos para fazer a guerra com o Iraque. É verdade que a decisão final contrariou o sentimento majoritário, mas não se pode negar que a reflexão coletiva esteve presente onde antes só existiam declarações de cima para baixo e razões de estado.

China e América Latina
Estes pensamentos surgem em minha mente quando recordo a riqueza dos debates que presenciei em meados de dezembro, durante a reunião da Organização Mundial do Comércio em Hong Kong. Os encontros periódicos das grandes convenções diplomáticas e organizações internacionais estão se tornando momentos quentes da modernidade reflexiva, lugares onde aparecem com clareza os grandes dilemas da globalização, seja no plano ecológico, econômico ou cultural.

A mídia internacional, infelizmente, ainda se concentra em demasia nos momentos mais “corporalmente” conflituosos desses eventos, digamos assim. A verdade é que as manifestações de rua mais próximas de uma atitude violenta, que não deixam de ser também uma forma de “interação” e “diálogo”, envolvem uma minoria ínfima dos atores ali presentes. Mas elas servem para obscurecer, aos olhos da opinião pública global, toda a riqueza das discussões e iniciativas pacíficas que dominam o cenário.

Estive participando, por exemplo, de um seminário sobre as relações entre a China e a América do Sul, organizado pela Fundação Heinrich Böll, ligada ao Partido Verde alemão. Nesse seminário tive a oportunidade de apresentar e debater as conclusões de um relatório produzido pelo Projeto Cone Sul Sustentável, ao qual estou ligado desde 1996, sob a coordenação da especialista chilena Sara Larrain. O relatório, intitulado “Trade and Investment Relationships between China and Latin América: Obstacles and Challenges to Sustainability”, apresentou alguns dados e informações muito preocupantes sobre a parte que nos toca em um dos problemas ambientais mais palpitantes do século XXI: como alimentar a fome por recursos naturais de uma China que cresce no ritmo de 9% ao ano e eleva cada vez mais o patamar de consumo de sua gigantesca população?

Os movimentos econômicos desse gigante planetário, segundo o relatório, podem provocar uma verdadeira tragédia ambiental na América do Sul, com o beneplácito de elites locais que não conseguem enxergar além do lucro monetário de curto prazo. Esse risco pode ser detectado nas tendências recentes, que revelam uma China que se aproxima da região em busca, basicamente, de recursos da natureza, ameaçando reforçar os aspectos mais devastadores da nossa história de países fornecedores de matérias-primas.

As exportações da América Latina para a China ainda são relativamente pequenas, constituindo cerca de 4% do total importando por aquele país. Mas vêm crescendo em ritmo acelerado, tendo aumentado 14 vezes em pouco mais de uma década. Esse comércio é dominado por cinco países (Brasil, Chile, Argentina, México e Peru), sendo que o Brasil responde por cerca de 40% das exportações regionais.

O mais preocupante, porém, é analisar qualitativamente a composição da demanda chinesa: farinha de peixe, soja, uvas, açúcar, cobre, níquel, ferro, couro, zinco, celulose, madeira etc. Ou seja, produtos com relativamente pouco processamento e valor agregado, mas cuja produção gera consideráveis impactos no ambiente local.

Mais ainda, além da concentração em recursos naturais, a China não diversifica significativamente suas importações da América do Sul. Ela adota, ao contrário, através de uma estratégia consciente ou não, o princípio de “um país, um ou dois recursos naturais”. Assim, em quantidades realmente significativas, da Argentina se importa apenas soja; do Peru, farinha de peixe, além de estanho e cobre; do Chile, cobre e uvas, além de farinha de peixe e celulose.

No caso do Brasil, com sua economia mais complexa, a composição das exportações para a China é bastante reveladora. A soja e o ferro dominam o cenário, sendo acompanhados por celulose, couro e, para orgulho de nossa indústria, uma fração muito pequena de peças de automóvel, que corresponde a menos de 1% do total importando pela China.

É até desnecessário dizer que a composição das exportações da China para a América do Sul é bastante diferente, centrando-se em produtos manufaturados vendidos a baixo preço. Nossa região, assim como grande parte do planeta, está sendo inundada por produtos chineses, especialmente roupas e tecidos, sapatos, acessórios elétricos, acessórios de viagem etc. Uma gama de artigos que, justamente, podem ser produzidos por empresas de pequeno e médio porte, que possuem boa capacidade de geração de empregos e contribuem para o desenvolvimento em escala local.

Durante o debate, o professor Yin Xingmin, economista de Xangai, argumentou que não é necessário preocupar-se com roupas, sapatos e tecidos, pois no futuro a China quer competir apenas em produtos de alta tecnologia. Pode ser. Mas no momento atual, em toda a América do Sul, empregos locais estão sendo perdidos devido à competição dos baratos bens de consumo chineses.

Impactos ambientais
Não se trata, obviamente, de condenar ou estigmatizar a China. Os impactos ambientais da expansão da soja sobre o Cerrado e a Floresta Amazônica, por exemplo, relacionam-se mais diretamente com o consumo europeu, que responde por mais de 60% do total (contra cerca de 20% daquele país asiático). A China está apenas re-potencializando um padrão exploratório que é muito mais antigo. É preciso observar, no entanto, as tendências históricas de longa duração.

Pelo seu peso econômico e demográfico, a China não é um ator como os outros, um mero país importador. É uma força capaz de induzir modificações cruciais no espaço sócio-geográfico da América do Sul e, especialmente, do Brasil. Será uma grande tragédia se a presença futura da China servir para reforçar, agora em um novo patamar, alguns dos aspectos mais perversos e predatórios de nossa história econômico-ambiental, como a devastação desenfreada de florestas nativas para abrir espaço ao avanço das monoculturas.

Se o modelo chinês de crescimento continuar no ritmo atual, incorporando ao mundo do consumismo moderno (não do comunismo!) a gigantesca parcela de sua população que continua vivendo uma vida frugal e campestre, que conseqüências isso trará para o futuro do planeta? E mais ainda para a nossa região que, como tanto se fala, apesar dos argumentos serem bastante questionáveis do ponto de vista ecológico, ainda possui fronteiras abertas para a exploração de solos e recursos não-renováveis?

Essas são questões que precisamos equacionar com cada vez maior seriedade e profundidade, apesar de muitos pretenderem ignorar os dilemas que o crescimento da China colocam para um planeta finito. No caso do Brasil, podemos começar a pensar, diante do que já ocorre, sobre os possíveis impactos ambientais do crescimento exponencial das exportações de recursos agrícolas e minerais para a China.

Apenas como exercício, vale lembrar o cálculo realizado recentemente pelo engenheiro Joaquim de Carvalho, segundo o qual se decidirmos exportar etanol suficiente para ser adicionado em 20% ao consumo chinês de gasolina – apenas para começar - necessitaríamos de plantações de cana de açúcar da ordem dos 24 milhões de hectares! Simplesmente o tamanho do estado de São Paulo...

Como tais plantações (para não falar das demais que viriam no futuro, para atender ao consumo ainda maior da China ou de outras regiões do planeta) não existem no vazio, mas sim em espaços territoriais concretos, que conseqüências tal dinâmica poderá trazer para o que ainda resta dos biomas brasileiros? Será que conseguimos realmente imaginar? É bom começar a fazê-lo...
(José Augusto Pádua / OECO, 02.01.2006 )

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