A questão da água no contexto da globalização
2005-12-29
Por Leonardo Boff
Nenhuma questão hoje é mais importante do que a da água. Dela depende a sobrevivência de toda a cadeia da vida e, conseqüentemente, de nosso próprio futuro. Ela pode ser motivo de guerra como de solidariedade social e cooperação entre os povos. Mais ainda, como querem fortes grupos humanistas, ao redor da água poder-se-á e seguramente dever-se-á criar o novo pacto social mundial que crie um consenso mínimo entre os povos e governos em vista de um destino comum, nosso e do sistema-vida.
Independentemente das discussões que cercam o tema da água, uma afirmação segura e indiscutível podemos fazer: a água é um bem natural, vital, insubstituível e comum. Nenhum ser vivo, humano ou não humano, pode viver sem a água.
Da forma com que tratamos a água dependerá a forma que ganhará a globalização. Daí ser importante discutirmos rapidamente a relação entre globalização e cuidado da água. E aqui temos que fazer uma opção prévia. Conforme for a decisão, outras serão as conseqüências.
Ou bem abordaremos a relação globalização-água a partir da globalização como ela está se dando hoje, com sua lógica interna, e então teremos uma concepção de água e um cenário de nosso futuro ou bem trataremos a relação a partir da água o que nos levará a desenvolver outra concepção de globalização, com outra lógica, que resultará um outro cenário para o futuro da vida e do ser humano na Terra.
Mas antes, consideremos rapidamente os dados básicos sobre a água.
Existem cerca de um bilhão e 360 milhões de km cúbicos de água na Terra. Se tomássemos toda essa água que está nos oceanos, lagos, rios, aqüíferos e calotas polares e distribuíssemos eqüitativamente sobre a superfície terrestre, a Terra ficaria mergulhada na água a três km de profundidade. 97% de água salgada e 3% de água doce, o que equivale a 8,5 milhões de km cúbicos. Mas somente 0,7% é diretamente acessível ao uso humano.
Mesmo assim a água há superabundante no planeta. A renovação das águas é da ordem de 43 mil km cúbicos por ano, enquanto o consumo total é estimado em 6 mil km cúbicos por ano. Há muita água, mas desigualmente distribuída: 60% se encontram em apenas 9 países, enquanto 80 outros enfrentam escassez. Pouco menos de um bilhão de pessoas consome 86% da água existente enquanto para 1,4 bilhão é insuficiente (em 2020 serão três bilhões) e para dois bilhões, não é tratada, o que gera 85% das doenças. Presume-se que em 2032 cerca de 5 bilhões de pessoas serão afetadas pela crise de água. Não há problema de escassez de água, mas de má gestão para atender as demandas humanas e dos demais seres vivos.
O Brasil é a potência natural das águas, com 13% de toda água doce do Planeta perfazendo 5,4 trilhões de metros cúbicos. Mas é desigualmente distribuída: 70% na região amazônica, 15% no Centro-Oeste, 6% no Sul e no Sudeste e 3% no Nordeste. Apesar da abundância, não sabemos usar a água, pois 46% são desperdiçados, o que daria para abastecer toda a França, a Bélgica, a Suíça e o Norte da Itália. É urgente, portanto, um novo padrão cultural.
A água vista a partir da globalização
A globalização é um fenômeno complexo. Pode ser vista como uma nova fase da Humanidade e da Terra como Gaia. Trata-se do fenômeno antropológico-cósmico do retorno dos povos depois da grande dispersão ocorrida há milhões de anos a partir da África.
Agora os povos e as culturas se colocam em movimento e se encontram num único lugar, o Planeta Terra. Junto a isso se cria uma nova consciência, planetária, com o sentido de que temos, Terra e Humanidade, uma mesma origem e um mesmo destino. Na verdade, somos a própria Terra que sente, pensa, ama, venera e cuida. Já nos anos 30 o antropólogo e sacerdote católico Teilhard de Chardin falava da irrupção da Noosfera, como nova etapa ascendente da espécie humana.
