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2005-12-06
O caso da hidrelétrica de Barra Grande ganhou notoriedade em nosso país, não apenas por envolver a inundação de mais de 6.000 hectares de mata atlântica situados ao longo de vales encaixados por onde o Rio Pelotas segue seu curso, mas também por decisões judiciais, administrativas e políticas extremamente questionáveis.

Como tudo nesse país, o caso de Barra Grande estaria condenado a cair no esquecimento não fosse uma situação recentemente ocorrida em nova batalha judicial, que demonstrou a total falta de seriedade na condução da política ambiental por parte do Governo Federal, bem como o nível de politização que contamina as decisões do nosso Poder Judiciário.

Para uma melhor compreensão do ocorrido, devemos recordar desdobramentos do passado recente. Quando da descoberta que o Estudo de Impacto Ambiental, realizado pela empresa Engevix, para a construção da hidrelétrica de Barra Grande era repleto de imperfeições técnicas, a ponto de não constatar a existência de milhares de hectares de florestas primárias e secundárias em avançado estágio de regeneração na região, e após organizações não-governamentais ambientalistas ingressarem na Justiça pleiteando a suspensão das licenças ambientais expedidas pelo IBAMA para o empreendimento, numa rápida manobra, sem a participação das organizações ambientalistas, foi firmado um Termo de Compromisso com o objetivo de legitimar a continuidade de um processo de licenciamento ambiental juridicamente viciado.

Nesse Termo de Compromisso, além de medidas compensatórias paliativas que jamais compensarão sequer um por cento do patrimônio nacional perdido (últimos remanescentes de mata atlântica da região sul do país), a União, através dos Ministérios do Meio Ambiente e de Minas e Energia, se comprometeu taxativamente a realizar um estudo macro, denominado Avaliação Ambiental Integrada da Bacia Hidrográfica do Rio Uruguai.

Dentre os considerandos sustentados para justificar a celebração do referido Termo de Compromisso se reconheceu a importância de se identificar e avaliar os efeitos sinérgicos e cumulativos resultantes dos impactos ocasionados pelo conjunto dos aproveitamentos em planejamento, construção e operação situados em uma mesma bacia hidrográfica.

A forma eleita pelo Termo de Compromisso para identificação e avaliação de tais efeitos sinérgicos e cumulativos na bacia hidrográfica do rio Uruguai foi a Avaliação Ambiental Integrada, que tem como objetivo, além da identificação de tais efeitos sinérgicos e cumulativos resultantes do conjunto de hidrelétricas planejadas para a bacia do rio Uruguai, também identificar os aspectos a serem abordados no âmbito dos estudos ambientais que subsidiarão o licenciamento ambiental dos futuros aproveitamentos hidrelétricos da bacia.

Assim, numa interpretação lógica, futuros licenciamentos de hidrelétricas na bacia do rio Uruguai deveriam aguardar a conclusão da Avaliação Ambiental Integrada, afinal daí sairão novos subsídios, dentro de uma visão macro, integrada, que não contemple apenas o impacto isolado de uma única hidrelétrica, mas sim do conjunto de hidrelétricas planejadas para toda bacia em questão.

Entretanto, surpreendentemente, a FEPAM, órgão ambiental estadual do Rio Grande do Sul, desconsiderando o compromisso assumido pela União, emite licenças ambientais prévias para duas outras hidrelétricas planejadas para serem construídas no rio Ijuí, denominadas Passo São João e São José, inseridas dentro da bacia do rio Uruguai, antes que se conclua a Avaliação Ambiental Integrada da bacia.

Novamente fatores econômicos falaram mais alto. Está previsto para 16 de dezembro de 2005, leilão para comercialização de energia nova, cujo requisito para participação é a de que os empreendimentos habilitados possuam licença prévia.

Inconformadas com mais esse desrespeito a direitos difusos constitucionalmente assegurados, bem como aos compromissos pactuados no Termo de Compromisso de Barra Grande, foi interposta nova ação civil pública por parte da sociedade civil organizada, no intuito de suspender as licenças prévias emitidas pela FEPAM.

A argumentação utilizada não poderia ser outra se não a de que, uma vez emitidas licenças prévias para as duas novas hidrelétricas, a viabilidade ambiental de referidos empreendimentos já terá sido atestada pelo órgão ambiental, pois este é o papel de uma licença prévia conforme determina a legislação ambiental vigente. Uma vez aprovada a viabilidade ambiental destas duas novas hidrelétricas, por parte do órgão ambiental, e considerando que seus aproveitamentos energéticos serão leiloados ao setor privado, com a garantia de viabilidade ambiental por parte do órgão competente, nada que a Avaliação Ambiental Integrada venha a dizer posteriormente será capaz de alterar o que se decidiu, ou seja que tais hidrelétricas são viáveis ambientalmente.

