Água: valor biológico deve ser maior que o econômico
2005-11-28
Para além das políticas de co-gestão dos recursos hídricos transfronteiriços, debate que vem sendo considerado estratégico pelos governos do Brasil, Uruguai, Paraguai, Argentina e Bolívia - que dividem uma das maiores bacias hidrográficas do continente, a Bacia do Prata -, setores da sociedade civil demandam um outro olhar na discussão sobre a água.
Roberto Malvezzi, coordenador nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e um dos idealizadores da campanha da fraternidade da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) de 2004, que trabalhou o tema Águas para a Vida, vive há décadas no semi-árido nordestino e conhece como poucos a realidade da seca e as possibilidades de seu combate na região. Mas anterior aos aspectos técnicos e políticos que envolvem o tema, avalia, está um novo paradigma no tratamento da questão que demanda uma revisão conceitual: há que se fazer uma distinção entre recursos hídricos e água.
— A água está na natureza e é anterior a todas as formas de vida. Mas é também parte fundamental da vida, compõe 70% do corpo humano, por exemplo. Assim, temos que incluir no debate sobre a água um princípio ético, que reconhece o seu valor natural e biológico, seu valor social - uma população sem água não tem paz -, cultural e religioso. Então não basta pensar em seus múltiplos usos, pra geração de energia, irrigação, navegação. Temos que falar em múltiplos valores também - explica.
Expositor da mesa-redonda A cultura para o cuidado da água, parte do seminário Diálogos da Bacia do Prata promovido pela Itaipu Binacional em Foz do Iguaçu, Malvezzi aprofundou a questão em entrevista à Carta Maior.
Carta Maior - Uma das principais demandas das organizações sociais ligadas à defesa da água é o seu reconhecimento oficial, nacional e internacionalmente, como um direito humano imprescindível para a sobrevivência das populações. Qual a aceitação deste conceito nas esferas governamentais?
Roberto Malvezzi - A questão é relativamente nova, é um conceito ainda em debate. Na verdade, o que acontece é que estamos diante de uma encruzilhada. A forma como a água vem sendo gerida criou um impasse: 1,2 bilhão de pessoas não têm acesso à água potável, 2,5 bilhões não têm acesso a saneamento; isso questiona radicalmente a forma como a humanidade vem lidando com a água. Então começa a se realçar a interface que a água tem com uma série de outros fatores, além de seu uso econômico: a água como direito humano, seu valor natural e biológico, seu valor ambiental, a questão do saneamento, tudo isso está entrando no debate. E as políticas públicas não estão preparadas para abordar a água deste ponto de vista, já que tratam a água como recurso hídrico, um bem reduzido a recurso econômico. Aí temos um embate entre os que defendem uma nova gestão da água e os que insistem no conceito antigo. Mas a questão não é só conceitual, é operacional e política.
CM - A discussão sobre a água no mundo atualmente envolve uma série de questões políticas, como os conflitos entre Estados em função dos recursos hídricos, por um lado, e por outro o valor financeiro que vem adquirindo por conta da crescente escassez. Ou seja, é um debate que tem elementos geopolíticos e econômicos.
Roberto Malvezzi - Sim, e é um debate que se dá a nível internacional entre os estados, destes com os organismos multilaterais, ou nos tratados de livre comércio (TLCs) também. Na América Latina e no Caribe, por exemplo, uma das exigências é que a água entre nas negociações como qualquer outro produto. Mas temos questões locais que exemplificam muito bem o que está acontecendo. Um caso típico é a transposição do São Francisco. Você tem o semi-árido brasileiro que tem um potencial de solos irrigáveis, com sol, bons para a produção de frutas para a exportação, mas você tem um limite de água. O que acontece na bacia do São Francisco é que temos uma disputa pelo uso econômico das águas do rio. Isso fica claro no confronto entre a Bahia e os estados do Setentrional. Por que a Bahia e outros não querem a transposição? Porque querem fazer a irrigação de cana. O Ceará e outros estados querem criar camarão e produzir frutas irrigadas. Temos aí claramente uma disputa pela água como bem econômico sem medir as conseqüências e impactos que isso tem sobre o rio e a população, e sem se perguntar se temos nessa região gente que deveria ser prioridade dos investimentos em água. Como a população difusa, quase 13 milhões de pessoas que não tem o mínimo de infra-estrutura para enfrentar a seca. Essas pessoas deviam ser prioridade, isso está na legislação brasileira, no código de recursos hídricos.
CM - Em termos de políticas públicas, o governo não tem demonstrado abertura para a integração do novo paradigma sobre gestão das águas como direito natural em seu debate político?
Roberto Malvezzi - Na questão do São Francisco não senti nenhuma abertura do governo para dialogar sobre isso. Na campanha da Fraternidade [da CNBB em 2004, que escolheu o tema águas para a vida], quando a gente propôs uma mudança na legislação para que a água seja incorporada como um direito humano, sabemos que veio uma orientação do governo central para que os técnicos que trabalham a questão não abrissem brecha para isso.
CM - Por quê?
