Medicina da floresta ganha espaço na vida urbana
2005-11-04
Na mata atlântica brasileira, cortes e feridas têm remédio certo: macerado de folhas de aroeira em aguardente, conhecido há muitas gerações como cicatrizante e analgésico. A infusão das folhas é usada internamente para combater o reumatismo. Já as folhas frescas são mascadas pelos habitantes dessa região para curar males da boca, como gengivites.
Na Amazônia, dor de cabeça se trata com suco de folhas frescas de chicória. O chá da raiz é dado às crianças gripadas e, se mais concentrado, é oferecido às mulheres que enfrentam partos difíceis, para que expulsem os restos da placenta.
Matas e florestas brasileiras continuam sendo a principal farmácia de uma fatia da população que está longe dos centros urbanos. E, na esteira da valorização do natural, os povos brancos tentam se aproximar desses modos de cura. É a medicina da floresta ganhando espaço na vida urbana, enquanto a ciência tenta aprender as lições contidas no conhecimento tradicional e investigar seus efeitos.
As propriedades medicinais existentes na biodiversidade brasileira vêm mobilizando as atenções de centros de pesquisa do país. Apenas no livro Plantas Medicinais na Amazônia e na Mata Atlântica (ed. Unesp, 604 págs., R$ 80), os pesquisadores Luiz Claudio Di Stasi e Clélia Akiko-Hiruma Lima, da Unesp (Universidade Estadual Paulista), catalogaram 135 espécies medicinais citadas por 110 moradores da Amazônia e 170 da mata atlântica. Muitas espécies têm dados farmacológicos comprovados por estudos científicos, outras não.
— As pesquisas farmacológicas com plantas medicinais oferecem novas opções terapêuticas para muitas doenças com medicamentos já disponíveis, bem como para aquelas ainda sem alternativas de tratamento - comenta Clélia.
Mas é preciso conduzir estudos esmiuçados. — Cada planta, cada parte dessa planta e cada forma de preparação dela é composta de milhões de substâncias químicas. Em conjunto, essas substâncias podem exercer ação terapêutica ou tóxica. Interagindo entre si, podem potencializar seus efeitos ou até antagonizar sua ação final - explica a especialista.
Não é de hoje que a ciência recorre ao conhecimento ancestral.
— Em 1800, tudo o que os médicos usavam era natural. Com a Segunda Guerra Mundial, adentramos na era da produção sintética de medicamentos - relata Maria Elisabeth van den Berg, pesquisadora do Museu Emílio Goeldi, em Belém (PA), e autora de uma tese de doutorado sobre contribuições das plantas medicinais da Amazônia para a medicina brasileira, defendida na Universidade de São Paulo.
Para a pesquisadora, um caminho de volta às curas naturais começou a ser percorrido há duas décadas.
— Os remédios sintéticos causaram efeitos colaterais desastrosos. Isso fez a Europa voltar-se ao conhecimento tradicional. A talidomida foi um divisor de águas - diz.
Na década de 60, a talidomida, droga sintetizada na Alemanha e prescrita a grávidas contra enjôos, foi retirada do mercado após causar severas más-formações fetais. Há relatos de que 10 mil bebês foram vítimas da medicação.
Sincretismo
Nesse cenário, as florestas brasileiras - principalmente a Amazônia - passam a figurar como potenciais celeiros de descobertas.
— Essa medicina é chamada de da floresta, mas na verdade ela é extremamente sincrética. A Amazônia é um caldeirão de misturas. Dos índios, vem a maioria dos remédios antiinflamatórios e analgésicos, pois eles se ferem muito no mato. Eles também são os descobridores de substâncias paralisantes usadas na caça. Dos negros, vêm vários conhecimentos ligados aos problemas renais. E os brancos introduziram espécies originárias de outras regiões, como ervas da China e da Índia - diz Maria Elizabeth van den Berg.
Ela acredita que a pesquisa da medicina tradicional brasileira merece sistematização.
— Há vários grupos de pesquisa atuando, mas é preciso estruturar isso. Pesquisar esses remédios não é caro, o maior obstáculo é a burocracia.
Na floresta Nacional do Purus, na divisa do Amazonas com o Acre, funciona, há três anos e meio, o Ideaa (Instituto de Etnopsicologia Amazônica Aplicada). Nele, uma equipe formada por um psiquiatra, um antropólogo e cinco psicólogos, entre outros colaboradores - quase todos estrangeiros -, toca um projeto cuja proposta é usar as técnicas da gente da floresta para curar doenças.
O psiquiatra espanhol Jose Maria Fabregas é um dos idealizadores do instituto. Em parceria com a Universidade de Madri, ele realizou um estudo comparativo entre usuários regulares e não-usuários de ayahuasca (bebida sagrada produzida a partir da fervura de duas plantas nativas da floresta amazônica, um cipó e folhas de um arbusto), que será publicado na Europa no próximo mês.
O psiquiatra defende a utilização médica da substância.
— É um expansor de consciência que incrementa a capacidade de olhar para si mesmo e de seguir adiante, de rever a vida sob novas perspectivas. Dessa forma, ajuda nos diagnósticos de estresse pós-traumático. Pode auxiliar, por exemplo, a superar episódios de maus-tratos ou de abuso sexual, libertando a vítima de bloqueios emocionais - comenta.
As instalações do instituto têm capacidade para receber 12 hóspedes por vez.
— Recebemos basicamente dois grupos de pessoas. O primeiro deles está em busca de autoconhecimento. O segundo é formado por dependentes de entorpecentes como cocaína e crack que querem se livrar do vício - conta Fabregas. A estada mínima recomendada pela equipe é de um mês, para os que querem apenas se conhecer melhor, e de três meses, para os que vão com o objetivo de se desintoxicar.
Os internos são imersos numa miscelânea de técnicas que passa pelo uso regular da ayahuasca e por aplicações da vacina do sapo combinados a sessões de ioga, pilates e meditação. A medicina convencional não é descartada.
— Se necessário, usamos remédios convencionais. O que fazemos é traduzir o conhecimento tradicional para nós, povos ocidentais. Combinamos essas técnicas com as da psicologia acadêmica - diz o psiquiatra.
Pajelança Urbana
Banhos, garrafadas, florais da floresta. Quem entra no consultório da acupunturista e terapeuta floral Sônia Valença de Menezes, em São Paulo, vai provavelmente receber uma receita assim para atenuar seus males, sejam do corpo, sejam da alma.
— A medicina da floresta dá a chance de tratar corpo e espírito - observa Sônia. — Nada do que uso fui eu que pesquisei. Só aprendi. Os pesquisadores desses remédios estão na floresta.
Ela diz que a procura por esse tipo de acompanhamento vem aumentando e se dá basicamente boca a boca. E o que conduz as pessoas à trilha que liga selva e cidade é a busca por bem-estar.
— Recebo muitos estressados. Para esses, recomendo pimenta-longa, que acalma os pensamentos, e banhos de carobinha, que soltam o que está obstruído. (Folha de S.Paulo, 03/11)