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2005-11-17
– Sem ser alarmista, existem perspectivas muito sólidas de que haverá um decréscimo progressivo de qualidade das águas, inclusive as subterrâneas-. O alerta é do doutor em história natural e professor do programa de pós-graduação em Biologia Animal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Ludwig Buckup. Em entrevista exclusiva à EcoAgência de Notícias, Buckup aponta que os recursos hídricos nos centros urbanos brasileiros provavelmente sofrem da mesma contaminação silenciosa que pôs em alerta pesquisadores dos Estados Unidos e Europa: a poluição por fármacos.

Estudos já mostram claramente que antibióticos, antiinflamatórios e antidepressivos têm sido encontrados em níveis alarmantes nos rios e lagos que abastecem grande cidades, sinal de que os sistemas de saneamento não dão conta da complexidade de substâncias jogadas diariamente pelo ralo – e de que podemos estar cada vez mais doentes.

EcoAgência: Qual a situação da água doce no Brasil? Buckup: É muito difícil ser breve neste ponto, mas a pressão sobre as reservas de água doce é muito grande, em função do aumento de consumo, tanto para o abastecimento das cidades, quanto para o uso agrícola e industrial. O problema é que, na mesma proporção, a quantidade de água que retorna ao espaço natural é grande também, com um aumento do volume de esgotos urbanos, cloacais, domésticos, industriais, agrícolas, que naturalmente levam resíduos aos corpos dágua, comprometendo a sua qualidade. A situação é muito crítica em relação à qualidade de suas águas superficiais em todo o território brasileiro, em especial nas grandes cidades, como Porto Alegre. Longe das cidades, a poluição por agrotóxicos lavados pelas chuvas é muito grande, acrescido ao assoreamento das margens dos rios, que não barra esses elementos. Isso tudo coloca em risco a disponibilidade de água para as décadas futuras. Se não forem tomadas providências concretas neste campo, nós teremos conseqüências muito severas. Sem ser alarmista, existem perspectivas muito sólidas de que haverá um decréscimo progressivo de qualidade das águas, inclusive as subterrâneas.

EcoAgência: Há estudos indicando a existência de fármacos nas águas que recebem esgoto cloacal. Esse é um risco real?

Buckup: Há alguns anos os cientistas da Europa têm manifestado sua preocupação com a presença de fármacos nos corpos dágua, inclusive nos sedimentos. São substâncias ingeridas pelo corpo humano, eliminadas pela urina e fezes, que transitam pelos animais também, e voltam para os rios. O alemão Tomas Ternes, do Instituto Alemão para Estudos da Água, examinou grande quantidade de vertentes de rios na Alemanha e encontrou 36 fármacos diferentes que não foram metabolizados pelo corpo humano e foram para dentro da água. São moléculas muito complexas que não são decompostas pelo organismo. Substâncias como serotonina, base do medicamento Prozac; almíscares, utilizados no fabrico de perfumes; antiepiléticos; antibióticos; antidiabéticos; flavonóides; betabloqueadores; hormônios sexuais e algumas simples vitaminas foram encontradas.

EcoAgência: Quando começou essa pesquisa? Buckup: Há cerca de oito anos e foi um importante ponto de partida que despertou o interesse do mundo científico. Nesse período houve estudos em outras partes do mundo. Na Espanha, por exemplo, também foram encontrados analgésicos, diclofenaco, naproxeno, antibióticos, em águas residuais. E constatou-se, que nos Estados Unidos, em alguns lugares onde as águas potáveis têm altos níveis de antibióticos, há pessoas que são resistentes a esses fármacos pelo contato continuado. A Revista Science recentemente divulgou que peixes aprisionados em Dallas tinham alterações importantes no cérebro e no fígado e tais alterações eram conseqüência da ação de antidepressivos do tipo Prozac.

EcoAgência: Estes fármacos são eliminados no tratamento sanitário da água? Buckup: No tratamento normal da água eles não são eliminados.

