A vitória de Francelmo
2005-12-27
Francelmo optou por oferecer sua vida pelas causas ambientais e não estar aqui
para ver o rumo do projeto que mudaria a lei e permitiria a instalação das
usinas de álcool na Bacia do Alto Paraguai (BAP), região que abriga o Pantanal.
Desde da época em que ainda vigorava a ditadura, lá estava Francelmo defendendo
o Pantanal ciente de uma missão por se chamar Francisco, e ter recebido
Francisco de Assis, o padroeiro da natureza como seu padrinho desde a pia
batismal. Contrabando de transgênicos, hidrovia Paraguai-Paraná, crimes
ambientais urbanos, pólos indústrias de alto potencial poluidor, e o estopim a
usina de álcool no Pantanal Não!
O primeiro sinal de que Francelmo teria seu desejo atendido veio com o relatório
desfavorável da Comissão de Constituição, Justiça e Redação da Assembléia
Legislativa de Mato Grosso do Sul para o Projeto Lei 170/05, por
inconstitucionalidade. Na quarta-feira, 30 de novembro de 2005, o parecer foi
votado, e o projeto arquivado. Diante da assembléia lotada de ambientalistas e
universitários, 17 deputados acataram a decisão da Comissão e quatro votaram em
defesa do projeto. Iracema Sampaio, esposa de Francelmo assistiu a votação do
início ao fim e se emocionou: – Meu marido deu a vida por um futuro melhor, essa
foi uma vitória da humanidade-.
Francelmo, como era chamado um dos mais antigos defensores da causa ambiental em
Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul e no Brasil, ou Cecéu para a família,
parecia bem humorado naquela manhã de 12 de novembro de 2005, apesar de um certo
olhar perdido e uma angústia escondida. Acompanhava, em uma das ruas mais
movimentadas da cidade, o desenrolar de mais um ato público contra a instalação
de usinas de álcool na Bacia do Alto Paraguai, região que abriga o Pantanal.
Conversou com várias pessoas. Para um amigo, jornalista, disse que no próximo
evento todos teriam de queimar um boneco e enterrar o morto, o secretário de
Estado de Produção e Turismo, Dagoberto Nogueira . Para um artista plástico
baiano, que acabara de conhecer, deixou um enigmático: Fui! .
Ninguém associou, a princípio, que poderia ser ele o homem envolto em chamas
depois de colocar dois colchões em forma de cruz, despejar dezenas de litros de
gasolina, inclusive em si mesmo e saltar para o fogo decidido, de braços abertos.
O ato que parecia ser mais uma performance artística, entre tantas que se
desenrolavam no calçadão, na visão de comerciantes, únicas primeiras testemunhas,
logo demonstrou sua verdadeira razão. Francelmo, para choque de todos, havia
doado sua vida por causas que deixou muito bem expressas nas 18 cartas e
bilhetes escritos de próprio punho para as pessoas mais próximas e a órgãos
estratégicos da sociedade.
Até o final do dia, a notícia foi ganhando forma até tomar proporções de
repercussão nacional e internacional. Depois de 23 horas de agonia em um
hospital, com queimaduras em 98% do corpo, Francelmo morreu no dia seguinte, 13
de novembro. O poeta sul-mato-grossense Manoel de Barros indicaria, em carta
destinada à viúva Iracema Sampaio, o sentimento que ficou travado no peito de
muitos: – O que o nosso Francelmo fez é mais do que um protesto. Para mim tem o
componente maior do heroísmo. Francelmo, o último herói do Brasil-.
Francelmo fez questão de deixar registrado nas cartas, que foram cuidadosamente
deixadas, algumas com uma comerciante no local e outras nas mãos de um amigo,
que a sua imolação estava estritamente ligada a questões ambientais que há muito
o angustiavam. Para a imprensa, o recado foi um dos mais contundentes. – Em
termos de Brasil estamos vendo o barco afundar e ninguém diz nada. São os
transgênicos entrando de contrabando pelo sul e o governo apoiando. São as
queimadas da Amazônia e o governo impassível. É gente com terra do tamanho de um
estado e é gente sem terra. É transposição do rio São Francisco no lugar de
revitalização. No Pantanal, querem fazer do rio Paraguai um canal de navegação
com portos para grandes embarcações e grandes comboios. E pólo siderúrgico e
pólo gás químico-. No final, alertava que um terço dos deputados estaduais era
favorável à implantação de usinas de álcool na bacia do rio Paraguai, outro
terço contrário e o mesmo número indeciso. – Já que não temos voto para salvar o
Pantanal, vamos dar a vida para salvá-lo-.
