Transposição: Y Ikatu Xingu
2005-11-09
Rio São Francisco, lembra? Aquele da greve de fome do bispo, iniciada contra o projeto de transposição de suas águas para dois canais com centenas de quilômetros de concreto varando a caatinga. Coisa velha de meses, parece, tanto é que sumiu do noticiário -onde aliás só despontou com a atitude tresloucada do prelado.
Pois faz apenas um mês que dom Luís Flávio Cappio, o bispo franciscano, interrompeu sua greve de fome, fiando-se na promessa do governo federal de que prolongaria e aprofundaria o debate público. Findo o protesto, minguou também a discussão frenética de pouco mais de uma semana, como qualquer um poderia prever.
O Velho Chico, enquanto isso, continua seu curso em direção à morte lenta e segura. Ciro Gomes, ministro da Integração Nacional, continua a martelar a história -até parecer verdade inquestionável- de que a transposição vai beneficiar 12 milhões de brasileiros, não por acaso na região em que nasceu para a política. Ainda desencavou manchetes com sua insistência em começar a torrar os R$ 4,5 bilhões, mas a fonte de notícias secou como os rios de sua terra.
O lugar do desastre ambiental no imaginário social foi logo ocupado por outro, presente e não futuro, natural (aparentemente) e não causado pelos homens: a seca no oeste da Amazônia. Nova correria nas redações. Imagens poderosas jorravam das páginas e telas, como o Solimões rebaixado a um filete e o lago de peixes mortos.
Aqui e ali relacionou-se a estiagem equatorial com uma das previsões associadas ao desmatamento e ao aquecimento do planeta -um ressecamento geral da floresta. Durou pouco, também. Bastou as águas subirem algumas dezenas de centímetros para levar o interesse de roldão. Sobraram ainda imagens esporádicas de fardos de víveres levados de helicóptero até comunidades isoladas.
Em meio ao corre-corre, ainda há quem tente manter certa perspectiva. Foi o caso do Instituto Socioambiental, uma ONG de São Paulo, que divulgou na semana passada o lançamento da campanha Y Ikatu Xingu. Em língua camaiurá, quer dizer água limpa e boa. É um alerta sobre a degradação das cabeceiras dos rios que formam e alimentam o Xingu, eixo da mais tradicional terra indígena do país.
Quem não acreditar nos relatos de povos indígenas sobre a morte progressiva desses rios e riachos que se renda às evidências plotadas no mapa: o desmatamento no nordeste de Mato Grosso, Estado governado por um sojicultor, cercou por completo os limites do parque, onde nascem os cursos dágua. A intensificação da agricultura mecanizada vai assorear e poluir os tributários do Xingu. Só não vê quem é cego.
A campanha Y Ikatu Xingu resulta do Encontro Nascentes do Xingu, que aconteceu em Canarana (MT) de 25 a 27 do mês passado. Como não teve greve de fome nem índia encostando facão na cara de nenhum funcionário, pouca gente ficou sabendo.
A verdadeira estiagem, no Brasil, é de horizontes. Um país que não tem futuro - porque não quer. (Folha de S.Paulo/ blog http://cienciaemdia.zip.net, por Marcelo Leite - 06/11)