A globalização é um fenômeno histórico-social-político: as info-vias propiciaram todo tipo de trocas entre os seres humanos, valores, visões de mundo, formas políticas, tradições espirituais e religiosas transitam de um canto a outro. Ela assume também uma dimensão ecológica: os fenômenos naturais afetam a todos os seres humanos. Sentimo-nos todos interdependentes.
A globalização é um fenômeno econômico e financeiro; ela representa a expansão sobre todo o Planeta do sistema do capital com seu sistema financeiro, seus mercados de moedas e de commodities. Representa a unificação do espaço das trocas e a gestação do sistema-mundo.
Este sentido de globalização é dominante. Ele se rege pela lógica da economia de mercado que é a competição e a vontade de maximalizar os ganhos. Isso se faz mediante grandes conglomerados supra e multinacionais com poder econômico às vezes superior a muitos países. A tendência é transformar tudo em mercadoria e oportunidade de lucro e levar à banca dos negócios.
Em razão desta lógica se procura patentear os conhecimentos científicos, bens da natureza, até genes como o que produz o câncer de mama. Tudo é privatizável e feito mercadoria, sem limites. A água, por causa de sua escassez é vista como recurso hídrico e bem econômico. Ela é uma mercadoria e fonte de lucro.
Há uma corrida mundial na privatização da água. Aí surgem grandes empresas multinacionais como as francesas Vivendi e Suez-Lyonnaise, a alemã RWE, a inglesa Thames Water e a estadunidense Bechtel. Criou-se um mercado das águas que envolve cerca de 100 bilhões de dólares. Aí estão fortemente presentes na comercialização de água mineral, no mundo todo, a Nestlé e a Coca-Cola que buscam comprar fontes de água por toda a parte no mundo.
Os organismos de financiamento como o FMI e o Banco Mundial condicionaram a partir do ano de 2000 a 40 países a renegociação da dívida e os novos empréstimos sob a condição de privatizarem a água e seus serviços. Assim foi com Moçambique em 1999 para receber 117 milhões de dólares. Em 2000 ocorreu com Cochabamba, na Bolívia: a empresa estadunidense Bechtel comprou as águas e elevou os preços em 35%. A reação organizada da população fez com que saíssem do país. Na Índia a água foi privatizada em muitas grandes cidades. A carência de água potável da população é tão grande que os carros-pipas são assaltados. Só conseguem chegar ao destino sob proteção policial.
A água está se tornando “fator de instabilidade no Planeta”. Poderão ocorrer guerras para garantir o acesso à água potável. A visão mercadológica da água distorce as relações água-globalização pela competitividade desenfreada entre as grandes empresas, o que impede acordos e assim prejudicam as populações; pela primazia da rentabilidade; pelo descaso ao princípio da solidariedade social e da comunidade de interesse e do respeito das bacias hidrográficas que transcendem os limites das nações; pelo desprezo do uso racional e eqüitativo da água como ocorre entre a Turquia de um lado e a Síria e o Iraque do outro, ou de Israel, da Jordânia e da Palestina, ou entre os EUA e o México ao redor dos rios Rio Grande e Colorado.
A exacerbação da propriedade privada faz com que se trate a água sem o sentido de partilha e de consideração das demandas dos outros. Face a estes excessos à comunidade internacional, a ONU estabeleceu nas reuniões de Mar del Plata (1997), Dublin (1992), Paris (1998), Rio de Janeiro (1992) “o direito de todos a terem acesso à água potável em quantidade suficiente e com qualidade para as necessidades essenciais”.
A globalização vista a partir da água
Bem outra é a perspectiva quando damos centralidade à água e a partir dela vemos a globalização. Aqui o grande debate hoje se trava nestes termos: A água é fonte de vida ou fonte de lucro? A água é um bem natural, vital, comum e insubstituível ou um bem econômico a ser tratado como recurso hídrico e como mercadoria? Ambas as dimensões não se excluem, mas devem ser retamente relacionadas.
Fundamentalmente, a água é direito à vida, como insiste o grande especialista em águas Ricardo Petrella (“O Manifesto da Água”, Vozes, Petrópolis 2002). Nesse sentido a água de beber, para uso na alimentação e para higiene pessoal deve ser gratuita (como se lê no livro de Paulo Affonso Leme Machado, “Recursos Hídricos. Direito Brasileiro e Internacional”).