Ao prefeito de Campo Grande, Nelson Trad Filho, alertou que a recém-criada
Secretaria Municipal de Meio Ambiente não poderia ser de terceira classe
. Deveria, em sua opinião, ter reconhecida a sua devida importância para a
qualidade de vida . Aos professores, principalmente universitários,
incentivou que os trabalhos escolares não podem ficar nas gavetas. – Vocês estão
enganados. Ninguém tem tempo. Não podem usar a máxima que diz: façam o que eu
digo e não façam o que eu faço-. Como religioso,católico praticante, não se
esqueceu dos bispos, padres, pastores e pregadores em especial, até mesmo Edir
Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus e o reverendo RR Soares. – Vocês
precisam defender permanentemente o meio ambiente. A Terra ela é a verdadeira
casa de Deus. Como líderes religiosos só vocês podem conscientizar o povo. Não
tenho visto essa defesa, só em raríssimos casos. Pensem nisso!-.
Mas são as cartas deixadas à família que eliminam qualquer indício de que outros
fatores que não a defesa da causa ambiental teriam motivado Francelmo a doar sua
vida nas chamas. Ao filho Alisson, 14, lembrou que também passou pelo trauma da
perda do pai quando tinha a mesma idade. Às irmãs, Alda, Francélia e Joacélia
ressaltou que, quando a mãe deu-lhe o nome de Francisco, involuntariamente teria
lhe dado uma missão. – Tenho me dedicado a servir a Deus na defesa de sua casa
como só um louco é capaz. Nada e nenhum problema me levaria a tomar esta decisão.
Só pelo amor de Deus-. Confessa que, enquanto decidia pelo ato, pediu a São
Francisco de Assis, seu padrinho por procuração na pia batismal , para
que lhe fosse dado uma luz sobre o melhor caminho a seguir. – Tem muita
lenda a respeito dos que atentam para a própria vida-.
Para a sua esposa, Iracema Sampaio, com quem viveu uma história de amor intensa
ao longo dos últimos 42 anos, a carta foi a mais extensa e direta. – Não fique
se lamentando como uma viúva desconsolada. Você sempre foi uma guerreira, eu
nunca neguei as suas qualidades. Você é uma forte-, destaca, no ponto mais
emocionante. Palavras perfeitas para descrever uma mulher que, mesmo sob o
impacto da perda, apresenta argumentos com segurança e demonstra estar
absolutamente consciente da imolação do marido por uma causa justa.
– Sempre tivemos uma vida modesta, vivíamos bem. Eu não via razão para isso, mas
não dimensionei a grandiosidade do coração dele e vim sentir isso agora-, relata
Iracema. Ela define o marido como um homem de muita generosidade e parcimônia
nos seus atos. – Então isso me machuca, mas tudo que eu penso dele agora são
grandezas somadas-.
Dos pequenos atos às grandes conquistas
Francelmo nasceu em Fortaleza, no Ceará, e foi para Recife na década de 1960
fazer um curso militar para cabo. Lá, conheceu o futuro cunhado de Iracema
Sampaio e se tornaram amigos. Concluído o curso, os alunos podiam escolher onde
gostariam de viver e escolheram Salvador, na Bahia. Lá, Francelmo conheceu o pai
de Iracema e posteriormente, a filha. Ela havia retornado à Bahia após
separar-se do primeiro marido. O casamento se concretizou oito anos depois.
Iracema afirma ter gostado dele desde o primeiro dia, mas alega, brincando, que
Francelmo, era casado . – Ele gostava de outra e até usava uma aliança
porque gostava tanto da outra que não queria que ninguém chegasse perto dele-,
conta.
Já naquela época, apesar de não estar engajado nas causas ambientais, Iracema
percebia a admiração de Francelmo pela natureza. – Nesse tempo [década 1970],
não havia esse termo ecologia, mas ele já era uma pessoa que procurava ambientes
assim. Uma praia isolada que a gente ia era Arembepe [Bahia]. Ele subia nos
coqueiros para pegá-los frescos e a gente fazer muqueca. No final de semana
gostava de paz-.
