(29214)
(13458)
(12648)
(10503)
(9080)
(5981)
(5047)
(4348)
(4172)
(3326)
(3249)
(2790)
(2388)
(2365)
2005-11-30
No caso do Guaíba, a designação de rio contém tantas contradições que não necessita navegarmos pelos conceitos mais apurados de geologia-geomorfologia para vê-la esclarecida.

Há uma insistência de pessoas cultas chamarem o Guaíba de rio , mesmo sabendo que é um belíssimo e singular lago. Mas, afinal de contas, para que serve a cultura senão para montarmos nossos códigos de leitura do mundo e de nós mesmos? Nem sempre o código seve para ler o mundo de forma coerente. Na maioria das vezes, ele funciona como uma senha para dizer-se quem pertence ou não a um certo grupo e quem, de fato, pode definir o nome das coisas. Corrigir uma denominação errônea, nesses códigos, é mais difícil do que transplantar uma figueira, como as que sombreiam as belas margens do lago.

Em épocas remotas, tais códigos deviam ter a chancela do senhor ou rei que, mesmo não entendendo nada sobre um determinado assunto, somente a ele cabia a prerrogativa de sancionar qualquer elemento do código. Mesmo que os sacerdotes concluíssem que o Nilo seria um rio, poderá ter havido um faraó que resolvesse chamá-lo de oceano. E quem se atreveria de dizer que o faraó estava, digamos, enganado.

A vida democrática e republicana retirou da esfera do mandatário essa prerrogativa. Mas, isso não quer dizer que um cidadão possa tomar a si a empreitada. Para se estabelecer certas designações, há a necessidade de que sejam coerentes com outros nomes utilizados na nomenclatura de uma determinada classe de coisas. Um jogo fantástico que nos leva para os labirintos da semiótica, com suas surpresas inauditas, como aquela narrada no livro O Nome da Rosa .

No caso de Rio Guaíba é impressionante que tal designação não tenha nenhuma coerência com a mesma classe de coisas designadas, ou seja, os eventos geológico-geomorfológicos e, mesmo assim, se mantenha em algumas das mais privilegiadas cabeças que lidam com códigos. É o inexplicável, ou seja, quando alegamos motivos emocionais para tanto. Isso é possível, pois cada um, no fim das contas, é senhor de seus próprios códigos (vale dizer, escolhas), mesmo que isso implique uma estratégia como a de Dom Quixote.

Mas, as opções emocionais não têm a força paradigmática de cunhar os modos como se determinam os nomes, de sorte que sua aceitação implica uma cumplicidade com tais aleivosias. Cumplicidade esta que nunca pode ser elidida, mesmo quando nossas opções não são emocionais. Portanto, a cumplicidade é a moeda mais aparente desse jogo e esconde o lado em que estamos: ou de acordo com a coerência de um código; ou cúmplices de uma designação fortuita, que se reforça ainda mais quando foi firmada na história e decalcou a indelével subjetividade durante tanto tempo que acabou acostumando-nos ao engano. Como dizer a alguém que pensou ter se banhado na sua infância num imenso oceano que aquela água pertence, de fato, a um barrento rio? Não há código que possa retirar o sentimento oceânico delineado na infância... Mas esses sentimentos são objeto do estupendo mundo ficcional, onde, nos ensinou Antoine de Saint-Exupèry, um tortuoso desenho pode não representar aquilo com que mais se parece - um chapéu -, mas sim a uma jibóia que acabara de engolir um elefante. Portanto, somos cúmplices de uma ou outra possibilidade interpretativa.

Porém, no mundo dos códigos científicos, existem certas exigências que escapam ao belo e contagiante jogo das palavras de uma ficção. Esse mundo cobra de um modo particular a coerência das designações, até porque ela é capaz de corrigir históricos enganos. Do contrário, não haveria como ter sido substituído o milenar modelo de mundo geocêntrico pelos cientistas revolucionários do século XVI e XVII.

No caso do Guaíba, a designação de rio contém tantas contradições que não necessita navegarmos pelos conceitos mais apurados de geologia-geomorfologia para vê-la esclarecida. Para qualquer guri que venha do interior e esteja acostumado a nadar nos estreitos rios de nosso Rio Grande, na imensa maioria com águas rápidas e sibilinas, leitos rochosos e margens cascalhentas, como as do Uruguai ou do Antas, do Ligeiro ou do Vacacaí, deparar-se com a largueza e a mansidão do Guaíba, com suas margens arenosas e lamacentas, caprichosamente recortadas em inúmeras enseadas, é encontrar algo que não pode ser designado da mesma maneira, pois não coincide nem na forma nem na dinâmica com tudo o que até então conhecera. Mesmo considerando o manso Jacuí, suas margens sinuosas são razoavelmente paralelas, conformando nitidamente um canal que aperta as águas barrentas. Tais margens não possuem pontas e enseadas, nem paredões rochosos que se precipitam num espelho dágua, mas uma estreita planície fluvial ladeada por morros testemunhos dos planaltos Meridional, à esquerda, e do Escudo Sul-Rio-Grandense, à direita. Não há como se enganar diante do Guaíba, com sua superfície ondulada pela força do vento e, nos dias abafadiços e quietos do verão, quase um espelho a refletir as cortinas coloridas do entardecer. Margens nada paralelas e simétricas como as de um canal fluvial.