Posta a questão ao Poder Judiciário veio a primeira decisão. Valendo-se de princípios ecológicos fundamentais, e de uma lucidez impressionante, o Juiz Federal da Vara Ambiental, Agrária e Residual de Porto Alegre, defere liminar acatando o pedido formulado na ação civil pública referida. Em uma decisão de vanguarda, o ilustre julgador reconheceu ser imprescindível que essa prévia avaliação global (integrada) de todos os aproveitamentos hidrelétricos na bacia do rio Uruguai fosse feita, porque do contrário se estaria contrariando um princípio ecológico básico que estabelece que, em termos de meio ambiente e ecologia, o todo não é apenas a soma das partes.

Ainda, os impactos ambientais da construção de uma hidrelétrica não se restringem à sub-bacia hidrográfica daquele curso de água que foi interrompido ou daquelas terras adjacentes que serão inundadas. Esse é apenas o nível local do impacto, que deve também ser considerado quanto ao restante da bacia hidrográfica e dos ecossistemas que dependem direta ou indiretamente daquele equilíbrio. Na natureza nada é isolado ou independente, tudo depende de tudo. Da mesma forma que uma floresta não é apenas a soma das árvores que a compõe (partes), também uma hidrelétrica (parte) não produz efeitos apenas naquele local, mas alcança toda a bacia hidrográfica e respectiva região (todo). Não se poderiam considerar isoladamente apenas os impactos de cada hidrelétrica sobre um pedaço da bacia, porque o impacto final não é igual a mera soma aritmética de cada um dos impactos individualmente considerados.

Refutando todos os argumentos de defesa dos réus, decidiu o nobre julgador haver inequívoca verossimilhança no direito invocado pela associação autora, no sentido de que o licenciamento ambiental prévio das duas hidrelétricas somente poderia ser concedido a partir de uma avaliação ambiental INTEGRADA que envolvesse toda a área de abrangência do rio Uruguai, e não apenas na forma localizada como foi feito.

Entretanto, valendo-se de um recurso de cunho muito mais político do que jurídico, chamado suspensão de liminar, muito utilizado no caso da hidrelétrica de Barra Grande, a mesma União Federal que assumiu o compromisso de realizar a Avaliação Ambiental Integrada quando da tragédia de Barra Grande, recorre ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região e obtém a suspensão da execução da referida liminar concedida em primeira instância processual.

Os argumentos utilizados são os mesmos que legitimaram a continuidade de Barra Grande, como por exemplo, lesão à economia pública e necessidade premente de expansão do parque energético nacional (a qualquer custo???).

Decidiu o TRF4, que analisando o conflito dos bens jurídicos aqui defendidos, temos de um lado, a necessidade de elaboração de uma avaliação ambiental integrada em tempo hábil, em defesa do meio ambiente, cuja aplicação ao caso concreto não se descarta; de outro, a premente necessidade de expansão do setor energético, com leilões aprazados para dezembro do ano em curso, cujo embargo, sem dúvida, subtrairá qualquer credibilidade em tais investimentos.

Assim, com essa análise, o TRF4 considerou que as licenças prévias concedidas nada comprometem o estudo, já em andamento, para a Avaliação Ambiental Integrada, já que apenas (apenas???) definem que as usinas são viáveis, mas não autorizam o início das obras, que dependem de licença de instalação. Suspendeu-se, com essa argumentação, a liminar deferida em primeira instância.

Tal decisão, data maxima venia, é realmente política, não jurídica, pois nossa legislação é clara e a viabilidade ambiental é que está em jogo. Será isso que a Avaliação Ambiental Integrada dirá quando estiver concluída, ou seja, se o conjunto dos empreendimentos planejados são viáveis ou não. Para que Avaliação Ambiental Integrada se ainda pode-se decidir isoladamente que usinas planejadas na bacia do rio Uruguai são viáveis ambientalmente? Essas perguntas não foram nem serão respondidas...

Provavelmente referidas hidrelétricas participarão do leilão de energia nova marcado para 16 de dezembro, com a garantia de sua viabilidade ambiental assegurada pelo órgão ambiental competente, por meio das licenças prévias emitidas. Caso a Avaliação Ambiental Integrada conclua que referidos empreendimentos não são viáveis ambientalmente dentro de uma visão global, quem arcará com o prejuízo da empresa ou consórcio de empresas que venham a adquirir o potencial energético de referidas hidrelétricas no leilão? Simples, ninguém por que isso não acontecerá. Está provado que a Avaliação Ambiental Integrada é mero estudo pró-forma, que a própria União Federal sabe que não trará nenhuma conclusão efetiva que possa determinar alguma alteração dos velhos planos de expansão do setor energético nacional, em relação a nossa já tão comprometida bacia hidrográfica do rio Uruguai.

A prova de que nem a União Federal acredita na Avaliação Ambiental Integrada está nos autos do recente processo aqui referido, quando ela afirma não ser necessário a conclusão deste estudo macro para licenciar as hidrelétricas Passo São João e São José.

Até quando decisões jurídico-políticas patrolarão decisões judiciais de vanguarda que apenas buscam dar efetividade à aplicação de nossa legislação ambiental? Será utopia de ambientalista sonhar com um novo modelo energético, que contemple alternativas menos impactantes sob o ponto de vista sócioambiental, ou, ainda, simplesmente sonhar com uma maior seriedade na condução da política do setor? Cada vez mais parece que sim. (Rogério Rammê, Apremavi, 04/12)

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