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2006-01-02
Apesar de não figurar entre os países que devem reduzir emissões segundo o Protocolo de Quioto, em vigor desde fevereiro de 2005, o Brasil está entre o dez que mais emitem gás carbônico na atmosfera. Do volume total de lançamentos desse gás, causador do efeito estufa, 74% advêm do desmatamento, outros 23% têm origem na queima de combustíveis fósseis e 3% são contribuições industriais.

A expansão da fronteira agrícola rumo ao norte do país, devido ao aumento das plantações de soja e ao crescimento das atividades pecuárias, já faz com que 14% da Amazônia esteja degradada, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Ainda de acordo com o órgão, entre 2001 e 2002 o Brasil perdeu 23.266 km2 de floresta; no ano seguinte, foram 24.597 km2 e, em 2003/2004, o Instituto registrou 27.200 km2 a menos de mata. Neste ano, a divulgação do desmatamento de 2004/2005 foi um alívio para o governo e a sociedade: houve uma redução de 31% na região da Amazônia Legal, segundo dados divulgados pelo Inpe no início de dezembro. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, atribui o avanço ao Plano de Prevenção e Controle, criado no fim de 2004. Mas ela também ressalta que as ações devem ser reforçadas, para que esse ganho possa ser perene.

Outro fator que contribui para compor esse quadro, além das queimadas, é o modo de vida que levamos, de consumo excessivo, que exige uma produção cada vez maior. Em todo o mundo, as emissões de gases de efeito estufa aumentam ano a ano, acompanhando o incessante crescimento industrial e tecnológico: durante a década de 90, elas cresceram 6% e, apenas nos Estados Unidos, 13%. "No instante em que cada um dos um bilhão de chineses quiser uma televisão, um carro e um celular, o planeta não se sustenta. Todo mundo vai para os ares", exemplifica Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física (IF) da Universidade de São Paulo.

Para Américo Kerr, especialista em Física Ambiental, também professor do IF, o sistema de transportes individual baseado no automóvel é um grande contribuinte para o superaquecimento. "A solução possível para a redução de gases de efeito estufa é também a mais racional: a mesma que irá reduzir a poluição em geral e proporcionar um deslocamento mais rápido do cidadão", conclui. Nesse sentido, comprar um carro não significa apenas começar a gastar combustível fóssil para circular: o próprio veículo é feito com material plástico, borracha e possui componentes químicos perigosos, como a bateria.

O principal resultado desse processo é o aquecimento global: em um século, a temperatura média do planeta sofreu aumento de aproximadamente 1 grau Celsius. Se antes os cientistas faziam previsões a longo prazo sobre as possíveis conseqüências do aumento da temperatura, elas já se fazem notar. Nunca houve tantos furacões nos Estados Unidos e na América Central como em 2005, por exemplo. Nem o Brasil foi poupado, com uma série de intempéries na região Sul.

As projeções do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), órgão criado pela Organização das Nações Unidas (ONU) para pesquisar as mudanças climáticas, indicam que essa média poderá se elevar ainda mais até o fim deste século, de 1 a 4 graus. Pode parecer exagero, mas a elevação de cada grau centígrado tem influência sobre o equilíbrio do planeta, agindo sobre padrões de vento, chuva e comportamento dos oceanos. Assim, é possível que, nos próximos anos, furacões como o Katrina, que destruiu Nova Orleans, nos Estados Unidos, se tornem mais freqüentes. Outros acontecimentos possíveis são a extinção de algumas espécies, pela mudança dos ecossistemas, bem como a falta d´água, devido à desertificação de algumas regiões, e a elevação do nível do mar.

Frente a esse cenário, embora exista consenso em todos os setores da sociedade sobre a necessidade urgente de se agir sobre o lançamento de gases de efeito estufa na atmosfera, ainda não se chegou à conclusão de quem deve ceder para que isso de fato ocorra. A consciência ambiental tem o limite do bolso. Nesse contexto, a polêmica se volta para as soluções trazidas pelo Protocolo de Quioto, que entrou em vigor em fevereiro de 2005. Já está valendo o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), que possibilita a troca de "permissões para poluir" entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, com o objetivo de atingir a meta de redução das emissões de gases de efeito estufa.

O novo artifício traz ao debate ambiental a idéia de compensação: em vez de uma empresa na Holanda ter de gastar grandes somas na reformulação de seu processo produtivo, ela pode investir, no Brasil, em projetos de redução de emissões ou captura de carbono da atmosfera, massa que se convencionou chamar de crédito-carbono ou carbono equivalente.

O professor Luiz Pinguelli Rosa, da Coordenação dos Programas de Pós-graduação de Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e membro do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas (FBMC), coloca o desafio ambiental numa encruzilhada mais ampla. "Trabalhar a mudança do padrão de vida é difícil, porque a ideologia que predomina, o neoliberalismo, é quase um salve-se quem puder, estimulado pela teoria econômica que tem como princípio a livre competitividade e o individualismo." Para ele, é preciso olhar não apenas para as ações do governo, mas para essa cultura, que "é ensinada na escola, está no jornais, é repassada pelas famílias". Por essa razão, ele pontua que "o MDL é insuficiente, porém eficiente no que se propõe".