Essa comparação com os corpos d’água do entorno de uma região é importante, pois se há uma tendência de que o caráter dos rios de nosso Continente é constituído por formas tão assimétricas e recortadas como as do Guaíba, haveremos, então, de seguir tal ímpeto e designar de outra forma as feições que não correspondem a isso - eis uma regra do código. O primeiro relato que temos de uma comparação de tal tipo foi feita pelo insígne Auguste Saint-Hilaire, ainda em 1820, em sua narrativa Viagens pelo Rio Grande do Sul. Se a primeira impressão é a que conta, ao ver tão imponente corpo d’água desde o alto de um morro próximo a sua margem, talvez na ponta do Dionísio, anuiu completamente com a designação então dada naquela época: Lago de Viamão ou, conforme outros preferiam, Lago de Porto Alegre, mas, de qualquer forma, lago. Foi quando Saint-Hilaire encontrou-se com o intendente da Província - aqui no Continente quase um Faraó -, que a desdita foi feita. Ao comentar com o intendente o quão grande era o Lago de Viamão, ou de Porto Alegre, depois de ter navegado da capital até Rio Grande, o mandatário poderoso corrigiu-o dizendo que o corpo maior, ao sul, tinha o nome de Lagoa dos Patos.

- Mas, então, quem é o corpo dágua em cuja margem situa-se Porto Alegre?-, perguntou surpreso Saint-Hilaire.

- O Rio Guaíba-, disse-lhe o intendente com peremptoriedade.

Nesse caso, escreveu resignado Saint Hilaire, considere o leitor as designações Lago de Viamão ou de Porto Alegre , escritas anteriormente, como sendo Rio Guaíba.

Se o livro de Saint Hilaire é lido até essa passagem que diz respeito ao Rio Grande, pois na seqüência ele narra sobre sua viagem ao vizinho Uruguai, esse é o veredicto do grande sábio francês: foi cúmplice do intendente, porém sem sabermos se por razões fortuitas - não confrontar o poderoso mandante da província - ou científicas.

Mas, se lermos essa obra até o seu final, saberemos que ele retornou para o nosso estado, pegou um barco e desceu o Jacuí, serpenteando pelos canais do Delta e adentrando no Guaíba. Após essa experiência comparativa, Saint-Hilaire escreveu:

- Me desculpe o intendente, mas o Guaíba é um lago, como foi possível confirmar com minha recente incursão a partir do Jacuí.-

Contudo, essa parte do relato ficou no olvido, talvez porque desdizer o intendente fosse por demais perigoso naquela época de adagas e degolas.

Existem muitas outras razões para mostrarmos a tremenda confusão do intendente, que nos levariam a imergir nos códigos das ciências geológicas, gemorfológicas e botânicas e que nos mostrariam que o Guaíba é um lago de formação raríssima no nosso planeta. Mas a impressão subjetiva do guri, que coincide com a designação objetiva do sábio, parece suficiente para essa breve prosa. (Rualdo Menegat, Ecoagência, 28/11)

desmatamento da amazônia (2116) emissões de gases-estufa (1872) emissões de co2 (1815) impactos mudança climática (1528) chuvas e inundações (1498) biocombustíveis (1416) direitos indígenas (1373) amazônia (1365) terras indígenas (1245) código florestal (1033) transgênicos (911) petrobras (908) desmatamento (906) cop/unfccc (891) etanol (891) hidrelétrica de belo monte (884) sustentabilidade (863) plano climático (836) mst (801) indústria do cigarro (752) extinção de espécies (740) hidrelétricas do rio madeira (727) celulose e papel (725) seca e estiagem (724) vazamento de petróleo (684) raposa serra do sol (683) gestão dos recursos hídricos (678) aracruz/vcp/fibria (678) silvicultura (675) impactos de hidrelétricas (673) gestão de resíduos (673) contaminação com agrotóxicos (627) educação e sustentabilidade (594) abastecimento de água (593) geração de energia (567) cvrd (563) tratamento de esgoto (561) passivos da mineração (555) política ambiental brasil (552) assentamentos reforma agrária (552) trabalho escravo (549) mata atlântica (537) biodiesel (527) conservação da biodiversidade (525) dengue (513) reservas brasileiras de petróleo (512) regularização fundiária (511) rio dos sinos (487) PAC (487) política ambiental dos eua (475) influenza gripe (472) incêndios florestais (471) plano diretor de porto alegre (466) conflito fundiário (452) cana-de-açúcar (451) agricultura familiar (447) transposição do são francisco (445) mercado de carbono (441) amianto (440) projeto orla do guaíba (436) sustentabilidade e capitalismo (429) eucalipto no pampa (427) emissões veiculares (422) zoneamento silvicultura (419) crueldade com animais (415) protocolo de kyoto (412) saúde pública (410) fontes alternativas (406) terremotos (406) agrotóxicos (398) demarcação de terras (394) segurança alimentar (388) exploração de petróleo (388) pesca industrial (388) danos ambientais (381) adaptação à mudança climática (379) passivos dos biocombustíveis (378) sacolas e embalagens plásticas (368) passivos de hidrelétricas (359) eucalipto (359)
- AmbienteJá desde 2001 -