Roberto Malvezzi - As empresas que estão interessadas nos serviços de saneamento querem fazer disso um serviço lucrativo. Se você admitir o acesso à água e ao saneamento como um direito humano, isso significa que as populações, quando não tiverem condições de pagar por esses serviços, têm direito a eles porque isso se torna uma obrigação do Estado. Tanto os poderes locais quanto as empresas não querem assumir o risco de serem acusados de violadores dos direitos humanos.
CM - Um dos argumentos freqüentemente utilizados no debate sobre a falta de saneamento e água potável é o alto custo dos investimentos em infra-estrutura. É também utilizado pelos que defendem a participação das empresas privadas no setor.
Roberto Malvezzi - É por isso que temos defendido que o projeto de saneamento elaborado pelo Ministério das Cidades sob Olívio Dutra seja encaminhado no Congresso. É um projeto que estabelece um prazo de 20 anos com um investimento de cerca de 180 bilhões - oito a dez bilhões por anos - com recursos do fundo de garantia para sanear o Brasil. Isso dentro do conceito de saneamento que inclui abastecer todas as famílias com água, coletar e tratar os esgotos e fazer o manejo dos resíduos sólidos das cidades. Com isso, você está cuidando das águas e do meio ambiente e está investindo nas pessoas. Só que tem um detalhe: no meio rural, 90% das pessoas não têm esse saneamento ambiental, então tem que investir também aí. É aí que vêm as contradições, como entre o Ministério das Cidades e o Ministério da Integração Nacional, por exemplo. No nosso entender, seria o caso de partir da pessoa humana, investir onde há mais necessidade, e reservar os recursos pra isso. Há uma falta de clareza e estratégia no governo, mas também o atropelamento dos interesses econômicos sobre as políticas públicas. Atrás de uma obra como a transposição, você tem empreiteiras, interesses políticos, interesses eleitorais, e eles não permitem que as políticas públicas sigam o caminho do bom senso.
CM - Se a transposição não é uma solução para o semi-árido, o que poderia ser apontado nesse sentido?
Roberto Malvezzi - Há um certo consenso entre a sociedade civil do semi-árido, as igrejas, o Banco Mundial, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e especialistas como Aldo Rebouças, João Abner da Costa e outros, ligados à academia. Estes atores apontam que há três questões básicas que deveriam ser priorizadas antes da transposição: primeiro a revitalização do rio. Depois, fazer uma malha de distribuição da água que já existe no semi-árido, como no Setentrional, onde existem grandes açudes sub-aproveitados pelos municípios porque não existe uma malha de distribuição. Também, como defendem os pesquisadores da USP, fazer o aproveitamento das águas subterrânea. E por fim, fazer a coleta das águas de chuva. O cálculo é que o volume de chuvas é de cerca de 750 bilhões de metros cúbicos de água no semi-árido por ano. Destes, apenas 30 estão sendo aproveitados, cerca de 5%. E não temos uma infra-estrutura adequada para recolher estas águas. As grandes obras que precisavam ser feitas na região já foram feitas. Falta fazer uma malha de pequenas obras no espaço onde as família estão. A China, que tem um semi-árido maior que o nosso, com menos chuva e com mais gente, investiu na captação de água para consumo humano e produção de alimentos e já resolveu com isso o problema de quase 2 milhões de famílias. Quer dizer, é um projeto possível.
CM - Existe um termo que começou a ser bastante usado com o debate da transposição do São Francisco, que é o hidronegócio. O que vem a ser, exatamente, o hidronegócio?
Roberto Malvezzi - Usamos o conceito de hidronegócio relacionado ao do agronegócio, a exploração em escala macro-comercial da terra. O hidronegócio tem múltiplas faces: a água engarrafada, que é um ótimo negócio, a irrigação, a criação de camarão em cativeiro, etc; quer dizer, você demanda muita água para produzir estes bens. O São Francisco, nesse sentido, é muito ilustrativo. O modelo de gestão das suas águas, proposto pela transposição, prevê que a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) crie uma empresa, a Chesf Água, que deve vender a água transposta para empresas públicas e privadas nos estados receptores, e estas empresas por sua vez a vendem para a população ou usuários interessados. A água vira mercadoria. O governo defende que o custo dessa água seja subsidiado pelo consumidor urbano, em forma de subsídio cruzado; a população urbana ajudando a subsidiar a água usada na irrigação, por exemplo. Agora a pergunta é: a população pobre urbana vai ter dinheiro para bancar esta água e o subsídio cruzado? E se não tiver, o governo vai bancar? Eu tenho um exemplo concreto das dificuldades dos agricultores, onde moro, em Juazeiro da Bahia, às margens do São Francisco. Os colonos da Companhia de Desenvolvimento do São Francisco (Codevasf) que usam a água para a irrigação estão todos inadimplentes no banco porque não conseguem pagar a água há 500 metros do rio. Não conseguem pagar a manutenção das obras e o custo da água para a sua fruticultura irrigada. O problema é esse: os pequenos não conseguem viabilizar a sua produção por conta do custo da água. 80% da água do rio hoje é da Chesf, que ainda é uma empresa pública de geração de energia para fins públicos. Só que agora vemos que as empresas privadas estão entrando fortemente no setor hidrelétrico. E quando começam a operar a geração de energia e recebem a outorga da água para fazê-lo, passam a deter também o uso privado e comercial desta água. Esse é o hidronegócio. (Agência Carta Maior, 25/11)