EcoAgência: Que efeitos causam esses fármacos? Buckup: Na fauna eles causam alterações importantes nos ciclos reprodutores e na agressividade. Na Suíça está em andamento um projeto coordenado por Betina Hitzfield, em Berna, que faz a mesma constatação da presença de fluoxetina e fluvoxamina com efeitos prejudiciais aos animais aquáticos e, imagina-se, nos seres humanos também.

EcoAgência: Essa presença de fármacos na águas que recebem esgoto cloacal poderia ser uma leitura do atual momento da sociedade, que estaria consumindo mais remédios e anti-depressivos? Buckup: Possivelmente é uma indicação direta. Existem dados que indicam que volume desses materiais é utilizado. Esse material vai para o esgoto cloacal do jeito que entra no organismo. Existe uma base de dados da Universidade de São Paulo onde encontrei a tese de doutorado de Glebi Aparecida de Almeida que estudou exatamente os compostos químicos que são responsáveis pela poluição da Represa Billings, do sistema Riogrande – que se comunica com o sistema Ipiranga e com os rios Tiete e Pinheiros e abastece São Paulo. E entre os vários poluentes encontrou pesticidas, organoclorados, policlorados, hidrocloretos policíclicos aromáticos e muitos fármacos, antipiréticos, analgésicos e cafeína, que isoladamente é um fármaco. Já existe comprovada presença desse material no Brasil. Então, em cima desta informação, existem altos índices de probabilidade que exista em outras águas, especialmente nos núcleos urbanos brasileiros.

EcoAgência: Este tipo de investigação está sendo feito no Rio Grande do Sul? Buckup: Eu constatei – e lamento muito ter que registrar isto – que jamais alguém fez este tipo de pesquisa nas águas do Guaíba. Se você vir os documentos do departamento de água e esgoto de Porto Alegre (Dmae), o levantamento feito no período de 1999/2000 reuniu as informações oriundas de 24 pontos de amostragem. Só que os dados colhidos são sempre: pH, que verifica o grau de acidez/alcalinidade da água; oxigênio dissolvido, que costuma indicar a quantidade de matéria orgânica em decomposição na água; fosfato total, que resulta em geral da presença de resíduos agrícolas; turbidez; sólidos totais; nitratos; e coliformes fecais, ligados à presença de esgoto cloacal na água. O estudo é extenso, mas as informações, de maneira sintética, nos indicam um quadro alarmante no Guaíba. E não há nenhum outro tipo de informação. O estudo indica, que o Guaíba apesar de receber elevada carga de resíduos, ainda tem regiões de qualidade de água igual a bom, com classificação de classe I e II do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Mas a maioria dos lugares é classe IV, de regular a péssima. É altíssima a probabilidade de que existam fármacos na água e sedimentos do Guaíba.

EcoAgência: Esse material vai se acumulando por não ser tratado ou metabolizado? Buckup: Sim, em períodos de grande estiagem esse material vai acumulando, se fixando no substrato, e de repente vem uma chuvarada e esse material é movimentado em grande quantidade e é espalhado em toda bacia. Isso é muito sério.

EcoAgência: No último verão a população sentiu gosto de terra na água, gosto ruim. O que aconteceu?

Buckup: Isso foi um fenômeno previsível. Houve um período de intensa estiagem, com uma redução do volume da água e com a diminuição acentuada da dinâmica de movimentação da água, ou seja, correnteza baixíssima e temperaturas elevadas. São condições que juntas se aproveitam da grande quantidade de nitratos e fosfatos existentes no Guaíba e fazem com que as algas se reproduzam rapidamente. Isso é chamado de floração planctônica. O Guaíba estava verde. Mas chega um ponto tal que a quantidade é tão grande que começa a haver uma exaustão de oxigênio para que possam viver e elas morrem. É um fenômeno cíclico. E ao morrer se decompõem e liberam outras substâncias tóxicas que contaminam água com mau cheiro e levam as pessoas a sentirem água com gosto ruim.

