À sombra dos eucaliptos, o sofá e a onça
2005-12-23
Passou pelo sofá e nem viu, diz o paulistano Guilherme Rocha Dias. E, com a naturalidade de quem abriu a trilha, aponta o tronco numa volta do caminho. Sofá, mesmo arranhado por gato, é coisa que ninguém espera encontrar num lugar como aquele, costeando o Rio Ipatinga no Parque das Neblinas. Mas nem todo mundo está pronto também para encontrar, riscada à unha, a assinatura ainda fresca de uma onça-parda, a 50 quilômetros de São Paulo. Principalmente se pegou carona num helicóptero de filmagem e mal teve tempo de tirar da vista as últimas favelas de Santo André, antes de pousar na reserva particular, que encosta no Parque Estadual da Serra do Mar.
A casca lanhada pela suçuarana é do mal-afamado eucalipto. Aliás, a picada atravessa um eucaliptal que o século 20 deixou de herança nesse canto de Mogi das Cruzes, tangenciando as crateras de antigos fornos, que há 60 anos já torravam a mata original para fazer o carvão da mineradora Cosim. E, no ponto onde cruza o rio por uma ponte pênsil de quase 50 metros, escora-se de um lado a outro em dois enormes eucaliptos, plantados nas margens do Ipatinga pela Companhia Suzano, que há mais de 40 anos sucedeu à Cosim no plantio de madeira.
De passagem por aquelas montanhas, a civilização deixou desde trilhos de ferrovias pioneiras a uma usina inteira, que ainda tira do Ipatinga, com turbinas de 1910, a eletricidade que ilumina o Porto de Santos. Mas o eucalipto é que melhor mimetiza a floresta. Basta esquecê-la a seus pés que ela se regenera em poucos anos e preciso tirar os olhos de samambaias, cipós, bromélias e pegadas de anta para lembrar que a reserva de 2,8 mil hectares, criada pela Suzano, não faz muito tempo foi talhão de plantio comercial.
O eucalipto tem má fama desde que foi trazido da Austrália para secar pântanos. Dizem que abafa outras plantas, arruína o solo e afugenta os animais. Mas não é isso o que acham as 229 espécies de pássaros ou as 94 variedades de orquídeas vistas lá dentro. Os guias falam também de encontros com lontras, jaguatiricas e veados-mateiros.
Mas é da vida humana que se trata. Criado em cidade, Guilherme Rocha Dias trocou a publicidade pelo ecoturismo. Está no parque desde 2001. Fez 16 km de trilhas, partindo da passarela suspensa que, da sede, decola mata adentro, balançando a 6 metros de altura. Essa travessia de 100 metros é parte inseparável de um programa que em geral começa no café da manhã com papo e broa de milho, no Centro de Visitantes, e acaba, ao cair da tarde, no horário de agenda em branco, sob medida para as visitas perderem a pressa urbana.
Desde que abriu ao público em 2004, o parque recebeu cerca de 3 mil pessoas, de executivos estressados a garotos da Funabem. Saem dali meio mudados, como mudaram os moradores de Taiaçupeba, cidade mais próxima. Emerson José de Sousa, por exemplo, entrava lá escondido para tirar samambaia. Hoje, no 3º ano de Biologia, é chamado pela administração para ensinar a forasteiros o que aprendeu na prática sobre a regeneração da mata atlântica. (O Estado de S. Paulo - Marcos Sá Corrêa, 22/12/2005)