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2005-12-29
Em 26 de julho, Mumbai (ex-Bombaim) teve a chuva mais forte já vista sobre um continente: 944 milímetros em 24 horas provocaram mil mortes e US$ 100 milhões em prejuízos materiais com as enchentes. Em 11 de outubro, a Europa foi pela primeira vez atingida por um furacão, o Vince, embora reduzido a dimensões inofensivas, varreu o sul de Portugal e da Espanha.

No início de novembro, a Amazônia brasileira começou a enfrentar sua pior seca desde 1963. Em 28 de novembro, as Ilhas Canárias foram atingidas pela tempestade tropical Delta, a primeira de sua história, que matou sete pessoas, causou grandes danos e deixou o arquipélago sem luz elétrica por vários dias.

O próprio nome dessa tempestade soou como aviso. Antes de cada temporada – oficialmente inaugurada em 1º de junho e encerrada em 30 de novembro –, 21 nomes para ciclones do Atlântico Norte são escolhidos e aplicados, em ordem alfabética, à medida que aparecem. Como a média anual é de 9,6 tempestades dignas de ser nomeadas, 5,9 das quais chegam a ser furacões, isso sempre foi suficiente. O recorde havia sido 21 tempestades, em 1933.

Em 2005, pela primeira vez na história, a lista se esgotou. As últimas cinco tempestades foram improvisadamente batizadas com nomes de letras gregas – Alfa, Beta, Gama, Delta e Épsilon, a última das quais durou até 8 de dezembro. Foram 26 tempestades, 14 com categoria de furacão. Três ou quatro atingiram a categoria 5, a mais violenta. Um deles, Wilma, foi o mais potente de todos os tempos. Recordes históricos em todos os aspectos, inclusive o financeiro: US$ 200 bilhões em perdas e danos materiais, 35% cobertos por seguros.

O recorde anterior havia sido 2004 – US$ 145 bilhões em prejuízos, 31% segurados –, também marcado por fenômenos insólitos, como o ciclone Catarina, o primeiro registrado na história do Brasil e do Atlântico Sul, e o furacão Ivan, descrito à época como um desastre que aconteceria “uma vez a cada cem anos”, mas foi ofuscado em menos de 12 meses.

Futuro tenebroso

Um estudo publicado na revista Science de 14 de setembro, assinado por quatro cientistas, concluiu que, na média global, a freqüência de grandes furacões (não do total de tempestades) cresceu 80% da década de 70 à década de 90 e, na média de 1990 a 2004, foi cerca de 57% maior do que nos 15 anos anteriores.

A julgar pela amostra de 2005, os próximos 15 anos serão ainda mais terríveis. Sabe-se que furacões geralmente se formam sobre oceanos cuja temperatura na superfície é superior a 26ºC e a temperatura média dos mares tropicais subiu 0,5ºC de 1970 a 2004. Kerry Emanuel, meteorologista do MIT, mostrou uma clara correlação entre o aquecimento do Atlântico e do Pacífico e a potência e duração dos furacões. Também se sabe que a temperatura do planeta está relacionada ao efeito estufa e este é incrementado pela liberação de gás carbônico na queima de combustíveis fósseis. Simulações indicam que o aumento da proporção desse gás na atmosfera deve aumentar a temperatura média do planeta e a intensidade dos furacões no longo prazo.

Os dez anos mais quentes, desde que começaram os registros meteorológicos, ocorreram todos desde 1990 – e 2005 foi o mais quente de todos. Entretanto, não são simples as mediações entre a prosperidade das classes médias que amplia o consumo de petróleo pelas picapes do Texas e centrais elétricas de Xangai e as misérias que se abateram sobre os pobres da Louisiana e da Guatemala.

O clima é um sistema caótico e volátil, afetado por muitos fatores. É difícil demonstrar cabalmente, por meios estatísticos, que o fenômeno se deve à atividade humana e não à mera flutuação estatística ou a ciclos naturais. Podem ser necessários 50 anos para que o número de observações crie suficiente certeza estatística para obrigar os mais céticos – incluindo Bush júnior e seus amigos na indústria petrolífera e na Fox News – a dar o braço a torcer.

Mas cerca de 50% das perdas seguradas devidas a catástrofes naturais dos últimos 40 anos ocorreram desde 1990 e o setor de seguros, com muito a perder com mais furacões, secas, incêndios florestais, inundações e epidemias (por ampliação do hábitat de agentes transmissores, como mosquitos) provocadas por alterações do clima, não quer esperar tanto. Começou a estudar a relação entre o aquecimento global e os desastres naturais desde que perdeu US$ 22 bilhões com o furacão Andrew, de 1992.

A preocupação naturalmente redobrou quando uma reunião da associação estadunidense de corretores de seguros para discutir o assunto, marcada para 8 de setembro de 2005 em New Orleans, teve de ser cancelada por notório motivo de força maior. Mas a associação das seguradoras britânicas já havia publicado, em junho, um estudo segundo o qual as perdas com grandes tempestades devidas ao aquecimento global aumentariam em dois terços até 2080 e as seguradoras teriam de aumentar em 90% o capital da cobertura de furacões estadunidenses e em 80% o de tufões japoneses. Estudos da classificadora de seguros AM Best indicam que o aquecimento global pode causar catástrofes que custarão US$ 100 bilhões aos seguradores, valor equivalente à soma dos patrimônios líquidos das 25 maiores resseguradoras do mundo.

Uma delas, a Swiss Reinsurance, aceita a idéia do aquecimento global desde 1994, trabalhou com um grupo de seguradoras patrocinado pela ONU que apoiou o Protocolo de Kyoto e emprega 20 cientistas e engenheiros para estudar a questão. “Sempre se pode achar um cientista que diz o oposto do que os outros estão dizendo”, disse o diretor de riscos emergentes e de sustentabilidade da resseguradora, Ivo Menzinger, ao jornal The Washington Post, “mas a maioria dos cientistas hoje reconhece que o aquecimento global existe”.

