Camponeses brasileiros conquistam a água através de cisternas
2005-12-16
O grande Amazonas está muito longe e a selva é somente uma imagem de cinema. A água, aqui, é artigo de luxo. A agricultura se vê ameaçada e a sobrevivência de milhões de famílias camponesas se converte em uma odisséia cotidiana. Essa é a realidade da região do Semi-Árido do Brasil, que se estende por uma superfície de 900 mil quilômetros quadrados por vários Estados, isto é o equivalente a Espanha e a França reunidas. Em meio às secas e às economias deprimidas, a luta de anos dos movimentos sociais converteu-se em vitória e perfila uma opção de futuro.
— Em dezembro de 2004 terminaram de construir a cisterna e a vida parece que começou a mudar - murmura com enorme emoção José Luiz Santana, pequeno camponês do município de Turmalina, no vale do Jequitinhonha, ao norte do Estado de Minas Gerais.
Santana, de 57 anos, chefe de uma família de 7 filhos, vive nessa região há mais de três décadas, onde a seca crônica já se estende por seis meses. Com apenas 3 hectares de terra ressequida pelo sol forte, uma mínima produção de hortaliças e de farinha de mandioca não é suficiente para a sobrevivência. Isso o obriga a trabalhar como operário rural em outro campo maior, ganhando apenas 4 dólares ao dia. Com dupla jornada diária (em sua pequena parcela e na de seu patrão), o físico se esgota. E sua enorme dignidade de trabalhador infatigável tem como contraparte sua condição de analfabeto e o rosto desdentado por uma velhice precoce.
— Com a cisterna, teremos a água suficiente para o uso familiar durante os seis meses de seca... um sonho tornado realidade..., apesar de que fica, como desafio futuro, como conseguir água para as hortaliças e para regar minha parcela - enfatiza Santana.
Uma vitória do movimento social
Atrás da cisterna de Santana, há toda uma história de mais de um lustro do movimento social brasileiro, nucleado na Articulação do Semi-Árido Brasileiro (ASA). Plataforma que reúne a mais de mil organizações sociais, sindicatos, ONGs, paróquias e os mais diversos movimentos em nível nacional, entre os quais, 70 na ASA do Estado de Minas Gerais.
E, como produto dessa luta, a implementação do Programa por 1 Milhão de Cisternas Rurais, que foi assinado no governo anterior, mas que começou a funcionar realmente a partir da chegada de Lula à presidência do país, tal como explica Valdemir Lopes Viana, Coordenador desse Programa no Centro de Agricultura Ecológica Vicente Nica (CAV), a organização mais ativa na implementação das cisternas em Minas Gerais.
Cada cisterna é uma simples, porém sólida construção cônica de material forte, que permite armazenar 16 mil litros de água da chuva, com uma vida útil de pelo menos 40 anos e com um custo aproximado de 1.500 Reais (uns 650 dólares) por unidade, dos quais somente 20% serão restituídos pelo beneficiário, permitindo alimentar um fundo rotativo gestionado pelas diferentes comunidades locais para a realização de projetos de impacto social nesse âmbito.
Mais de 100 mil cisternas já foram construídas em quase três anos, beneficiando a um número igual de famílias das regiões mais atingidas pela seca.
— Um passo essencial para melhorar a qualidade de vida, apesar de que os desafios estratégicos da capacidade produtiva das mesmas ficam, todavia, abertos - explica Lopes Viana.
De fato, cada uma dessas cisternas está pensada para resolver o déficit de água para uso doméstico, a pesar de que nessas regiões camponesas, consumo, auto-abastecimento alimentar, sobrevivência e melhoramento da qualidade de vida são partes indivisíveis de uma realidade global que espera resposta há anos.
— É por isso que já estamos analisando a implementação de um novo programa denominado P1+2 (Uma terra e duas águas) que busca estender, no futuro, o abastecimento de água da chuva também para as atividades produtivas - assinala o técnico do CAV, um dos expertos na matéria, na região do Vale do Jequitinhonha.
Água e Educação Popular
José Luiz Santana mostra com orgulho a cisterna nova que começa a ser utilizada com o início das chuvas. E não esquece de explicar: — Meus filhos já foram orientados sobre como se deve limpar a cisterna, garantir que se mantenha sempre útil de forma a nos oferecer água boa para beber.
Junto com cada uma das cisternas construídas, dá-se um intenso processo de educação popular, enfatiza, sintetizando, Lopes Viana. Um longo processo promovido pelas organizações sociais, que inclui uma série de etapas consecutivas:
— O estudo das famílias mais necessitadas; a discussão com as mesmas; a construção em mutirão da cisterna; os cursos em saúde pública; o debate sobre a participação financeira do beneficiário para o fundo rotativo; a gestão do mesmo; a construção de projetos sociais...
Uma cisterna, uma gota de água no Semi-Árido, uma parcela de utopia coletiva que nasce e vive..., uma vitória do movimento popular brasileiro. (Adital, 15/12)