Seca, isolamento, fome e doenças na Amazônia
2005-10-26
O povo da maior floresta úmida do planeta jamais imaginou sofrer um castigo desses. Em
meio a uma gigantesca bacia hidrográfica, a seca esvazia rios perenes, deixa carcaças
de botos secando no sol, como acontece com as cabeças de gado no sertão, e ameaça o
abastecimento de água em cidades ribeirinhas como Manaus.
O Amazonas é, de longe, o Estado mais atingido, principalmente nas regiões do Alto e
Médi Solimões, do Baixo Madeira e do Pirus. Incluindo o Acre e o Pará, 81 municípios
vivem em estado de emergência, 40 deles em calamidade pública. Na região do Baixo
Amazonas, perto de Santarém, Pará, 11 municípios estão isolados e as grandes
embarcações foram proibidas de passar por alguns trechos do Tapajós. – A perspectiva
é de que dentro de 15 dias as cidades que ainda não foram atingidas passem a sofrer
com a estiagem-, prevê José Melo, secretário de Governo do Amazonas.
Em Manaus, o nível do Rio Negro chegou a 15 metros, 7 abaixo do normal nesta época. Se
a água baixar para 12 metros, comprometerá o abastecimento da cidade, de 1,6 milhão de
habitantes. Na semana passada, Manaus virou QG do Comando Militar do país, para
prestar socorro à população. O ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes,
deslocou-se à capital amazonense para acompanhar o trabalho de socorro às comunidades
isoladas. Foram liberados R$ 30 milhões para socorrer a população. A expectativa é de
que 100 mil pessoas sejam atendidas, segundo Melo. A Defesa Civil nacional deslocou
para a região 14 helicópteros e quatro aviões cedidos pelas Forças Armadas. – Acho
que é certo exagero-, comenta um oficial da Aeronáutica que prefere não se
identificar. – Tem um tanto de exibicionismo político aí-.
As intenções políticas da ação realmente parecem suspeitas em um país acostumado a
esperar a desgraça acontecer para depois consertá-la. Os primeiros sinais da
calamidade, no entanto, já apareceram. Sem o rio na ponta de casa, os ribeirinhos
passaram a beber a água pouco confiável de pequenos buracos abertos na terra. As
poças aumentam a proliferação do mosquito da malária. Em Coari, a 370 quilômetros de
Manaus, a Secretaria Municipal de Saúde registrou o triplo de casos em relação ao ano
passado. Na reserva indígena do Vale do Jaguari, duas crianças, uma de 1 ano e outra
de 2, morreram infectadas por um rotavírus porque não chegaram até o local onde se
prestava ajuda a tempo.
A seca complicou a vida de Vladimiro Alves dos Santos, de Inajá. Aos 67 anos, doente
do estômago e do pulmão, ele mal consegue roçar. Seu filho Hegino Pereira dos Santos,
de 42, teve de parar de trabalhar por um ano devido a uma pneumonia. A neta Alesandra
Araújo dos Santos, de 18 anos, na 6ª série do ensino fundamental, não pode carregar
peso porque teve tuberculose. Só estuda. Agora nem isso, pois a escola fechou as
portas. Na verdade, 600 delas suspenderam as aulas porque os alunos não conseguem
chegar.
A vida da família, que já não era fácil, complicou-se muito quando os igarapés mais
próximos, onde se pegavam alguns peixinhos, secaram. Enquanto o Brasil via, incrédulo,
fotos do sertão amazonense, Valdimiro e a família deixaram de comer peixe. Além disso,
não tiveram como vender quase nada da pouca lavoura que vingou: ficou difícil
transportar a carga até alguma vila um pouco maior para comercializá-la. Então, o
dinheiro chegou ao fim. Aí não deu mais pra comprar arroz, feijão, remédios. – O
rancho estava para acabar-, respira aliviado Valdimiro na posse de sua cesta básica.
– Meu filho, que é casado, já não tinha rancho de qualidade-. Mas nem só de comida
vive um homem. Valdimiro aproveitou uma visita do governador Eduardo Braga e do
secretário Melo à comunidade para pedir também um motorzinho de rabeta para sua canoa.
O governador prometeu dar um jeito.
