Gestão privada da água não é descartada em fórum sobre a Bacia do Prata
2005-11-28
Os recursos hídricos do planeta, sua gestão e os desafios postos pelo seu escasseamento estarão novamente na pauta da agenda mundial no ano que vem, quando, em março, ocorre o IV Fórum Mundial da Água, na Cidade do México. O evento, que não é parte das atividades oficiais das Nações Unidas, mas deve contar com uma reunião ministerial, um encontro de parlamentares e outro de autoridades regionais, desta vez quer debater ações locais para um plano global de gestão, aprofundando discussões como o uso da água para o desenvolvimento, a problemática do acesso ao saneamento e à água potável e os riscos das catástrofes naturais como furacões e inundações, além de formas de prevenir maiores danos.
A escolha do México como país-sede deve aferir ao encontro um forte caráter latino-americano, avaliam os organizadores, e os debates preparatórios, como o Diálogos da Bacia do Prata, seminário que reuniu representantes de Brasil, Uruguai, Paraguai, Argentina e Bolívia em Foz do Iguaçu, na semana passada (até 25/11), devem apontar algumas diretrizes a serem apresentadas no Fórum.
Um dos pontos de maior relevância no evento mexicano, ainda que pouco discutido de forma explícita em Iguaçu, deve ser o debate sobre a quem cabe a competência da gestão das águas e de que forma ela poderá ter maior efetividade.
Sobre esse tema, há concordância plena dos cinco países de que as águas devem ser tratadas como patrimônio soberano dos Estados onde se encontram, o que se contrapõe à tese, defendidas de forma mais ou menos explícita por países desenvolvidos, de que os reservatórios de água, principalmente os subterrâneos, como o Aqüífero Guarani, poderão ser considerados patrimônio da humanidade e portanto sua gestão extrapolaria os governos domésticos. Já o ponto sobre a efetividade de um gerenciamento público das águas – em termos de saneamento e fornecimento de água potável à população – frente ao afã liberalizante e privatizador dos serviços públicos, não é consensual.
Para o presidente Pro Tempore do Comitê Intergovernamental Coordenador dos Países da Bacia do Prata (CIC), o boliviano Arturo Baldivieso, existe um fator importante a ser levado em conta nesta discussão, que é a necessidade de investimentos na infra-estrutura de saneamento básico e fornecimento de água. Neste sentido, é fundamental que os consumidores tenham em mente que é preciso pagar pelo uso da água, um recurso finito que tem valor de mercado.
— Por isso acho que os municípios têm que ter um papel fundamental na garantia do acesso aos serviços fundamentais. Mas vai acontecer aí um conflito, porque estamos em um modelo de livre-mercado em que se tenta impor as privatizações - pondera.
Posição mais radical teria sido defendida anteriormente pelo argentino Miguel Solanes, assessor da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), convidado para o evento (ao qual acabou não comparecendo). Segundo a assessoria de imprensa do seminário, Solanes teria defendido que privatizar não é bom nem ruim. A questão é como o processo é feito, uma vez que a água é um negócio.
— É preciso discutir até que ponto as empresas internacionais devem estar sujeitas às regras do país – porque a empresa será mais cuidadosa e mais eficiente se tiver que assumir riscos. Se alguém está superprotegido não será eficiente, porque não se preocupará com riscos - teria afirmado Solanes.
Para o coordenador do Fórum Mundial sobre a Água, o mexicano Miguel Herrera, o evento estará aberto para o debate. Ele também acredita que o fundamental é discutir o financiamento da infra-estrutura necessária, que já não ela pode estar a cargo apenas dos governos.
— Não quero dizer com isso que sou a favor da privatização, mas acho que é possível se colocar regras claras para as empresas do setor. Claro, se existe uma área da cidade onde se concentram hotéis e outra onde estão as favelas, é natural que uma empresa privada queira beneficiar a primeira. Por isso a necessidade de regulamento, que obrigue também ao atendimento das favelas.
Para o sanitarista mineiro João Bosco Senre, secretário nacional de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente, há que se abrir mais o diálogo com a sociedade civil sobre a questão da gestão das águas, principalmente frente à crescente demanda de participação. Segundo ele, a legislação brasileira é clara quanto ao caráter público da água, mas, como os serviços de saneamento são responsabilidade dos poderes locais, abriram-se brechas para o setor privado.
— O governo incluiu o saneamento nas Parcerias Público-privadas (PPPs), por exemplo. Mas como sanitarista eu sou contra. Temos excelentes empresas públicas que prestam um serviço adequado. E na compreensão de que saneamento é saúde, é saúde preventiva, quando a empresa é publica tem mais responsabilidade de levar a água, principalmente para as pessoas mais pobres. É uma extensão do serviço de saúde, e saúde é responsabilidade do Estado. Não é o caso de se limitar a gestão das águas ao setor público, mas de se conscientizar a população. Na Bahia e em Minas Gerais, por exemplo, não houve privatização porque a sociedade se opôs.
Segundo Senre, porém, existem brechas para a entrada das empresas privadas na gestão da água porque há diferentes concepções de governo. Mas ele pondera que existe uma diferença entre á água como bem público e os serviços prestados no setor.
— Uma coisa é gestão dos recursos hídricos, a água, que no Brasil é um bem público, outra coisa são os serviços de saneamento. O saneamento é usuário dos recursos hídricos. A gestão no Brasil é pública, qualquer um que lide com a água tem que ter autorização do governo, seja município, Estado ou empresa privada. Isso garante o controle público sobre a água. E se a outorga não estiver sendo bem utilizada, ela pode ser cassada.
Sobre a posição do governo brasileiro no Fórum Mundial da Água, Senre adianta que o país deve apresentar uma proposta de estratégia comum de gestão das águas na América Latina e no Caribe. Segundo ele, esse projeto deve apresentar um diagnóstico dos recursos hídricos na região, a partir do qual se deverão discutir legislações comuns e as formas em que o manejo das águas em um país impacta os outros que compartilham de bacias ou mananciais. (Agência Carta Maior, 25/11)