Por isso, com razão, diz em seu artigo primeiro a Lei Nº 9.433 (8/1/97) sobre a Política Nacional de Recursos Hídricos: “a água é um bem de domínio público; a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico; em situação de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessententação de animais”.
Como, porém, a água é escassa e demanda uma complexa estrutura de captação, conservação, tratamento e distribuição implica uma inegável dimensão econômica. Esta, entretanto, não deve prevalecer sobre a outra, ao contrário, deve torná-la acessível a todos e os ganhos devem respeitar a natureza comum, vital e insubstituível da água. Mesmo implicando altos custos econômicos que devem ser cobertos pelo Poder Público.
A água não é um bem econômico como qualquer outro. Ela está tão ligada à vida que deve ser entendida como vida. E vida não deve ser transformada em mercadoria. A água está ligada a outras dimensões culturais, simbólicas e espirituais do ser humano que a tornam preciosa e carregada de valores que, em si não têm preço.
Para entendermos a riqueza da água que transcende sua dimensão econômica precisamos romper com a ditadura que o pensar racional-analítico e utilitarista impõe a toda a sociedade. Este vê a água como recurso hídrico. O ser humano tem outros exercícios de sua razão. Há a razão sensível, a razão emocional e a razão espiritual. São razões ligadas ao sentido da vida. Oferecem não as razões de lucrar, mas as razões de viver e conferir excelência à vida.
A água é vista como vida, com bem comum natural, como fonte e nicho de onde há bilhões de anos surgiu a vida. Como reação à dominação da globalização da água se busca a republicanização da água.
A água é um bem comum público mundial. É patrimônio da biosfera e vital para todas as formas de vida. Importa proclamar o reconhecimento formal do direito à água como direito humano universal em todos os organismos do local ao internacional. Cabe ao poder público junto com a sociedade organizada criar um financiamento público para cobrir os custos necessários para garantir o acesso à água potável a todos.
Em função destas exigências se criou o FAMA – o Fórum Mundial Alternativo da Água em Março de 2003, em Florença na Itália. Junto a isso se propõe criar a Autoridade Mundial da Água, uma instância de governo público, cooperativo e solidário da água em nível das grandes bacias hídricas internacionais e de uma distribuição mais eqüitativa da água segundo as demandas regionais.
Função importante é pressionar os Governos e as empresas para que a água não seja levada aos mercados nem seja considerada mercadoria. Deve-se garantir a todos gratuitamente pelo menos 50 litros de água potável e sã. As tarifas para os serviços devem contemplar os diversos níveis de uso, se doméstico, se industrial, se agrícola, se recreativo.
Deve-se incentivar a cooperação público-público para impedir que tantos morram em conseqüência da falta de água ou em conseqüência de águas maltratadas. Diariamente morrem 6 mil crianças por sede. Os noticiários nada referem. Mas isso equivale a 10 aviões Boeing que caem ou mergulham nos oceanos com a morte de todos os passageiros. Evitar-se-ia que cerca de 18 milhões de meninos/meninas deixem de ir à escola porque são obrigadas a buscar água a 5-10 km de distância.
Paralelo a isso corre a articulação mundial para um “Contrato Mundial da Água” e uma “Convenção Internacional da Água”. Seria um contrato social mundial ao redor daquilo que efetivamente nos une que é a vida das pessoas e dos demais seres vivos, indissociáveis da água. Uma fome zero mundial, prevista pelas Metas do Milênio deve incluir a “Sede Zero”, pois não há alimento que possa existir e ser consumido sem a água.
A partir da água, outra imagem da globalização surge, humana, solidária, cooperativa e orientada a garantir a todos os mínimos meios de vida e de reprodução da vida. Ela é vida, geradora de vida e um dos símbolos mais poderosos da vida eterna.
(Revista Eco 21, dezembro de 2005, http://www.eco21.com.br/textos/textos.asp?ID=1251)