A política do petróleo

Politicamente mais importante do que o número decrescente de cientistas que ainda se dizem céticos é o esforço do setor petrolífero para amplificar politicamente suas vozes.

Em 8 de dezembro, os jornais britânicos The Guardian e The Independent publicaram um documento em PowerPoint montado pelo advogado Chris Horner, lobista do Competitive Enterprise Institute (CEI) de Washington (co-fundado pela ExxonMobil, que contribuiu com US$ 1,5 milhão) e representante da Cooler Heads Coalition, que visa “dissipar o mito do aquecimento global”. Horner aparentemente atua na Europa a convite do European Enterprise Industry.

A apresentação – encaminhada aos jornais pelo Greenpeace – dirigia-se à companhia alemã de eletricidade RWE. Esboça um plano para arrebanhar transnacionais, acadêmicos, institutos, comentaristas, jornalistas e lobistas da Europa para a Coalizão Européia para uma Política Climática Sólida a ser criada em Bruxelas, e financiada por pelo menos seis empresas, o que minaria o apoio europeu ao Protocolo de Kyoto.

A proposta inclui preparo de relatórios de posicionamento, recrutamento de peritos prontos a atuar como conselheiros e porta-vozes e formação de redes de apoio instantaneamente disponíveis a qualquer empresa ou político interessado em questionar a adesão ao Protocolo.

Segundo o documento, a Lufthansa, Exxon e Ford teriam demonstrado interesse. “Nos EUA, uma coalizão informal [a Global Climate Coalition, fundada por empresas de petróleo e outras nos anos 90] teve sucesso em ajudar a evitar a adoção de um programa ao estilo de Kyoto. Esse modelo deveria ser emulado, no que for apropriado, para guiar esforços semelhantes na Europa.”

A apresentação afirma que os custos de Kyoto serão insuportáveis para a Europa, pois a maioria dos países europeus não atingiria suas metas para 2010 e isso os obrigaria a dar conta do atraso no período seguinte, com uma penalidade extra de 30% (segundo as regras ratificadas, dias depois, em Montreal).

Questionadas pelos jornais, algumas dessas empresas confirmaram ter-se reunido com Horner, mas só a Exxon se alinhou à sua posição, ao lamentar que “só um lado dessa discussão fosse visto como legítimo”. Para a RWE, o encontro “não significa que compartilhe dessa opinião”. A Ford Europa disse considerar a mudança climática um assunto sério, que exige medidas apropriadas e imediatas.

Contra a corrente

Apesar dos esforços de Horner, sua proposta de lobby parece não ter vingado. O ano terminou com notícias relativamente boas: apesar do pessimismo da mídia, a 11ª Conferência da ONU sobre mudança climática, encerrada em Montreal em 11 de dezembro, resultou em alguns avanços.

Os negociadores dos EUA, Paula Dobriansky e Harlan Watson, tentaram impedir a continuação de Kyoto depois de 2012. Defenderam que a redução das emissões e a pesquisa de tecnologias inovadoras teriam de ser voluntárias e partir da iniciativa privada. Chegaram a abandonar reuniões em protesto e ameaçar vetar qualquer nova rodada de discussões, alegando que isso só levaria a novas metas de cortes de emissões, rejeitadas por Bush júnior por supostamente prejudicar a economia dos EUA. Mesmo se, segundo um manifesto divulgado por 25 economistas (três deles Prêmios Nobel) na reunião, isso reduzisse o crescimento em apenas 1% do PIB, menos que o custo da reconstrução de New Orleans.

Horner foi credenciado como “jornalista” pelo jornal neoconservador Washington Times para participar das conferências de imprensa e dar a deixa para Dobriansky proclamar a isolada posição de Washington como liderança de um “novo consenso”. Queria se referir aos 154 países, quase todos periféricos, que ainda não têm metas de redução e somam um terço das emissões globais – como China (13% das emissões), Índia (4%) e Brasil (1,3%, devido principalmente a desmatamento). Mas esses não morderam a isca e apoiaram a continuação da negociação.

Ao final, depois das críticas do primeiro-ministro canadense, Paul Martin – “Aos países relutantes, incluindo os EUA, digo que há uma coisa chamada consciência global e é hora de ouvi-la. Acima de tudo, agora é o momento de agir” –, e das pressões de aliados como o Reino Unido e de suas próprias ONGs, acabaram por aceitar participar de dois anos de discussões informais sobre cooperação no combate às alterações climáticas.

O objetivo é negociar a revisão e o aprimoramento do Protocolo de Kyoto a partir da conferência de 2006, definir metas mais ambiciosas para a segunda fase (2013-2017) e desenvolver um plano de cinco anos para ajudar os países pobres a enfrentar os impactos da mudança climática.

O maior desafio é convencer os não tão pobres – como China, Índia, Brasil e México – a aceitar metas de emissão, priorizar a sustentabilidade de seus investimentos e ajudar a financiar esse esforço. A Agência Internacional de Energia prevê investimentos de US$ 6 trilhões no mercado de energia até 2030, na maior parte em países periféricos. Para que esses investimentos não afetem o clima, seriam necessários outros US$ 2 trilhões – US$ 80 bilhões anuais.

De Washington, o mais que se pode esperar – pelo menos até o fim do governo Bush júnior, em 2008 – é que não sabote ativamente esses esforços. Mesmo assim, a presente geração ganhou, em 2005, a oportunidade de presentear seus netos com alguma esperança no futuro. (Carta Capital, 26/12)

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