Quando deixou o serviço militar, Francelmo trabalhou em uma madeireira.
Sentia-se feliz, porque a empresa usava técnicas de manejo, exploravam o
jacarandá e as árvores tinham que ter o diâmetro adequado para serem retiradas.
Se um pé fosse retirado, outra muda era plantada. – Ele não era contra o
desenvolvimento, era contra a forma como é feito, desse jeito que a empresa
fazia ele achava certo", esclarece Iracema. Quando mantinham um sítio em
Salvador, o marido não usava agrotóxicos para cuidar das plantas. Sinais de uma
luta que deixaria o círculo familiar para ganhar proporções bem maiores.
No final da década de 1960, quando passaram pelo sul da Bahia, perceberam que a
Mata Atlântica estava sendo devastada, isso o entristeceu muito. A retirada
estava muito diferente de quando trabalhou na madeireira, estavam queimando e
usando correntão, uma forma de desmatamento que usa dois tratores ateados a uma
corrente que se arrasta pela mata, arrancando tudo que está no solo.
A militância só começou a fazer parte da vida de Francelmo quando se mudou para
Campo Grande (MS), em 1977. As dificuldades para trabalhar na Bahia incentivaram
a mudança. – Logo no início fomos recebidos com muito carinho e ficamos por aqui
-. A paixão pelo Pantanal foi à primeira vista. Em 1978, foram conhecer Bonito e
o Passo da Lontra, vila que fica às margens da estrada-parque do Pantanal, no
município de Corumbá, a 310 quilômetros de Campo Grande. Iracema Sampaio conta
que, certa vez, em uma baia do Pantanal cantarolaram uma música. Alguns
pescadores ouviram e aplaudiram. Foi o que bastou para que um bando de pássaros
saísse de dentro do mato e ficasse sobrevoando sobre as cabeças de todos. – Saiu
biguá, colhereiro e garça. Mas uma quantidade que você não imagina. Eles ficaram
voando assim, sobre a gente, em círculo, aquelas cores branca, cinza, preta e
vermelha. Francelmo parou e disse: isso é uma obra de Deus, não pode existir uma
coisa mais bonita-, relembra com alegria Iracema. Todas as pessoas que vinham
visitar a família, Francelmo levava para o Pantanal. Lá ficava com os braços
debruçados na janela e o olhar perdido e dizia: – Isso é coisa que não se pode
destruir-. Nos pequenos gestos Iracema via a devoção do marido pela natureza.
O despertar para o movimento ambientalista se deu justamente pelo amor ao
Pantanal. A proposta de instalação de uma usina no Pantanal, a oeste do Estado,
chamada de Usina da Bodoquena, fez com que Francelmo procurasse as pessoas que
estavam se mobilizando contra a proposta. Iracema relembra que era tudo
voluntário. – Ele ficava só na retaguarda, fazendo cartazes e faixas, jornal. Eu
fazia arroz carreteiro em casa e na rancharia, para arrecadar recurso para o
movimento, ele começou assim e não parou mais-. Artistas da cidade de Campo
Grande também participavam fazendo shows e doando a bilheteria para o movimento.
Maria Helena Brancher, jornalista da Fuconams (Fundação para Conservação da
Natureza de MS), conta que foi um momento especial, pois as manifestações eram
em plena ditadura. – E nós éramos articulados com outros movimentos do país. Mas
foi depois de uma matéria feita pelo Globo Rural que o Brasil viu a maravilha
que era o Pantanal. Aí passamos a receber sacos de cartas com assinaturas
apoiando o abaixo-assinado. Tinha cartas de todos os rincões deste Brasil-.
Francelmo passou, então, a dedicar à questão exaustivamente. Tanto que Iracema
cobrava, carinhosa: – Marido pára um pouquinho com o meio ambiente, me dá um
pouquinho de você, quero você perto de mim-. Aí ele desligava o computador e
ficava junto dela. Através do diálogo, buscava esclarecer aos empresários
interessados em implantar a usina que a idéia seria desastrosa para a região
pantaneira. Inclusive viajou com eles para mostrar as belezas e as fragilidades
do Pantanal. Francelmo também foi incentivador da criação da Ame (Associação
Mato-Grossense de Ecologia), a primeira entidade ambientalista de Mato Grosso.
