Gravidez de risco
2005-11-29
O verão atrai para o litoral as raias-viola. Elas vão parir nos próximos meses,
bem pertinho da praia, depois de um ano de gestação. É o momento em que chegam
também os pescadores, que provocam verdadeira chacina no berçário. Esses peixes
vivem entre São Paulo e a Argentina, mas é na costa gaúcha que se concentram.
Tanto que somente no Rio Grande do Sul a pescaria de raias se mantém como uma
tradição.
A raia-viola estará nas peixarias do Mercado Público de Porto Alegre até o final
de novembro, como acontece todo ano. É um dos peixes mais baratos nas bancas,
por volta de R$ 4,00 o quilo. Longe de ser uma carne nobre, geralmente é usada
no preparo de bolinhos. Comercializada para vários estados brasileiros, por
empresas regulares e também por clandestinas, a espécie Rhinobatos horkelii
está na lista oficial de animais ameaçados de extinção no Rio Grande do Sul.
– Os peixes são negligenciados na legislação brasileira de proteção à fauna. Não
são considerados como fauna, mas como recursos pesqueiros. A raia-viola é uma
das exceções. Há pouco mais de um ano está protegida por lei, pela Instrução
Normativa 5 do Ministério do Meio Ambiente. A pesca é crime ambiental. Mas o que
fazer com os pescadores que tradicionalmente pescam? Prendê-los?-, pergunta o
oceanógrafo Sandro Klippel, da ONG gaúcha Igaré.
Entre 2001 e 2005, Klippel integrou a equipe do projeto Salvar Seláquios do
Sul do Brasil , da Universidade Federal de Rio Grande (FURG). Seláquios é o
nome da subclasse de peixes formada por tubarões e raias, que têm em comum o
fato de serem predadores e cartilaginosos. A pesquisa foi coordenada por Klippel
e pelo biólogo Carolus Maria Vooren em cerca de 800 quilômetros da costa entre o
Cabo de Santa Marta, em Santa Catarina, e o Chuí, no Rio Grande do Sul. Os
resultados serão publicados até o final do ano em um livro editado pela
universidade, que terá o título Ações para a conservação de tubarões e raias
da Plataforma Sul e distribuição gratuita para instituições.
Segundo o oceanógrafo, as raias – ou arraias – vivem o resto do ano a cerca de
180 quilômetros da praia e em profundidades de até 200 metros. Ou seja, bastante
protegidas da predação humana. Mas quando chega o verão, começam a se aproximar
do litoral, onde permanecem um mês, grávidas. É aí que viram pescaria farta e
fácil.
Os partos, de em média sete filhotes, geralmente ocorrem em janeiro e fevereiro.
O desenvolvimento dos embriões se completa nas águas costeiras, em profundidades
menores que 20 metros. Após nova fecundação, em março, as que sobram da matança
voltam a migrar para águas mais frias e profundas, onde permanecem até o próximo
verão.
Criticamente em perigo
Existem vários tipos de pescaria da raia-viola. O método rede de arrastão
é o mais usado no litoral sul do estado. Uma rede de malha fina com 800
metros de largura é jogada a cerca de 300 metros da praia, cercando o cardume.
Nas praias ao norte, é preferida a malha mais larga, que prende o animal quando
ele tenta atravessá-la. Muitos pescadores costumam abrir os peixes para a
retirada das vísceras e dos filhotes, descartando-os como lixo.
– Nos últimos 20 a 30 anos, o número de raias no estado diminuiu de 85% a 90%, e
embora a espécie apareça na categoria vulnerável, com alto risco de extinção
, no Livro Vermelho da Fauna Ameaçada de Extinção no Rio Grande do Sul, nós
sabemos que já chegou à categoria criticamente em perigo , que significa
risco extremo de extinção-, ressalta Sandro Klippel.
O livro informa que a população da raia-viola está em declínio. O desembarque da
espécie no porto de Rio Grande aumentou de 100 toneladas, em 1960, para 1.300
toneladas em 1980. A obra acentua a ineficiência da fiscalização, embora existam
inúmeras portarias emitidas pelos órgãos federais responsáveis pelo controle
de pesca, que regulamentam aspectos como o tamanho mínimo permitido, época de
defeso, artes de pesca consideradas predatórias, limitação do esforço de pesca,
entre outros .
Um dos indícios da redução da população é o crescente esforço dos pescadores,
ano após ano, para capturar o mesmo número de animais. Outros foram colhidos nas
expedições científicas realizadas desde 2001, a última recém-chegada ao porto de
Rio Grande.
Para Sandro Klippel, uma das formas de enfrentar o problema é a criação de áreas
de proteção integral no mar, como a que existe em Abrolhos. Outra é a educação
dos consumidores de peixes, para que deixem de comprar a espécie. – Os peixes
não são belos e não têm o apelo das onças e micos-leões dourados, por isso não
temos muitos parceiros na luta pela proteção. A opinião pública não liga muito
para as espécies marinhas, com exceções de golfinhos e baleias-, lamenta. Ele
lembra que os 8 milhões de km² da área terrestre nacional têm 7% protegidos por
unidades de conservação, enquanto os 3 milhões de km² do Atlântico brasileiro só
têm resguardados 0,39%.
A chefe do escritório regional do Ibama em Rio Grande, Maria Odete Pereira, diz
que a fiscalização não é suficiente para evitar a chacina. – Temos autuado e
apreendido pescado, mas infelizmente depois da pesca. O problema é que a
Instrução Normativa 5 foi criada de cima para a baixo. Se tivesse sido criada em
conjunto com os pescadores, seria mais fácil que eles entendessem que precisam
desse recurso e por isso precisam preservá-lo. Eles não são marginais. O que
fazem é minimizar a situação, que consideram de pouca importância.-
Maria Odete diz que é comum encontrar em restaurantes peixes provenientes da
atividade proibida. – A gente encontra raia-viola até mesmo em restaurantes
naturebas que têm proposta a favor da ecologia. A comunidade está
totalmente desinformada sobre a proibição de pesca de certos peixes. A sociedade
precisa ser responsabilizada, mas isso só se consegue com informação e com a
construção de regras junto com os pescadores e armadores-, queixa-se. (Cristina
Ávila, O Eco, 26/11)