Leilão da Aneel expõe a falta de planejamento, dizem ONGs
2005-12-23
Traçar um novo modelo para o setor energético do Brasil com ênfase na expansão
do setor elétrico foi uma das promessas do candidato Luiz Inácio Lula da Silva
na campanha de 2002. Embalado pelas críticas ao apagão de 2001 que
castigou boa parte da população e ajudou a afundar o barco tucano nas eleições
do ano seguinte, o petista prometeu dar ao país a segurança de que a oferta de
energia elétrica não atravessaria mais crises como aquela. Eleito presidente,
Lula nomeou para a missão dois nomes respeitados: Dilma Rousseff no Ministério
das Minas e Energia (MME) e Luiz Pinguelli Rosa na presidência da Eletrobrás.
Dilma, que se destacou à frente do ministério, foi promovida para a chefia da
Casa Civil quando José Dirceu decidiu lançar-se ao mar. Pinguelli foi
substituído na direção da estatal, ainda no segundo ano de governo, pelo
peemedebista Silas Rondeau, hoje ministro das Minas e Energia e dono de uma
posição muito menos afinada com os movimentos sociais do que seu antecessor.
Passados três anos, a política do governo para o setor ainda não é clara. Seu
maior símbolo foi o esvaziado leilão de energia nova promovido pela
Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) na última sexta-feira (16/12).
Considerado um sucesso pelo ministro Silas Rondeau e um fracasso pelas
organizações representativas dos movimentos sociais e ambientalistas, o leilão
revelou que, na prática, o governo ainda não tem assegurada a oferta de energia
elétrica que imagina precisar para 2008 e 2009.
Pior que isso, o leilão realizado no Rio de Janeiro deixou como única certeza o
fato de que, apesar de o Plano Decenal de Expansão do Setor Elétrico já estar
pronto e aguardando divulgação, o país não tem um planejamento de médio e longo
prazo para o setor elétrico que incorpore as variáveis sociais e ambientais e
atenda aos interesses da sociedade brasileira com o menor custo possível.
Coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Energia do Fórum Brasileiro de ONGs e
Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento Sustentável (FBOMS),
Lúcia Ortiz qualifica como “piada” o leilão ter sido realizado antes da
definição de um plano de médio prazo para o setor. – Apressaram o processo e
colocaram a carruagem na frente dos bois por causa da pressão exercida em nome
da ameaça de um novo apagão. Querem aprovar qualquer empreendimento, mesmo que
ele seja questionável do ponto vista ambiental e financeiro, para só depois
apresentar o Plano Decenal e ver se ele se enquadra? Isso não tem lógica e
apenas demonstra que este leilão atendeu a interesses econômicos específicos, e
não aos interesses da sociedade”, disse a ambientalista.
O FBOMS divulgou nota na qual afirma que o leilão fracassou porque sua primeira
fase – dedicada ao aproveitamento do potencial hidrelétrico – vendeu apenas 27%
da energia que havia sido inicialmente colocada em oferta. – De uma lista
inicial duvidosa de 17 usinas hidrelétricas a serem leiloadas, ainda sem
concessão, que foi posteriormente reformulada para doze, somente sete foram
colocadas à venda. Sendo que estas sete são projetos considerados menos
controversos com relação aos seus impactos sociais e ambientais. As demais, além
de apresentar projetos sem viabilidade ambiental (como é o caso da maior
hidrelétrica que pretendiam oferecer, Ipueiras, no rio Tocantins, para qual o
licenciamento ambiental foi negado pelo Ibama), foram objetos de sérios
conflitos ambientais, sociais e jurídicos, mostrando a inadequação do processo
de planejamento energético no país-, diz a nota.
Lúcia Ortiz avalia que as vitórias pontuais dos movimentos foram obtidas
justamente na primeira parte do leilão, uma vez que vários casos em litígio
envolvendo usinas hidrelétricas sequer foram colocados em oferta. – Apesar das
várias irregularidades e mudanças de regra de última hora do processo, só os
projetos de aproveitamento que tinham Licença Prévia [LP] foram a leilão. Não dá
mais para passar por cima dos problemas socioambientais. Nossa principal vitória
nesse leilão talvez tenha sido mostrar ao governo que a sociedade civil não
engole mais esse modelo ultrapassado e elitista de produção de energia-, disse.
