Uma jornada ao drama brasileiro da seca na Amazônia
2005-11-07
Sob uma temperatura superior a 35ºC, ao anoitecer de segunda-feira (31/10) se
inicia a odisséia de uma equipe da Defesa Civil pelo Amazonas. O
destino é Óbidos, um dos 13 municípios do Pará em estado de calamidade.
A viagem no gigante maltratado pela falta de chuva cruza a madrugada,
com a tripulação e a repórter de Zero Hora dormindo em redes. A
jornada duraria seis horas, mas se estende por nove, pois o comandante
manobra para evitar o encalhe em bancos de areia formados com a redução
do nível do rio, em trechos com menos de 1m50cm de profundidade.
Deveria ter, no mínimo, o dobro. Quando o lote de 1.459 cestas básicas
chega ao porto do oeste paraense, ao amanhecer de terça-feira (5h), uma
surpresa: ninguém à espera da ajuda.
Não que ela não seja necessária. Com mais de 10 comunidades isoladas
pela estiagem, Óbidos solicitou o auxílio porque as populações
ribeirinhas perderam de uma só vez o meio de transporte e a
alimentação. Aumentou a mortandade de peixes, asfixiados por falta
dágua.
O sargento bombeiro Idevan Cardoso, responsável pela entrega, tem de
aguardar seis horas para ser recebido pelo prefeito. Quando entra no
gabinete, às 11h30min, depara com outro entrave. Jaime Barbosa da Silva
lhe diz que não sabe quando nem como distribuirá as cestas.
A decisão, explica, só será tomada em uma reunião dois dias depois,
com uma comissão comunitária criada para isso. Como o acesso às
famílias pode levar um dia, a distância entre a comida e os famintos
será estendida por pelo menos mais 24 horas. Segundo o prefeito, a
cautela é para espantar suspeitas de desvios.
A exploração política ronda a seca atípica na maior reserva de água
doce do planeta. Uma tentativa de tirar do flagelo ganhos eleitorais
foi descoberta em uma das principais cidades do Pará, de onde partiu a
expedição para Óbidos. No dia do desembarque, terça-feira (01/11), o
vice-prefeito de Santarém, Delano Riker, deixa o comando da Comissão
Municipal de Defesa Civil, após o jornal O Estado do Tapajós noticiar
um truque de propaganda. Nas cestas do governo estadual, a logomarca
foi trocada pela da prefeitura.
Três horas diárias em busca da água
Prestes a parir o 10º filho, Maria Olinda Soares dos Santos, 35 anos,
repete desde junho uma peregrinação diária de três horas em busca de
água para beber, na comunidade de Muratubinha, em Óbidos (PA). Com a
seca do igarapé que banhava a localidade, onde moram 56 famílias, ela
e os filhos se deslocam por uma hora e meia para alcançar as margens
do Amazonas, e o mesmo período para retornar, carregados de cumbucas e
garrafas plásticas.
Pés descalços sobre a terra arenosa, empurram uma canoa pelo solo seco,
remanescente do riacho que em épocas de cheia corre em frente a sua
casa. Na metade do caminho encontram uma barragem criada pelos
moradores, tentativa de reter a água. Acabaram produzindo uma grande
poça. Apesar dos riscos de espalhar doenças, é considerada um alívio
num mundo iluminado por lamparinas, sem TV nem geladeira.
- A situação aqui está piorando ano a ano. Só um milagre para nos
salvar-, entende Maria Olinda.
No início da seca, em junho, a família aproveitava para tomar banho no
Amazonas, mas aos poucos a estratégia se revelou inviável.
- A gente ficava mais cansado na volta, e suava tudo de novo depois de
caminhar-, explica.
Sem alternativas, mãe e filhos hoje tomam banho na poça. O líquido
barrento e tomado pela vegetação também é utilizado para lavar louças
e banhar cavalos.
Quando vai até o Amazonas, Maria Olinda sabe que não pode desistir,
apesar de sentir dores e movimentos do bebê durante a caminhada.
- Todo dia é nosso sacrifício. Mas a gente já está acostumada, porque
não tem outro jeito-, diz.
O parto pode ocorrer a qualquer momento. Maria Olinda fez o pré-natal,
mas não sabe o sexo do bebê, porque o hospital público do município
lhe teria pedido R$ 80 para a ecografia.
- Em outro parto, eu tive o bebê aqui e tive uma crise, quase morri.
Tenho medo, mas não tem o que fazer. Quando começarem as dores do
parto, vou ter de caminhar, pegar barco... Acho que demora umas três
horas até o hospital,- conforma-se.
O rio some abaixo da palafita
A altura impressiona. Palafitas a mais de três metros do chão ao longo
do Amazonas e de seus afluentes dimensionam como o nível da água está
baixo. Com o agravamento da seca, as construções sustentadas por
estacas permanecem rodeadas de terra, a mais de 10 metros de distância
do rio. A paisagem descolorida empresta ares de sertão a comunidades
como Igarapé do Paru, em Óbidos. Morador da região, Sebastião
Guimarães, 47 anos, aponta a altura onde o rio costuma chegar.
Para entender o recuo e avanço do volume da água, é preciso analisar o
ciclo de chuva da região amazônica. O período de precipitações se
estende normalmente de outubro a abril. É a época das cheias, quando o
Amazonas pode alcançar 40 quilômetros de largura e se torna navegável
por navios oceânicos de porte médio, e profundidade média 13m50cm da
foz até Manaus.
No restante do ano, a época da seca, de maio a setembro, o rio
normalmente recua, diminuindo seu volume natural e secando pequenos
igarapés. Em pontos isolados, a profundidade alcança menos de três
metros, o que compromete a navegação. A diferença neste ano, segundo
estudo do Centro de Previsão do tempo e Estudos Climáticos (Cptec) do
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), com o Instituto
Nacional de Meteorologia (Inmet), é o registro do menor índice
pluviométrico em quatro décadas. Com o ingresso no período de chuvas,
a expectativa é de que a situação melhore nos próximos meses.
O que os pesquisadores ainda não conseguem explicar é a causa do
fenômeno. A hipótese mais aceita é de que a seca seja provocada por um
aquecimento nas águas do Atlântico, mas ambientalistas e pesquisadores
alertam para o risco de o desmatamento interferir no ciclo. (ZH, 06/11)