Depois do desmatamento, queimadas
2005-12-12
Apesar da redução no ritmo de desmatamento registrada neste ano na Amazônia, a devastação feita em 2004 continuou a massacrar a saúde da floresta em 2005, com labaredas no lugar de motosserras. O número de queimadas entre janeiro e novembro foi o maior dos último cinco anos, pelo menos, com 158.945 focos de calor registrados via satélite.
— Nunca se queimou tanto na Amazônia - avalia o pesquisador Evaristo Eduardo de Miranda, chefe da Embrapa Monitoramento por Satélite, em Campinas, que coordena os levantamentos. O aumento em relação ao mesmo período do ano passado foi sutil, de apenas 1.363 focos (menos de 1%). Ainda assim, uma aparente incongruência com a festejada queda de 31% na taxa anual de desmatamento. Os números, segundo os pesquisadores, podem ser um reflexo da devastação sofrida na Amazônia entre 2003 e 2004, quando 27.200 quilômetros quadrados de floresta foram derrubados - a segunda maior taxa da história. O fogo é tipicamente usado na seqüência das motosserras, como instrumento de limpeza do terreno, uma vez que as árvores maiores (e mais valiosas) foram retiradas.
— O que foi desmatado no ano passado pega fogo neste ano e assim por diante - diz o pesquisador Alexandre Camargo Coutinho, também da Embrapa.
Os cientistas são rápidos em apontar, entretanto, que queimada não é sinônimo de desmatamento. Apesar de o contrário ser quase sempre verdade.
— O desmatamento é o carro-chefe, sem dúvida, mas com ele há uma série de outros fatores - explica Miranda. — É um fenômeno muito mais complexo.
Estatisticamente, uma área registrada pelo satélite como desmatada permanece para sempre como tal - mesmo que a vegetação cresça novamente. Já uma queimada pode ocorrer vários anos seguidos no mesmo lugar. O fogo é usado não apenas em associação com o desmatamento, mas como uma ferramenta agrícola de diversas utilidades. Serve para renovar a grama do pasto, matar carrapatos, eliminar ervas daninhas, limpar o campo para o plantio.
— É a maior invenção tecnológica da humanidade - diz Miranda. — Uma tecnologia que vem desde o neolítico e continua a ser empregada da agricultura mais moderna à mais primitiva.
Pequenos proprietários rurais em regiões de floresta, segundo ele, podem queimar uma mesma área por oito anos seguidos até conseguir limpar totalmente o campo de tocos e raízes. Já um sojicultor com maquinário de última geração em solo de cerrado pode usar o fogo apenas no primeiro ano.
Uma das surpresas de 2005 é justamente uma queda significativa no número de focos de calor em Mato Grosso, Estado tipicamente campeão em produção de soja, desmatamento e queimadas. Foram 49.260 focos entre janeiro e novembro, ante 74.979 no mesmo período de 2004: uma redução de 25.719 focos, ou cerca de 34%. Amapá, Roraima e Tocantins também registraram pequenas quedas no número de queimadas. Enquanto Acre, Amazonas, Maranhão, Pará e Rondônia tiveram aumento. O do Acre foi o mais significativo: 425%, passando de 903 para 4.745 focos de queimada no período.
Não há estatística que comprove, mas a avaliação dos pesquisadores é de que praticamente 100% das queimadas são ilegais - sem autorização do Ibama.
Os números foram levantados pela Embrapa Monitoramento por Satélite a pedido do Estado, já que novembro marca o fim da temporada de queimadas para a maior parte da Amazônia. Apenas Roraima e Amapá, que estão acima da linha do Equador, podem apresentar alguns focos em dezembro, mas com pouco peso estatístico para a região. No Hemisfério Norte, a temporada de queima vai de janeiro a março.
Os focos de calor incluem também incêndios (acidentais ou naturais), além das queimadas (intencionais). Mas são poucos, segundo Miranda.
— Incêndio florestal no Brasil é muito raro. Os satélites utilizados no monitoramento são americanos, da série NOAA, e a detecção é feita por meio de energia liberada (calor) e não pela área queimada. Cada foco, portanto, pode ser um fogo pequeno, mas muito quente, assim como um fogo baixo e espalhado, mas prolongado. Seja qual for o caso, estamos falando de quantidades significativas de fogo - ressalta Miranda. Os satélites cobrem toda a Amazônia e podem passar por um mesmo ponto até quatro vezes por dia.
NOVAS FRENTES
Apesar do aumento pequeno no número de focos de calor, houve mudança significativa na distribuição geográfica das queimadas.
— Você tem de olhar o fogo numericamente e espacialmente para entender o que está acontecendo - diz Miranda.
A comparação dos mapas de 2004 e 2005 mostra claramente uma descentralização dos focos de queimadas do centro-norte de Mato Grosso para novas frentes de queimadas no leste do Acre, norte de Rondônia, sudeste do Pará e leste do Maranhão. De forma geral, as queimadas aumentaram em 22% da Amazônia e diminuíram em 20% (veja mapa ao lado). Cerca de 10% dos focos de calor (15.878) ocorreram em áreas onde não havia sido detectada nenhuma queimada em 2004.
Vistas do espaço, também fica clara a importância de áreas protegidas para a conservação da floresta. Na maior parte do Pará, de Mato Grosso e Rondônia, as únicas regiões relativamente livres de queimadas são terras indígenas, como a do Xingu e a dos caiapós. São os únicos borrões brancos em meio a um enxame de pontos de calor que avança sobre a floresta.
Mas a proteção, ainda assim, não é total. Neste ano já foram registrados 8.169 pontos de queimada em áreas indígenas e unidades de conservação. Um aumento de 6% em relação a 2004, quando foram registrados 7.711 focos.
A seca que assolou a Amazônia neste ano, segundo Miranda, teve pouca influência sobre as queimadas. A não ser, talvez, no lado oeste da região. O governo do Acre decretou estado de emergência em setembro, por causa da cortina de fumaça que se fechou sobre o leste do Estado. Um aumento gigantesco no número de queimadas em torno da capital, Rio Branco, aliado ao fogo de Estados vizinhos e da Bolívia, tornaram o ar da cidade quase irrespirável.
— Foi um ano totalmente atípico - afirma o secretário de Meio Ambiente do Acre, Carlos Edegard de Deus. — Não chovia de jeito nenhum; a vegetação ficou muito seca. O fazendeiro colocava fogo na propriedade e as chamas fugiam do controle. Além de invadir propriedades vizinhas, chegavam a penetrar quilômetros na floresta. É algo que não ocorre normalmente, por causa da umidade.
Para Miranda, com o avanço tecnológico da agricultura, o uso do fogo tende a diminuir.
— Como os agrotóxicos, é algo que queremos eliminar da agricultura. Mas não vai acontecer da noite para o dia.
CONCEITOS
QUEIMADA: Fogo usado de forma intencional e controlada em atividades agropecuárias (e no desmatamento). Nas palavras do pesquisador Evaristo Miranda, é um fogo que tem hora para começar e terminar
INCÊNDIO: Fogo indesejado, iniciado acidentalmente por algum processo natural ou por irresponsabilidade do homem
FOCO DE CALOR: Ponto onde há uma queimada grande e/ou forte o suficiente para ser detectada pelos satélites
MONITORAMENTO: O levantamento dos focos de calor é feito via satélite. Os instrumentos detectam a energia liberada pelo fogo
MAPEAMENTO: A cor de cada pixel no mapa representa o número de focos detectados naquela área durante um certo período (O Estado de S. Paulo, 11/12)