Cores da exclusão
2005-12-07
Indústrias poluidoras e depósitos de resíduos tóxicos estão localizados, em sua
maioria, perto de locais onde moram pessoas pobres. Para a sociologia, se nessas
áreas moram pessoas de uma mesma etnia, isso pode ser qualificado como racismo
ambiental. O termo foi cunhado nos Estados Unidos no início da década de 90,
referindo-se ao fato que negros e latinos são em geral as vítimas preferenciais
dos desastres ambientais. A idéia ganhou reforço científico nas universidades e
legitimou movimentos civis de protesto contra esse quadro. E agora chega ao
Brasil.
Entre os dias 28 e 30 de novembro, pesquisadores, líderes de moradores de
periferias, indígenas e quilombolas participaram, em Niterói (RJ), do 1º
Seminário Brasileiro contra o Racismo Ambiental. Ainda que a idéia de racismo
possa ser questionada por aqui, o evento revelou que não é mais possível estudar
e ajudar grupos sociais excluídos sem abordar a questão ambiental. E para os
pesquisadores, a relação inversa também vale. – Não existe natureza sem justiça
social-, declarou o antropólogo nepalense Pramod Parajuli, da Universidade de
Portland (EUA).
– Percebemos que os problemas ambientais são sentidos de forma diferenciada pela
sociedade. Eles afetam muito mais as populações vulneráveis-, explica a
socióloga Selene Herculano, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Diante da
ameaça do desemprego, muitos trabalhadores aceitam serviços perigosos, e
empresas poluidoras mostram-se cada vez mais interessadas em explorar essa
vulnerabilidade.
Pesquisadores da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA) – que, desde 2001,
ajuda comunidades discriminadas a enfrentar problemas ambientais – dizem que é
possível falar em racismo. Isso porque, ainda que as ações não tenham intenção
racista, os impactos raciais são inegáveis. – Podemos usar o conceito de racismo
como todo pensamento social que acredita que certas pessoas são superiores a
outras-, afirma Selene.
Enquanto essa superioridade é camuflada no Brasil, nos Estados Unidos é motivo
de um movimento cada vez mais forte. E para os dois extremos. Um movimento de
resistência liderado pelo sociólogo Robert Bullard incentiva populações não
brancas (negros, asiáticos, latinos e índios) a exigirem que o governo pare de
mandar para suas comunidades empreendimentos poluidores que não trazem qualquer
benefício aos moradores. Ele realizou uma pesquisa e chegou à conclusão de que o
fato de uma zona ser habitada por negros é critério positivo para a deposição de
poluentes industriais, por exemplo.
No site do Centro de Pesquisa em Justiça Ambiental da Universidade de Atlanta,
dirigido por Bullard, além de diversos artigos sobre o tema, são indicadas
algumas páginas na internet onde é possível comprovar os resultados de sua
pesquisa. Ou seja, saber a localização e os danos ambientais a diversas
populações negras que passaram a se mobilizar no movimento Whats In My Backyard
(algo como O que há no meu quintal? ). – Os princípios da justiça ambiental têm
um potencial enorme de mobilização porque estão relacionados aos direitos civis,
ao direito de igualdade em todos os sentidos, de ter proteção, assistência. É
uma questão de vida ou morte-, diz. Assim, apesar das dificuldades, Bullard
contabiliza muitas vitórias. – No estado da Luisiana, uma companhia japonesa que
fabricava tubos de PVC quis se instalar no meio de uma comunidade negra, que se
mobilizou de forma tão impressionante contra o empreendimento que a empresa teve
que ir embora-.
Lições do Katrina
Bullard esteve em Niterói e contou que o problema não tem só a ver com os
passivos ambientais que afetam essas populações, mas com as restrições de acesso
às coisas boas da sociedade, como serviços, produtos e a própria natureza
preservada. – Nos Estados Unidos, a cor da sua pele determina que tipo de uso do
solo você pode fazer. Os negros são vistos como não merecedores das melhores
coisas-, afirma.
