Incineradores, a violência retorna?
2005-11-29
Em Porto Alegre, os incineradores encontraram uma tradição de trinta anos de
combate ao autoritarismo político, luta contra a empresa de celulose e
conscientização contra os agrotóxicos, consolidados em um autêntico movimento
ambientalista.
Nos países industriais a aceitação de uma nova tecnologia seguia duas vertentes:
- Aquela que a incorporava de forma imediata por suas vantagens e avanços.
- Outra, onde os países exigiam uma garantia prévia de que não haveria risco
para a saúde, meio ambiente e sociedade com a sua aceitação.
Nos países pobres, a situação era híbrida, os governos caricatos e submissos
aceitavam incondicionalmente o novo, enquanto a cidadania questionava seriamente
sobre os impactos negativos, de acordo com sua liberdade e grau de cidadania.
Muitas são as interpretações do porque destas dicotomias e suas variantes. Quem
melhor as definiu foi Mao Tse Tung, ao colocar em seu livrinho vermelho: – A
tecnologia não é boa ou má. Ela causa impactos e, em uma sociedade desigual, os
impactos da tecnologia aumentam a desigualdade-.
Sou ambientalista e, como todos, gosto das coisas claras. No início da década de
80, durante treinamento de resíduos tóxicos em alimentos e ambiente, na Alemanha,
aprendi que as bandejas de isopor (styropor) foram proibidas nos supermercados
como embalagens de alimentos frescos (carnes, verduras, hortaliças), pois esse
polímero contaminava os mesmos, causando danos à saúde (câncer). Recordo-me que,
em sala de aula, fazíamos o teste espremendo as cascas de laranja, limão e
outros citros para demonstrar como os ácidos contidos nessas frutas dissolvem a
parede do styropor. O mesmo se passava com o Tetrapak, considerado altamente
poluente ambiental, e com os riscos de Dioxinas, que levaram ao fechamento da
Boeringer-Ingelheimer, em Hamburg.
Antes, um país rico ou pobre, impunha sua norma para a permissão de um novo
produto, criava barreira para as empresas.
Agora, após a nova Ordem da Rodada Uruguai e criação da Organização Mundial do
Comércio (OMC), os Estados Nacionais não têm esse tipo de poder e as empresas
podem comercializar livremente seus produtos, sem as intromissões do mercado e
da livre iniciativa. É por isso que todas as sopas, cafés, chás, pratos e
bandejas de comidas são servidos em isopor (styropor); as embalagens mais
comercializadas são as de Tetrapak e ninguém questiona os agrotóxicos fabricados
na China com alto conteúdo de Dioxinas.
A ciência e a imprensa, que alertavam para os danos agora estão mudas. A
repercussão dos danos, a exemplo do cigarro sobre a saúde, fica em segundo plano.
Não interessa a presença de substâncias que dissolvem o styropor, nem a longa
vida do Tetrapak ou os riscos das Dioxinas.
O mundo mudou, mudamos nós e mudou o objetivo primeiro do Estado Nacional.
Entretanto, o exemplo da Talidomida não pode ser esquecido, pois, por economia,
as empresas pouparam os ensaios nas macacas grávidas. Nos países pobres, hoje,
seu uso em mulheres vítimas de hanseníase continua trazendo ao mundo crianças
mutiladas.
Nós, ambientalistas, sempre tivemos discernimento das situações, antes e depois
da criação da OMC. Mas, agora, temos visto situações inusitadas, amparadas mais
na ousadia corrupta que nos impactos das mudanças mencionadas.
Em 1990, chamaram-me para assumir o cargo de Supervisor de Meio Ambiente na
Prefeitura Municipal de Porto Alegre (PMPA). Aceitei o desafio, mas não o
pagamento, para evitar a promiscuidade e manter a independência e liberdade de
ambientalista, em meio a muitos políticos e jovens disfarçados de ambientalistas,
para esconder seu desenvolvimentismo periférico enrustido.
Em pouco tempo vimos um sujeito que, por possuir uma carteirinha partidária e
dizendo-se inventor, vender para a PMPA um incinerador de lixo urbano, cujo
projeto não existia. Era um antigo destilador de cavacos de madeira, que fora
transformado e mantinha o efeito bomba . Tentaram calar nossos alertas
com arrogância, prepotência e ignorância. Vimos todo um arcabouço de politicagem
e corrupção se organizando, para proteção do interesse do inventor. O negócio
foi feito e pago antecipadamente, mas não pode ser instalado.
Provocamos uma CPI na Câmara Municipal e, embora o dinheiro não tenha sido
devolvido, terminamos a patifaria, pois conhecíamos as passeatas na Alemanha
contra a incineração e os relatórios sobre as Dioxinas Cloradas. Caímos fora
daquele ambiente.
Agora recebo o convite para assistir o seminário de comerciantes de
incineradores, que vai atender a política nacional de resíduos sólidos ,
organizado por uma entidade ambiental que se transmuta ou ressurge através da
venda e serviços de projetos. O mundo, onde se alardeia que pessoas vivem com
menos de dois dólares/dia é extremamente pródigo. Que tem dois dólares a ver com
viver bem? Nada.
No Fórum Social Mundial assistimos a uma Oficina sobre a Sustentabilidade da
Soja na Amazônia, neste mesmo estilo de baixezas e rasteiras. O promotor era um
membro da comissão de economia do Conselho de Meio Ambiente e se fazia de
ingênuo. Como todo empresário, se preocupava com o seu.