Mesmo sem o registro jurídico em 1978, a Fuconams já existia, foi a primeira
entidade ambientalista de Mato Grosso do Sul. O Estado foi dividido em 1977 e
oficialmente criado em 1978, por decreto do então presidente Ernesto Geisel.
A mobilização da década de 1980 contra a usina na Bodoquena resultou em lei, que
desde 2003 o governo do Estado pretendia. – Nós tínhamos apoio dos políticos da
época. Inclusive, pode até parecer estranho, mas o governador do Estado, o Zeca
do PT, participava conosco. Ele ia nas reuniões e manifestações representando o
Sindicato dos Bancários-, relembra Iracema com indignação. Para Francelmo, a
aprovação da lei, na época, teve o sabor de uma vitória. Ele sentiu-se feliz
pela conquista. Dizia: – Olha o povo está despertando, sentia-se vitorioso-,
lembra.
Até então, Francelmo não havia ocupado nenhum cargo na Fuconams. Trabalhava
bastante, mas preferia ficar nos bastidores. Acabou aceitando o posto de
vice-presidente por pressão dos amigos e assumiu a presidência quando o gestor
da época precisou sair da cidade para estudar. Maria Helena diz que na década de
1980 o movimento ambientalista e a Fuconams trabalhavam por todas as questões
que agredissem o meio ambiente. Podiam ser lutas localizadas, como a da
arborização em Campo Grande, ou nacionais, como as usinas de álcool no Pantanal
e a hidrovia Paraná-Paraguai. – Era uma época de expansão econômica do Estado e
chegava muita gente, vinham do Rio Grande do Sul, compravam uma fazenda grande,
e não tinha técnicas adequadas, o desenvolvimento era a qualquer custo, usavam o
correntão para desmatar-, lembra Maria Helena com pesar pela destruição do
Cerrado.
No dia 5 de junho de 1981, uma grande caminhada com cerca de 10 mil pessoas
consagrou o movimento contra à usinas e foi a primeira vez que aconteceu uma
manifestação desta dimensão no Brasil por uma questão ambiental. A mobilização
foi destaque nacional, não havia esta tradição e a partir do trabalho voluntário
e da paixão pela causa os ambientalistas conseguiram aprovar a lei que impede as
usinas na Bacia do Alto Paraguai. O Estado passou a ser uma referência em
legislação ambiental, que praticamente não existia no país. Deste movimento
surgiram os estudos técnicos que ajudaram a consagrar o Pantanal pela
Constituição de 1988 como Patrimônio Nacional. No Mato Grosso, apesar da
legislação permitir, alguns empresários desistiram da instalação de usinas de
álcool depois que fizeram visitas técnicas com professores universitários e os
ambientalistas.
Nos últimos anos, além da luta contra as usinas de álcool, Francisco se dedicava
ao Fórum de Meio Ambiente e Desenvolvimento de Mato Grosso do Sul, ao Conselho
Municipal de Meio Ambiente e participava de uma série de outras redes, fóruns,
conselhos. Era voltado a construção de políticas públicas, levava sugestões aos
governantes, mais do que isso era uma referência para seus amigos e conhecidos
quando o assunto era defender a natureza.
A Executivo Plus, revista fundada por Iracema em 1983, desde o primeiro número
já tratava de questões ambientais e seguiu escrevendo artigos nas mais de 120
edições. Em 1986, o trabalho já era citado, o Governo Federal editou um livro do
II Encontro Governo-Sociedade: Cidadania e Meio ambiente e publicou duas
reportagens de Francelmo. Outra preocupação era com os anunciantes, se a empresa
poluía, preferia ficar sem o anúncio para que não parecesse que estavam querendo
calar suas denúncias e preocupações.
Ensinava aos sobrinhos, filhos e amigos as relações de interdependência da
natureza. Salvava passarinho, brigava pelas árvores, pelas praças, um grande
defensor de um ambiente urbano saudável. – Era qualquer problema ele estava lá, o
pessoal ligava para falar com ele, o telefone não parava. Ele pegava muda de ipê,
trazia e ia plantar por aí, via uma muda de abacateiro e ia plantar nas praças-,
diz Iracema.