EcoAgência: Isso prejudica de alguma forma a saúde humana? Buckup: Evidente. Altera profundamente a flora intestinal das pessoas, causando desarranjos, enjôos. O ciclo termina quando chove e a correnteza leva essas substâncias para o mar, que acabam favorecendo a reprodução do plâncton marinho, muito útil na fauna marinha. É preciso também admitir que pessoas possam ter a sua condição de saúde alterada/comprometida pela ingestão com a água poluída com fármacos que não estejam previstos no seu processo de alimentação.

EcoAgência: O senhor percebe alguma movimentação no sentido de tentar fazer com a qualidade da água melhore?

Buckup: Existe no Rio grande do Sul o Pró-Guaíba, que anuncia na sua documentação o início da sua recuperação no período de 1995/2000, mas que tem resultados muito aquém do esperado, apesar do esforço. Foi prevista uma contrapartida de financiamentos internacionais, através do governo federal, que não está sendo cumprida. Mas já houve alguma melhoria, tem água sendo tratada, como o caso da praia do Lami. Mas o panorama geral continua desolador. Os peixes continuam cada vez mais escassos no Guaíba pela destruição das populações pela pesca excessiva e pela péssima qualidade da água. A síntese do Dmae recomenda que se continuem os estudos de monitoramento da qualidade da água bem como o desenvolvimento de outros estudos mais específicos a fim de subsidiar a atuação dos órgãos responsáveis pela gestão dos recursos hídricos com o objetivo de preservar e recuperar as águas do Guaíba, em função de que a maior parte das águas da região metropolitana tem classificação IV no Conama.

EcoAgência: O senhor pretende entrar nesse estudo? Buckup: Não é minha área de pesquisa. Quem deve fazer isso são os órgãos que fazem pesquisa na química analítica e os órgãos ambientais e de saneamento. Alguém tem que se apropriar desse tema e estudar a presença de fármacos no Guaíba. Mas existe uma pesquisa em andamento no programa de pós-graduação em biologia animal da Ufrgs que estuda as deformação e alterações morfológicas em peixes atribuíveis às circunstâncias da poluição aquática. Em crustáceos ainda não foram percebidas alterações importantes que possam ser atribuídas à poluição. Mas existe uma diminuição assustadora na quantidade de crustáceos nas águas interiores do Rio Grande do Sul. Recentemente participei da redação do Livro Vermelho da Fauna ameaçada de extinção do estado e elencamos várias espécies de crustáceos de grande porte, pela deterioração do ambiente aquático em que vivem.

EcoAgência: O senhor acredita que as ongs e os comitês das bacias hidrográficas tenham força a ponto de fazer com que os governos tenham uma atitude mais eficaz no tratamento das questões ecológicas? Buckup: Poderiam ter. Algumas entidades deste tipo já mostraram o seu poderio. Gostaria de citar exemplos: Greenpeace, que tem uma ação muito forte em vários lugares; SOS Mata Atlântica; o Projeto Tamar, que funciona em toda costa marinha brasileira com alto grau de eficiência e eficácia. Aqui no Brasil meridional destaca-se a ação da ong Igré – Amigos da Água, que vem realizando numerosas atividades focadas na preservação dos cursos d´água e de seu entorno. Então, se todas as organizações atuarem com a mesma competência sem dúvida teremos condições de pressionar o governo a fazer da proteção ambiental uma opção política de verdade.

EcoAgência: Há uma mudança na consciência ecológica de um modo geral? Buckup: A partir da ECO 92 o Brasil teve que se comprometer nacional e internacionalmente a tomar medidas mais severas. A Agenda 21, por exemplo, faz com o Brasil tome providências ou pelo menos defina legalmente a necessidade de se tomar providências nesse campo. Acho que o maior impulso vem do processo de educação ambiental informal e formal. Hoje, os grandes artífices da revisão das posturas das pessoas vêm dos colegiais, que recebem tantos ensinamentos importantes que levam para casa e que modificam a cabeça dos pais, das gerações passadas. Acho que é uma mudança importante de atitude. (Ecoagência, 16/11)

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