A dirigente do FBOMS acredita que a maior derrota dos movimentos se deu na
segunda parte do leilão, voltada para a contratação de energia que ainda não
começou a ser produzida. – Nessa etapa foi vendida a energia de vários projetos
de usinas termelétricas, que têm maior impacto social e são ainda mais nocivas
ao meio ambiente que as hidrelétricas. É maldade do governo chamar isso de
energia nova: foi leiloada a energia de duas termelétricas cuja tecnologia foi
adquirida de países da Europa há 25 anos, quando eles começaram a se desfazer do
carvão. Trata-se de tecnologia obsoleta-.
Mãozinha estatal
Outra realidade deixada nua pelo leilão da Aneel foi que, sem uma forcinha dada
pelo governo federal, o setor privado não tem tanto entusiasmo assim pelo
mercado de produção de energia elétrica no Brasil. Isso começou a ficar claro
com a chiadeira generalizada, ocorrida nos dias que antecederam o leilão, contra
o limite de R$ 116 para a remuneração do MWh imposto pelo governo. Descontentes,
algumas empresas do setor de termeletricidade chegaram a tentar anular o leilão
na Justiça. Quando começou a venda, verificou-se que as empresas estatais
estavam por trás de quase todos os lances vencedores. – Isso indica que, sem
subsídios públicos, o mito da energia barata proveniente das grandes
hidrelétricas foi rechaçado pelos próprios investidores-, afirma a nota
divulgada pelo FBOMS.
– Se as empresas precisarem colocar o seu dinheiro na mesa sem subsídios
públicos, a hidroeletricidade no Brasil poderá ter o mesmo destino da cara e
inviável energia nuclear-, avalia o ambientalista Glenn Switkes, da organização
International Rivers Network (IRN). Lúcia Ortiz afirmou que a resistência dos
investidores privados talvez tenha provado para o governo que facilitar demais
as regras do jogo nem sempre significa garantir a oferta mais em conta. –
Energia barata se consegue com eficiência energética-, disse. Ela lamentou a
posição do governo: – O governo atuou para subsidiar os projetos. É uma decisão
política, essa de colocar as estatais a serviço dos interesses do setor privado-,
disse.
Muito bom
Para o ministro das Minas e Energia, Silas Rondeau, o leilão foi um sucesso. – O
resultado foi muito bom. Ao final das duas etapas, nós conseguimos fechar a
venda de 71% do volume total de energia que foi negociado-, disse. O ministro
também lamentou, no entanto, a predominância das usinas termelétricas, que
responderam por cerca de 60% da energia contratada para o período entre 2008 e
2010. – É uma pena que o governo não tenha podido oferecer todas as 17 novas
usinas hidrelétricas porque apenas sete tinham licença ambiental. A energia
térmica é 15% mais cara que a hídrica. Se tivéssemos conseguido oferecer todas
as 17 usinas, o consumidor seria o maior beneficiado-, disse.
Ao todo, segundo a Aneel, foram contratadas 51 usinas para o período entre 2008
e 2010. Destas, 21 usinas são novas, fator que deve assegurar a cobertura da
demanda para os próximos anos. De acordo com o consumo de energia do país
estimado pelas distribuidoras, segundo a agência, ficou falando contratar cerca
de 1,2% da energia necessária para 2008 e 4,5% da energia necessária para 2009.
Presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e um dos idealizadores do
leilão, Maurício Tolmasquim explicou que o aumento da demanda estimado pelo
governo leva em conta uma expansão anual do Produto Interno Bruto (PIB) da ordem
de 5%, o que aumentaria o consumo de energia elétrica também em 5% ao ano nos
próximos anos. Para as ONGs, essa conversa esconde o essencial: – O governo
brasileiro continua fazendo o jogo do mercado e está jogando por água abaixo a
promessa de traçar um planejamento energético para o país-, afirma Lúcia Ortiz.
(Carta Maior, 21/12)