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2005-11-01
Um acordo entre alguns caciques, o governo de Mato Grosso e uma empresa interessada em construir uma hidrelétrica semeia discórdia e suspeitas no mais antigo e simbólico parque indígena do país, o Xingu. A história começou no fim de 2004, quando o cacique Aritana Yawalapiti, o chefe mais respeitado do parque, e alguns líderes locais assinaram um termo de compromisso com a Paranatinga Energia e o governador Blairo Maggi para liberar a construção da usina no Rio Culuene, um dos mais importantes afluentes do Xingu e a principal fonte de alimentos das aldeias. Em troca, receberiam R$ 1,3 milhão para projetos como um centro de treinamento e incentivo à piscicultura. O problema é que, para o Ministério Público Federal (MPF) e a Funai, o acordo não tem valor legal. Além de ter desagradado à maior parte das 14 etnias que vivem no parque.

Além de temer prejuízos à fauna pesqueira, parte dos índios acredita que a barragem pode estar num local sagrado, onde nasceu o ritual do quarup. A obra continua embargada pela Justiça. Na melhor das hipóteses, o deslize de Aritana foi não ter ouvido todas as lideranças do Xingu antes de firmar o acordo. – Dinheiro não tem valor para os índios. O que importa é a cultura, o meio ambiente e os peixes-, diz o cacique irmão de Aritana, Piracumã Yawalapiti. Foi ele quem salvou a pele do líder. – Depois do acordo, a comunidade veio para cima e queria a cabeça dele. Mas Aritana reconheceu que errou e pediu desculpas-, conta. Piracumã garante que, se a Justiça autorizar a continuidade da obra, os xinguanos partirão para a guerra. – Estamos prontos. E não vai ser guerrinha, não. Vai ter morte-, diz.

A desavença chama a atenção porque na criação do parque, em 1961, os irmãos Villas-Boas conseguiram a proeza de reunir índios de etnias inimigas. De lá para cá, os 4.100 índios de quase 50 aldeias estiveram juntos, dispostos a preservar suas terras e tradições. – Pela primeira vez, desde que o parque foi criado, o Xingu ficou desunido-, afirma Paiê Kaiabi, administrador regional na Funai.

Quem parte para a defesa de Aritana diz que ele foi influenciado pelo cunhado, Ianacula Rodarte Kamaiurá, índio que trabalha para a Funai. Ianacula, no entanto, diz que quem assinou o documento avaliou que não restava saída, pois as obras da usina já haviam degradado o rio. – O acordo seria uma forma de levar algum benefício para as comunidades. E isso seria maior que os prejuízos-, acredita. – Hoje, a posição oficial das lideranças é contra a hidrelétrica. Estamos tentando manter a união dentro do parque.-

O acordo que dividiu o Xingu prevê que o governo de Mato Grosso repasse R$ 300 mil às aldeias e que a Paranatinga libere R$ 1,03 milhão e mais 50 hectares de terras. – Esse documento não tem validade, foi assinado à revelia da Funai e do Ministério Público-, diz o procurador Mário Lúcio Avelar, do MPF. – Acho estranho que o governo estadual ponha dinheiro num projeto da iniciativa privada-, afirma. Para a procuradoria, o acordo também é a confissão de culpa do Estado e da Paranatinga de que a construção afetará o meio ambiente e os povos indígenas. – E o impacto poderá ser maior para os xavantes-, diz Roberto Aurélio Lustosa Costa, vice-presidente da Funai. A construção fica a 98 quilômetros do Parque Indígena do Xingu e a 38 quilômetros de terras xavantes.

Apesar dos questionamentos do MPF e da Funai, o acordo, aos poucos, vem sendo cumprido. Ianacula revela que pequenas despesas com conserto de tratores e manutenção de carros e barcos já foram pagas pela Paranatinga. Mas a empresa nega o repasse de dinheiro. Pesquisadores que atuam no parque contam que, no início do ano, os índios teriam recebido uma caminhonete Mitsubishi 4X4. E que o governo do Estado ocupou o lugar da Funai, que deveria destinar verbas para as necessidades básicas do parque. Por isso, os xinguanos seriam seduzidos com alguns benefícios, como uma balsa para transporte de máquinas pesadas, doada recentemente pelo governador Blairo Maggi.

Em Mato Grosso, a pressão é tão grande que até o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), viu-se envolvido no imbróglio. O governador, incomodado com quatro liminares concedidas pelo juiz Julier Sebastião da Silva embargando obras no Estado, pediu para que Mendes intermediasse um encontro dele com o juiz. Amigo de ambos, o ministro agendou e participou dos minutos iniciais da reunião. – Não sei qual foi o intuito [do governador] de conversar na minha presença. Talvez tenha sido para ressaltar a importância do assunto-, diz Mendes. O ministro explica que não se sentirá impedido de julgar os casos se os processos forem parar no STF.

Quando a briga começou, há um ano, os índios afirmavam que exatamente onde a barragem está sendo erguida nasceu o quarup, a maior celebração religiosa da tradição xingu. E insistiam em preservar o local sagrado. O quarup marca o encerramento do luto pela morte de líderes ou de pessoas consideradas de linhagem importante para os índios. Mas durante o processo de negociação do acordo, alguns índios passaram a dizer que o local sagrado poderia estar a 7 quilômetros da hidrelétrica. A nova posição coincide com as indicações do grupo de arqueólogos e antropólogos contratado pela Paranatinga. – Como as etnias têm formas distintas de apresentar o quarup, é possível que cada uma aponte uma área diferente. O mito tem variações-, justifica Erika Robrahn-González, chefe da equipe, que fala em nome da Paranatinga. Procurado por ÉPOCA, o governo de Mato Grosso divulgou nota afirmando que a obra não causará influência significativa à comunidade indígena . Mas o laudo da Paranatinga só ficará pronto em janeiro. (Época, 31/10)

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