Denunciou as podas mal realizadas na cidade que deixavam as árvores frágeis e
levavam à morte certa. Além disso, a retirada indiscriminada destas árvores,
para que os logradouros das lojas ficassem mais visíveis, foi outra preocupação.
Os ambientalistas perceberam que alguns lojistas envenenavam as árvores e usavam
como argumento a doença para conseguir a licença de retirada. – Num
artigo ele dizia que reparou que todas as lojas que fizeram isso acabaram
fechando as portas-, conta Iracema.
Na época de poda em Campo Grande, o telefone da casa do ambientalista não parava
de tocar, as pessoas pediam que ele fosse ver o que estava acontecendo e também
que cobrasse dos governantes. E ele cobrava, ligava para prefeito, secretário
pedindo resoluções. Mas mesmo cobrando, era calmo. Maria Helena conta que era
uma pessoa conciliadora, sempre trabalhou a diversidade. – Quando a gente ficava
querendo criar inimizade, ele vinha e conciliava, tentava ver que cada um tinha
um lado, e dizia que tínhamos que estar com aqueles que partilhavam da mesma
identidade-.
Uma voz que não vai se calar
Nem os amigos, nem a família perceberam qualquer modificação no comportamento de
Francelmo nos últimos tempos. Na semana anterior ao ato, todos descreveram que
ele estava normal . Ele tinha três filhos adotivos. O mais novo, Alisson,
de 14 anos, discorda da atitude do pai. – Ele era muito brincalhão, nunca podia
imaginar que pudesse fazer isto. Não vai adiantar nada, as coisas não mudaram-.
Iracema Sampaio acredita que as cartas foram escritas de uma só vez, na véspera
do ato. – Eu não vi porque eu fui deitar mais cedo. Ele ligou para as irmãs na
noite anterior, normalmente, como fazia antes. Chegou a fazer um documento para
o senador Ramez Tebet, foi a última coisa que ele fez na sexta-feira-. A viúva
relatou que Francelmo parecia tão tranqüilo que ninguém percebeu nenhuma
alteração em seu comportamento. – Ninguém notou nada, nenhum aborrecimento, tudo
estava absolutamente normal. Teve até uma senhora que precisava de um remédio e
antes de sair para a manifestação ele ligou lá para Fortaleza para pedir o nome
do remédio. A Maria [trabalha com a família há 18 anos] notou que ele foi para a
manifestação com uma calça que não usava há muito tempo-.
Na última noite, Francelmo dormiu abraçado ternamente com a sua esposa. No dia
seguinte, antes de sair, deu-lhe um beijo caloroso na boca. Iracema conta que
comentou com uma amiga o sentimento de que uma nova lua de mel se
aproximava.
Em novembro as grandes alegrias do casal se concretizaram, foi o mês que se
conheceram, que começaram a namorar e oito anos depois do primeiro encontro, foi
em novembro de 1972, que se casaram. – Eu lembrei disso e por isso até achei que
a gente ia viajar no fim do ano-. O casal gostava de viajar para planejar a
próxima etapa da vida, mas depois que adotaram Alisson e também o fluxo intenso
de trabalho não estava permitindo. – Nosso filho já está grande, então achei que
seria agora-.
No dia da manifestação, chegou a questionar o fato de Francelmo ir para o local
com uma Kombi e não com outro carro. Dentro do veículo já estavam acomodados os
galões de gasolina e os colchonetes. – Ele falou que precisava levar uns
cavaletes e disse para o pessoal que ia queimar um boneco. Ele estava assim,
rindo-. No último diálogo, Iracema relembrou o novembro de 1962 e perguntou ao
marido se lembrava aonde eles se conheceram. – Lembro, foi no Parada Hotel-. Não
satisfeita Iracema perguntou: – Mas onde?-. Cecéu disse: – No restaurante-. Com
bom humor Iracema desafiou: – Seu mentiroso, foi no elevador!-. Francelmo disse
então suas últimas palavras: – Mas nós só conversamos no restaurante-. – E aí
ele saiu-, conta, emocionada.
Quando os amigos descobriram que a pessoa que havia se atirado nas chamas não
fazia uma performance, e sim, era o Francelmo, correram para a casa do casal
para que a notícia não chegasse de forma brusca, em um dos muitos telefonemas
que passaram a ressoar. Com cuidado, disseram que ele havia sofrido um acidente.
