Por que rio diante de um lago?
2005-11-30
No caso do Guaíba, a designação de rio contém tantas contradições que
não necessita navegarmos pelos conceitos mais apurados de geologia-geomorfologia
para vê-la esclarecida.
Há uma insistência de pessoas cultas chamarem o Guaíba de rio , mesmo
sabendo que é um belíssimo e singular lago. Mas, afinal de contas, para que
serve a cultura senão para montarmos nossos códigos de leitura do mundo e de nós
mesmos? Nem sempre o código seve para ler o mundo de forma coerente. Na maioria
das vezes, ele funciona como uma senha para dizer-se quem pertence ou não a um
certo grupo e quem, de fato, pode definir o nome das coisas. Corrigir uma
denominação errônea, nesses códigos, é mais difícil do que transplantar uma
figueira, como as que sombreiam as belas margens do lago.
Em épocas remotas, tais códigos deviam ter a chancela do senhor ou rei que,
mesmo não entendendo nada sobre um determinado assunto, somente a ele cabia a
prerrogativa de sancionar qualquer elemento do código. Mesmo que os sacerdotes
concluíssem que o Nilo seria um rio, poderá ter havido um faraó que resolvesse
chamá-lo de oceano. E quem se atreveria de dizer que o faraó estava, digamos,
enganado.
A vida democrática e republicana retirou da esfera do mandatário essa
prerrogativa. Mas, isso não quer dizer que um cidadão possa tomar a si a
empreitada. Para se estabelecer certas designações, há a necessidade de que
sejam coerentes com outros nomes utilizados na nomenclatura de uma determinada
classe de coisas. Um jogo fantástico que nos leva para os labirintos da
semiótica, com suas surpresas inauditas, como aquela narrada no livro O Nome da
Rosa .
No caso de Rio Guaíba é impressionante que tal designação não tenha
nenhuma coerência com a mesma classe de coisas designadas, ou seja, os eventos
geológico-geomorfológicos e, mesmo assim, se mantenha em algumas das mais
privilegiadas cabeças que lidam com códigos. É o inexplicável, ou seja, quando
alegamos motivos emocionais para tanto. Isso é possível, pois cada um, no fim
das contas, é senhor de seus próprios códigos (vale dizer, escolhas), mesmo que
isso implique uma estratégia como a de Dom Quixote.
Mas, as opções emocionais não têm a força paradigmática de cunhar os modos como
se determinam os nomes, de sorte que sua aceitação implica uma cumplicidade com
tais aleivosias. Cumplicidade esta que nunca pode ser elidida, mesmo quando
nossas opções não são emocionais. Portanto, a cumplicidade é a moeda mais
aparente desse jogo e esconde o lado em que estamos: ou de acordo com a
coerência de um código; ou cúmplices de uma designação fortuita, que se reforça
ainda mais quando foi firmada na história e decalcou a indelével subjetividade
durante tanto tempo que acabou acostumando-nos ao engano. Como dizer a alguém
que pensou ter se banhado na sua infância num imenso oceano que aquela água
pertence, de fato, a um barrento rio? Não há código que possa retirar o
sentimento oceânico delineado na infância... Mas esses sentimentos são objeto do
estupendo mundo ficcional, onde, nos ensinou Antoine de Saint-Exupèry, um
tortuoso desenho pode não representar aquilo com que mais se parece - um
chapéu -, mas sim a uma jibóia que acabara de engolir um elefante. Portanto,
somos cúmplices de uma ou outra possibilidade interpretativa.
Porém, no mundo dos códigos científicos, existem certas exigências que escapam
ao belo e contagiante jogo das palavras de uma ficção. Esse mundo cobra de um
modo particular a coerência das designações, até porque ela é capaz de corrigir
históricos enganos. Do contrário, não haveria como ter sido substituído o
milenar modelo de mundo geocêntrico pelos cientistas revolucionários do século
XVI e XVII.