Os governantes precisam complementar suas carências: usam ONGs ambientalistas de
aluguel. Logo, as empresas de tecnologia são sabedoras disso e, com habilidade,
usam mecanismos de polarização para fazer com que os governos nos países
industriais ricos e as elites autoritárias nos países pobres se posicionem
favoravelmente aos seus interesses.
O interessante é como enfrentam os governos e seus aparelhos nos países
industriais ricos e a sociedade civil organizada nos países pobres.
Na questão dos incineradores, a situação seguiu os mesmos passos dos alemães,
escandinavos e europeus.
Em Porto Alegre, os incineradores encontraram uma tradição de trinta anos de
combate ao autoritarismo político, luta contra a empresa de celulose e
conscientização contra os agrotóxicos, consolidados em um autêntico movimento
ambientalista sem par em qualquer outro país, tanto industrial rico ou país
pobre.
Em meio à crise internacional de poluição e devastação, e transição na mudança
da ordem internacional da guerra fria, essa sociedade civil organizada gaúcha
transmutava-se em Estado, governo, meios de informações e escola, quase que
instantânea e simultaneamente.
As grandes empresas de tecnologia não esperavam este tipo de estrutura mutante
e contavam com a fascinação, estupefação, falta de informações e indução
hedonista do consumidor.
Por outro lado, ela contava encontrar obscurantistas, avessos ao progresso,
ciência e tecnologia: opositores fáceis de combater. Não encontrou isso no sul
do país. Ao contrário, havia uma grande massa crítica acumulada pelo episódio da
Borregaard, construção de uma proposta de agricultura alternativa à agricultura
industrial e seus insumos poluentes e venenosos.
Nossa estratégia foi observar as mudanças internacionais, desde ascensão de J.
PauloII/Tatcher/Reagan, e estudar par e passo a instalação da nova ordem
internacional, dando fim à Rodada Tóquio e iniciando a Rodada Uruguai. Vimos às
conseqüências: queda do Muro de Berlim e fim da URSS, fim das ditaduras lacaias,
fim das inflações de três dígitos, diminuição do Estado nacional e mídia massiva
sobre as vantagens do Livre Comércio internacional.
Nossa lógica era não permitir que o tema fosse tratado de forma elitista, por
entidades ambientalistas ou congêneres, como planejaram e desejaram as poderosas
transnacionais de incineração. Derrotamo-os no governo Collor, impedindo a
instalação com dinheiro público de inúmeros incineradores.
A resposta programada seria dada pela sociedade civil organizada, células fortes
da sociedade na composição do Estado.
Vencemos as primeiras batalhas com informação de ótima qualidade e atualidade,
além de politizada e ciência contextualizada. Mas não imaginávamos que fosse tão
fácil, nem que a grande maioria dos opositores, nas universidades e institutos
de pesquisas, agisse como segmento de interesse, sem qualidade e atuando como
mídia.
É bem verdade que não esperávamos o oportunismo de partidos políticos,
interessados em aparelhar a luta como bandeira de sua grei ou corrupção
administrativa. Inclusive advertimos o nefasto desta ação.
No início, recebemos como aliados táticos militantes soberbos, desinformados e
pouco éticos, que tinham como função apenas aparelhar a luta ambiental pelo
partido. Agora é fácil desmascará-los, como foi feito em São Leopoldo na XXIII
Reunião das Entidades Ambientalistas, citando Joseph Konrad.
Paga-se a entidade deslocada pelo abandono de seu líder, para que ressurja e
promova com dinheiro de parceria público-privada a discussão faz-de-conta
para consolidar os interesses segmentários e transformá-los em política
pública de incineradores (geradores de TCDD, Dioxinas Halogenadas, benzofuranos
halogenados e similares). Isto não é nada honesto, nem inteligente.
Recebi o convite para o evento, que tive que ir retirar no correio. Talvez, um
ardil, para evitar minha reação ao evento.
Não irei convalidar, com minha presença, os interesses comerciais deste tipo de
gente, mas lembro que o Incinerador de Plasma Alemão, idêntico aos que agora são
propostos aqui, como política de governo, estavam autorizados para instalação em
Acapulco no México, mas foram eliminados e as alternativas passaram a ser:
- educação ambiental;
- reciclagem de lixo doméstico e industrial;
- apoio à organização dos catadores de lixo (pepenadores), graças a ação dos
Guerreiros Verdes da Dra. Elena Kahn, engenheiro agronomo Jairo Restrepo e
nossa pessoa.
No livro Ética Ecológica , coordenado por Jorge Riechmann, há um artigo
do filósofo H. Acselrad, que diz: – Ante los indicadores de lo que um
pensamiento dominante considera el núcleo del problema ambiental – el
desperdício de matéria y energia -, empresas y gobiernos tienden a impulsar
acciones de la llamada modernización ecológica , destinadas
esencialmente a promover uma mayor eficiência y la activación de nuevos mercados.
Tratan así de actuar basicamente em el âmbito de la lógica econômica,
atribuyendo al mercado la capacidad institucional de resolver la degradación
ambiental, economizando el médio ambiente y abriendo mercados a nuevas
tecnologias proclamadas limpias. Se celebra el mercado, se consagra el consenso
político y se promeve el progreso técnico2 -.
Gostaríamos que houvesse uma discussão decente, diferente sobre as molecagens que estão sendo feitas sobre
eucalipto – e os amigos da floresta – ou o Agrinho nas escolas do Rio
Grande do Sul.
A questão não é política, nem ordem internacional, é apenas de caráter,
competência e honestidade. (Sebastião Pinheiro, Ecoagência, 27/11)