Um exemplo recente de racismo ambiental foi a devastação provocada pelo furacão
Katrina na cidade de Nova Orleans, onde viviam cerca de 500 mil pessoas – 70%
delas, negras. Para Bullard, o Katrina foi um desastre não-natural porque o
governo foi omisso e negligente, ao não utilizar toda tecnologia disponível para
salvar os moradores. – Oitenta por cento da cidade ficou debaixo dágua. Três
meses após a passagem do furacão, ainda existem 2 mil crianças separadas de suas
famílias. Nova Orleans está cheia de lixo, pessoas estão doentes, não há
transporte público-, enumera Bullard.
A situação prolongada de caos e destruição em Nova Orleans foi agravada ainda
mais por atitudes típicas de apartheid. – Não deixaram os negros fugirem da
cidade pela ponte. A evacuação não podia ser feita para áreas de maioria branca
e isso vai ser um dilema para o futuro: quando for preciso fazer retiradas de
emergência em casos de terrorismo e epidemias, como é que vai ser?-, indaga
Bullard, lembrando a posição do governo: – Eles só dizem sink or swim [afunde ou
nade]-.
Injustiças ambientais
Diferentemente dos Estados Unidos, no Brasil o que mais se registra são casos de
desinteresse em relação a quem quer que resida em regiões menos valorizadas. –
Por aqui, falamos em injustiça ambiental, que é um conceito mais amplo. A luta
ambiental está muito próxima da luta pelas pessoas-, afirma Jean Pierre Leroy,
educador da ong Fase. Um exemplo são os 32 quilombos do norte do Espírito Santo,
que se dizem ilhados pela expansão da monocultura da cana-de-açúcar e das
plantações de eucaliptos. – Queremos lutar pela Mata Atlântica novamente, que
hoje está muito afastada de nós-, diz Silvia Lucinda, representante dos
quilombolas.
Quem também reclama de injustiças ambientais é o pajé Luis Caboclo, da aldeia
Tremembé, do Ceará. Só no seu estado, 245 fazendas de camarão já detonaram mais
de 6 mil hectares de manguezais, que são a única mata que restou para os
índios , nas palavras do pajé. Além da destruição do ecossistema, a
atividade polui as lagoas e destrói os hábitos culturais do grupo. Direto do
médio rio Negro, no Amazonas, o médico da Fiocruz Pedro Albajar revelou um outro
caso de injustiça ambiental. Diz que, em plena floresta, há diversos
trabalhadores morrendo infectados pela doença de Chagas porque são obrigados a
se embrenhar na mata para extrair piaçaba para produção de vassouras. Ao
entrarem em contato com o piolho-da-piaçaba, inseto que transmite a doença, os
homens são contaminados, sem que haja políticas públicas para protegê-los.
No Recôncavo Baiano, a população da cidade de Santo Amaro é amparada pela
Associação Cultural Preservação do Patrimônio Bantu (Acbantu), com cestas
básicas e apoio para mobilizações contra o poder público, que deixou a Companhia
Brasileira de Chumbo (Cobrac), do grupo francês Piñarroya, poluir a região por
30 anos. O resultado pode ser visto hoje, com crianças nascendo mutiladas e
enorme percentual de pessoas com câncer, contaminadas com o chumbo que era
despejado pela fábrica e ainda foi reutilizado em obras variadas pela cidade. –
Isso aconteceu no bairro negro e poluiu o ar, o solo e a água-, diz Konmannajy.
Um dos desejos dos organizadores do evento em Niterói é mapear as injustiças
ambientais do Brasil, mais ou menos como fizeram os pesquisadores do Instituto
de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), que no ano passado
lançaram o CD-Rom Mapa dos Conflitos Ambientais do Estado do Rio de Janeiro
. Durante dez anos, eles contabilizaram, classificaram e descreveram 251
problemas ambientais em 49 municípios. Em mais um ano de pesquisa, praticamente
dobraram o número de conflitos, que serão divulgados em nova publicação em
janeiro de 2006. (Andreia Fanzeres, O Eco, 03/12)