No caso do Guaíba, a designação de rio contém tantas contradições que
não necessita navegarmos pelos conceitos mais apurados de geologia-geomorfologia
para vê-la esclarecida. Para qualquer guri que venha do interior e esteja
acostumado a nadar nos estreitos rios de nosso Rio Grande, na imensa maioria com
águas rápidas e sibilinas, leitos rochosos e margens cascalhentas, como as do
Uruguai ou do Antas, do Ligeiro ou do Vacacaí, deparar-se com a largueza e a
mansidão do Guaíba, com suas margens arenosas e lamacentas, caprichosamente
recortadas em inúmeras enseadas, é encontrar algo que não pode ser designado da
mesma maneira, pois não coincide nem na forma nem na dinâmica com tudo o que até
então conhecera. Mesmo considerando o manso Jacuí, suas margens sinuosas são
razoavelmente paralelas, conformando nitidamente um canal que aperta as águas
barrentas. Tais margens não possuem pontas e enseadas, nem paredões rochosos que
se precipitam num espelho dágua, mas uma estreita planície fluvial ladeada por
morros testemunhos dos planaltos Meridional, à esquerda, e do Escudo
Sul-Rio-Grandense, à direita. Não há como se enganar diante do Guaíba, com sua
superfície ondulada pela força do vento e, nos dias abafadiços e quietos do
verão, quase um espelho a refletir as cortinas coloridas do entardecer. Margens
nada paralelas e simétricas como as de um canal fluvial.
Essa comparação com os corpos d’água do entorno de uma região é importante, pois
se há uma tendência de que o caráter dos rios de nosso Continente é constituído
por formas tão assimétricas e recortadas como as do Guaíba, haveremos, então, de
seguir tal ímpeto e designar de outra forma as feições que não correspondem a
isso - eis uma regra do código. O primeiro relato que temos de uma comparação de
tal tipo foi feita pelo insígne Auguste Saint-Hilaire, ainda em 1820, em sua
narrativa Viagens pelo Rio Grande do Sul. Se a primeira impressão é a que conta,
ao ver tão imponente corpo d’água desde o alto de um morro próximo a sua margem,
talvez na ponta do Dionísio, anuiu completamente com a designação então dada
naquela época: Lago de Viamão ou, conforme outros preferiam, Lago de Porto
Alegre, mas, de qualquer forma, lago. Foi quando Saint-Hilaire encontrou-se com
o intendente da Província - aqui no Continente quase um Faraó -, que a desdita
foi feita. Ao comentar com o intendente o quão grande era o Lago de Viamão, ou
de Porto Alegre, depois de ter navegado da capital até Rio Grande, o mandatário
poderoso corrigiu-o dizendo que o corpo maior, ao sul, tinha o nome de Lagoa dos
Patos.
- Mas, então, quem é o corpo dágua em cuja margem situa-se Porto Alegre?-,
perguntou surpreso Saint-Hilaire.
- O Rio Guaíba-, disse-lhe o intendente com peremptoriedade.
Nesse caso, escreveu resignado Saint Hilaire, considere o leitor as
designações Lago de Viamão ou de Porto Alegre , escritas
anteriormente, como sendo Rio Guaíba.
Se o livro de Saint Hilaire é lido até essa passagem que diz respeito ao Rio
Grande, pois na seqüência ele narra sobre sua viagem ao vizinho Uruguai, esse é
o veredicto do grande sábio francês: foi cúmplice do intendente, porém sem
sabermos se por razões fortuitas - não confrontar o poderoso mandante da
província - ou científicas.
Mas, se lermos essa obra até o seu final, saberemos que ele retornou para o
nosso estado, pegou um barco e desceu o Jacuí, serpenteando pelos canais do
Delta e adentrando no Guaíba. Após essa experiência comparativa, Saint-Hilaire
escreveu:
- Me desculpe o intendente, mas o Guaíba é um lago, como foi possível confirmar
com minha recente incursão a partir do Jacuí.-
Contudo, essa parte do relato ficou no olvido, talvez porque desdizer o
intendente fosse por demais perigoso naquela época de adagas e degolas.
Existem muitas outras razões para mostrarmos a tremenda confusão do intendente,
que nos levariam a imergir nos códigos das ciências geológicas, gemorfológicas e
botânicas e que nos mostrariam que o Guaíba é um lago de formação raríssima no
nosso planeta. Mas a impressão subjetiva do guri, que coincide com a designação
objetiva do sábio, parece suficiente para essa breve prosa. (Rualdo Menegat,
Ecoagência, 28/11)