Legislação versus Mercado - Apesar de ser considerado por ambientalistas e pesquisadores da área como passo necessário à contenção do aquecimento global, o MDL é tido como um instrumento de remediação e não de resolução final do problema, pois ele é resolvido por critérios de mercado e não pela regulamentação dos governos. Carlos Rittl, coordenador de clima da ONG Greenpeace, coloca que, nesse âmbito, o caminho se descola da situação climática real, já que introduz a lógica do lucro. "O essencial deixará de ser discutido."

O crescente interesse do empresariado brasileiro em discutir a questão e o número de projetos MDL nacionais, contudo, revela que o setor é parte importante na contenção do aquecimento global. Marina Grossi, economista do Conselho Empresarial Brasileiro de Desenvolvimento Sustentável (CEBDS), acredita que o Mecanismo torna financeiramente viável a participação da iniciativa privada. "Não existe essa visão de que empresas só buscam lucro e governo visa apenas o social. As empresas estão cada vez mais percebendo que só serão perenes se tiverem uma atenção tripla, buscando desenvolvimento econômico, social e ambiental."

Ainda há muita desinformação sobre o que o empresariado pode ou não fazer sobre o crédito-carbono. "As pessoas acham que vão salvar o mundo com isso e ainda vão ganhar muito dinheiro. Não vão", afirma Ricardo Esparta, consultor em ecoinvestimentos. O dinheiro da venda das "permissões para poluir" no mercado, ao menos pelo preço atual médio de cinco dólares a tonelada de carbono, é suficiente apenas para suprir os custos com o projeto. Entretanto, Esparta avalia que o preço dessa commodity tende a subir, pois "o MDL está começando e ainda existem muitos riscos".

Negócios ambientais O Brasil abriga um terço do projetos de MDL do mundo. Já há dois deles funcionando, ambos de aproveitamento do gás metano em aterros sanitários para produção de energia: o Vega Bahia, em Salvador (BA), e o NovaGerar, em Nova Iguaçu (RJ). Se forem aprovados, os 74 projetos existentes irão gerar cerca de 130 milhões de toneladas de carbono equivalente, em seu primeiro período de operação – que pode ser de sete ou dez anos. Esse total significa 31% das emissões brasileiras de 1990 (ano-base que definiu os compromissos em Quioto), dado que está sendo comemorado pelo governo. Mas, se comparado às 776,331 milhões de toneladas de carbono equivalente lançadas pelo Brasil apenas em 1994, de acordo com inventário feito pelo próprio governo e divulgado em novembro de 2004, a massa de gás "economizada" pelo MDL torna-se insignificante.

A maioria dos projetos brasileiros estão ligados à área energética, pois o país tem tradição no setor e a técnica de implementação está bem difundida. Outros 21 projetos propõem tratamento de resíduos e aproveitamento do gás metano e apenas um vem da indústria química – sozinho, ele vai gerar 40 milhões de toneladas de carbono equivalente em seu primeiro período.

A agricultura não foi contemplada como setor válido para contribuir com o Protocolo de Quioto, pelo menos até 2012. As reduções obtidas por empreendimentos nessa área – muitos iniciados inclusive antes da ratificação do acordo – podem ser negociadas, por exemplo, com empresas norte-americanas que cumprem leis estaduais de contenção das emissões (apesar de os EUA não terem aderido ao protocolo). Grande parte das propostas se relaciona à aplicação de práticas tradicionais do solo, como o plantio direto, que reduz emissões por não revolver a terra. "A contribuição é de aproximadamente 0,5 toneladas de carbono por hectare por ano" afirma Carlos Eduardo Pelegrino, engenheiro agrônomo e pesquisador do Centro Energia Nuclear aplicada à Agricultura (Cena) da Esalq-USP. Outra iniciativa é, no cultivo do arroz, substituir a espécie tradicional por variações do "arroz de sequeiro", que reduz a necessidade de inundar a plantação (áreas inundadas emitem gás metano, pela decomposição de matéria orgânica).

Na atividade pecuária, também já existem iniciativas, já que o Brasil possui aproximadamente 180 milhões de cabeças de gado. Os estudos vão no sentido de melhorar a alimentação e mesmo modificar geneticamente o animal, para reduzir as emissões de metano (21 vezes mais prejudicial à atmosfera que o gás carbônico). "Mesmo que esse ganho seja pequeno, em grande escala a contribuição é importante", sinaliza Pelegrino.

Iniciativas de reflorestamento também pleiteiam créditos-carbono nos mercados paralelos, pois, apesar de previstas no MDL, apresentam complicações. Sua metodologia ainda está sendo discutida, devido à dificuldade de medir o carbono absorvido pelas árvores em crescimento, particularmente se forem de espécies diferentes, como ocorre em uma floresta nativa. Além disso, nem todas preenchem o critério da adicionalidade previsto pelo Mecanismo, já que o reflorestamento é uma atividade praticada há muito tempo, com objetivos comerciais. Também se coloca a questão do controle dessas áreas, uma vez que o governo já enfrenta obstáculos para fiscalizar as florestas ainda em pé. Carlos Rittl, do Greenpeace, propõe que uma parte do dinheiro adquirido pelas empresas com o MDL seja aplicada na principal fonte de emissões do Brasil: o desmatamento. A verba serviria para, por exemplo, reforçar a capacidade de fiscalização do Ibama e estruturar órgãos ambientais estaduais, vinculando os créditos-carbono a uma ação permanente nessa área. (Agência Carta Maior, 30/12)

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