Á beira do que um dia foi o Lago Januaca e hoje é um imenso descampado coberto de
pequeno matinho, fica a comunidade Tilheiro. Aí é feita a entrega das cestas para as
73 famílias locais e também para as 50 famílias de Igarapé Açu. A agente de saúde
Odilamaria de Souza Coelho e a professora Raimunda Araújo e seu marido, Edson da
Silva Araújo, são os responsáveis por pegar a encomenda. Vieram de longe em uma
pequena canoa, pois o barco a motor encalharia no fio dágua que restou. – A vinda
demorou bem mais do que quando o rio está cheio-, diz Olamaria. Isso porque os rios
tortuosos, estradas naturais da região, são cortados por pequenos canais e igarapés.
Sem esses atalhos, as distâncias aumentam. Muitas comunidades caboclas e indígenas
ficaram isoladas.
No ponto de táxi fluvial de Tabatinga, Renato Felix da Rocha, conhecido como Gato,
explica a um cliente por que uma visita à reserva indígena do Vale do Javari, no
município de Atalaia do Norte, custa R$ 900,00. – Antes eu ia cortando caminho, conta.
– Agora tenho de ir e voltar muitos quilômetros para chegar ao mesmo ponto. Gasto
três vezes mais combustível-. A única saída seria andar. Mas, além das longas
distâncias sob temperaturas que chegam a 40ºC, o caminho é cheio de lama profunda,
onde uma pessoa pode afundar – apesar de, em alguns trechos a terra até ter rachado de
tão seca.
No domingo 16, o Cougar do 4º Batalhão de Aviação do Exército desceu em Inajá,
vilarejo a 250 quilômetros de Manaus, como um presente dos céus. Além de cestas
básicas, havia quem jurasse que o maior helicóptero das Forças Armadas brasileiras
levava também a chuva. Ninguém sabia dizer se a ventania que balançava as palmeiras,
remexia o cabelo das crianças e levantava as saias de chita das senhoras era devido
às enormes hélices ou se vinha junto com as nuvens pretas que, de repente, cobriram
tudo. Foi um toró daqueles que só acontecem na Amazônia.
A partir de terça-feira, 18, a chuva caiu forte sobre a região do Alto Solimões, na
fronteira com a Colômbia e o Peru, perto da cabeceira de alguns dos rios que alimentam
o Amazonas. Aos poucos, a água preencheu córregos, e pequenos barcos voltaram a
circular na região. No entanto, é cedo para comemorar. – Precisa chover nas cabeceiras
durante uns dez dias direto para a situação se normalizar no Alto Solimões-, diz Melo,
que coordena uma operação de guerra para minimizar os prejuízos sociais provocados
pelo fenômeno natural. – Ainda assim, para que os rios na região de Manaus, que é a
mais castigada, atinjam um nível razoável, vai levar uns 30 dias-.
O índio ticuna Raul Félix Alberto e seu filho Melindo, de 7 meses, estão com
conjuntivite, como boa parte dos moradores de São Leopoldo em Benjamin Constant, no
Alto Solimões. O calor sem o filtro esporádico de algumas nuvens irrita os olhos e
facilita o desenvolvimento da doença. Mesmo acostumado a altas temperaturas, Raul
diz que esse verão foi demais e, ao lado da mulher, Ofélia, festeja a chegada das
primeiras chuvas com um mergulho no Paraná ainda raso.
Além de agravar a dificuldade de acesso, que é o principal problema para quem vive
na Amazônia, a seca acaba com a grande vantagem que é ter comida na porta. Só o
município de Carreiro da Várzea, a 15 quilômetros de Manaus, contabilizou 50 toneladas
de peixes mortos. – Agora já está melhor-, diz em portunhol Irene Chumbé, da
comunidade Boa Vista, no município de Benjamin Constant, próximo a Tabatinga, numa
região onde Brasil e Peru quase se misturam. Conta que, na semana passada, para
pescar, seu marido tinha de caminhar horas até chegar à beira do Javari. O pequeno
braço de rio que dá acesso à comunidade chegou a secar. Sem o peixe, a comida tinha
de ser racionada. Irene não sabe bem dizer o porquê da seca. Seu marido, Alfredo
Nunes, filho de brasileira e peruano, que nasceu no Brasil e foi criado ali do lado do
Peru, tem uma explicação: – É porque a gente desmata-, justifica. – A mata é que puxa
a água. Se cortar a mata, quem vai puxar a água?-. A versão dos cientistas é parecida.
A seca é resultado da devastação das florestas na borda sul da Amazônia e do
aquecimento do planeta, provocado, em parte, pelas queimadas na região. (Época, 24/10)