– Quando eu recebi a notícia, achei que a polícia tinha interferido na
manifestação e alguém havia atirado nele. Eu tinha medo de que alguém o matasse,
quando ele estivesse vindo para casa, aqui é meio isolado. Sempre dizia para o
Francelmo: tenho tanto medo quando você sai-. Iracema conta que, ao saber da
verdade, a princípio entrou em pânico, desespero , vivenciando um
sentimento de revolta momentâneo. – Na hora eu só dizia: marido, porque você me
deixou, você não pensou em mim e no seu filho. Eu comecei a chorar e a tomar
remédios e pensei que ia ter um troço. Mas quando li as cartas, comecei a
entender-.
Iracema tem certeza que não foi por descontentamento com a família ou com a vida
que ele tomou a decisão, porque nas cartas ele mostra que se preocupou com todo
mundo. Fazendo uma visita a casa da família, percebe-se que sob aquele teto
havia muito amor, bom humor e cumplicidade. Casa sempre cheia de amigos, ali
funciona a Fuconams, a empresa de culinária de Iracema e também a revista
Exe
cutivo Plus. Jamais Francelmo havia elogiado atitudes extremas, quando o
bispo Luiz Cappio fez greve de fome pelo rio São Francisco ele acompanhou
normalmente, como todo mundo , esperava que desse algum resultado, mas não
acreditava muito, estava descrente porque já havia depositado sua esperança no
governo Lula e no Zeca do PT e se decepcionou. Inclusive vestiu a camisa da
campanha de forma voluntária, ia nas reuniões como convidado para ajudar a
elaborar o programa do governo estadual. – Tinha a convicção que eles não
deixariam destruir o Pantanal-. A decepção veio logo com o ressurgimento da
idéia da Hidrovia Paraguai-Paraná.
Como bom conhecedor da mídia e do movimento ambientalista, Francelmo sabia a
dimensão de seu ato, mas mesmo assim deixou em uma das cartas que o resultado ia
depender da repercussão, pedindo que seus amigos jornalistas ambientais dessem a
devida divulgação. A questão da usina foi o estopim de suas angústias, mas ele
deixou claro que estava preocupado com o rumo do desenvolvimento.
Sua esposa não condena a atitude, apesar da saudade que é vista em cada história
contada, em cada gesto de lembrança, ela vê grandeza em seu gesto. Examinando a
vida da família, sempre cheia de carinhos e de muita conversa, Iracema tem
certeza que foi por amor à vida e para mostrar através da repercussão que os
ambientalistas não são poucos. – O Pantanal para ele era um pedaço da casa de
Deus, da Terra, ele se deu em sacrifico para salvar a casa de Deus. Então esse
homem não cometeu um suicídio, ele não foi uma pessoa que cometeu um desatino,
ele foi consciente-.
Se depender de Iracema e dos amigos o sacrifício não será em vão. – Ele fez
sabendo e querendo isso, para mostrar aos governantes que o mundo não dorme, não
fecha mais olhos para esse tipo de coisa. Ele cansou de falar de gritar, a voz
dele não era ouvida!-, emociona-se Iracema.
O filho Alisson acha que poderá entrar no movimento ambientalista mais tarde
quando estiver mais velho. Iracema lembra que ao ver as denúncias de corrupção
na televisão, Francelmo garantia ao filho que sempre lhe daria orgulho, pois
isso jamais ele faria e não entendia como as pessoas que só pensam em dinheiro
conseguiam dormir e encarar a família.
Nos últimos meses, Francelmo estava visitando escolas, sendo bastante convidado
para falar sobre meio ambiente. A esposa quer continuar este trabalho, porque
acredita que isso era o mínimo que ele esperava dela, vai reservar alguns dias
da semana para ir de escola em escola levando uma mensagem aos jovens. – Nós
tivemos nossa vida de casal normal, um casal que nunca se separou, que sentia
saudade um do outro. Se viajava a gente se falava, até mais de uma vez por dia.
Eu sentia falta dele, mas eu não vou sentir raiva, não vou ser egoísta, não vou
medir as coisas que eu tenho que fazer, quer dizer, vou medir dentro da
coerência, dentro do que é justo e certo, que era assim que ele prosseguia,
assim que ele era-. (Revista Digital Comunicação em Agribusiness e Meio Ambiente,
dez/2005)