Favelas avançam sobre florestas
2005-10-25
Pelo menos 17 favelas do Rio já ocupam unidades de conservação ambiental, segundo o relatório de uma auditoria realizada pelo Tribunal de Contas do Município, aprovado por unanimidade na semana passada. Como o documento foi produzido por amostragem, ambientalistas estimam que esse número seja, na realidade, muito maior. As duas maiores florestas urbanas da cidade estão entre as áreas mais ameaçadas. A Floresta da Tijuca, área da União sob gestão municipal, está cercada de favelas já consolidadas. O crescimento de comunidades como as do Morro da Formiga, na Tijuca, Vila Parque da Cidade e Rocinha, na Gávea, e Floresta da Barra, no Itanhangá, exige fiscalização constante para evitar que invadam os domínios do parque. No Maciço da Pedra Branca, as favelas estão surgindo nos últimos anos e crescem rapidamente. Pelo menos sete delas já estão dentro dos limites do Parque Estadual da Pedra Branca, que é a maior reserva urbana de mata atlântica do País, cobrindo 17% do territórios da cidade.
A Secretaria Municipal de Meio Ambiente diz que essas ocupações estão ao redor do parque. Mas o deputado estadual e ambientalista Carlos Minc (PT-RJ) afirma que já existem barracos agrupados dentro dos limites da reserva. Na semana passada, ele sobrevoou a cidade de helicóptero a fim de mapear as áreas invadidas. Até quarta-feira, ele deve entregar ao Ministério Público um dossiê pedindo providências.
— Não sou truculento nem simplista, mas encontramos 14 focos de favelização em áreas de preservação. Não defendo que se ateie fogo nos barracos, mas tem de impedir antes de a comunidade se estabelecer - disse Minc.
À ineficácia da fiscalização - o município tem apenas cem fiscais para cobrir as cerca de 700 favelas cadastradas - junta-se a morosidade da Justiça. O promotor do Meio Ambiente Carlos Frederico Saturnino confessa que é desestimulante ver que ações existentes desde 1991, como o surgimento de novos bairros na Rocinha em áreas ambientais, ainda não foram julgadas.
No dia 5 o Ministério Público enviou uma recomendação à prefeitura para que apresente projetos de remoção de favelas em áreas de risco ou de preservação ambiental. O prazo vence no dia 25 e até agora o prefeito Cesar Maia não se manifestou.
Segundo o promotor, o número recorde de processos contra a prefeitura mostra que o Ministério Público ainda fiscaliza o cumprimento da lei. Em toda a década de 90, foram instauradas 15 ações civis públicas em área ambiental. Nos cinco anos de gestão de Cesar Maia já são 29.
— Infelizmente o município estabeleceu como diretriz não celebrar mais Termos de Ajuste de Conduta com o MP. Consideramos que a interdição do diálogo é prejudicial ao interesse público e impede a solução rápida de questões que poderiam ser resolvidas extrajudicialmente - lamenta Saturnino.
Reflorestamento
O prefeito do Rio discorda das críticas a sua política habitacional. — Iniciei um programa difícil, em grandes favelas como Rio das Pedras, Jacarezinho e Maré - disse se referindo a projetos como o Mutirão de Reflorestamento e o de Eco-limites.
O secretário Municipal de Meio Ambiente, Ayron Xerez, reiterou que a prefeitura está atenta à questão.
— A prefeitura tem trabalhado o reflorestamento através de mutirões e do programa Eco-limites. Já são 41 quilômetros de cabos e trilhos de aço demarcando os limites entre favela e área verde - afirmou.
— Existem casos isolados de novas invasões, como a Vila Alice, em Laranjeiras (zona sul), mas a maior parte do crescimento é vertical, ou seja, através da construção de imóveis cada vez mais altos, e não horizontal - explicou Xerez.
Ele ressaltou que a pressão da favelização sobre áreas ambientais é uma das preocupações da prefeitura, tanto que está em fase de finalização um estudo chamado Indicadores Ambientais do Município, montado para fazer uma análise mais precisa da extensão das ocupações irregulares. A primeira edição da pesquisa está prevista para ser divulgada em dois meses e o estudo deve ser repetido a cada dois anos, afirma o secretário do Meio Ambiente. (O Estado de S. Paulo, 24/10)
Solução negociada é a saída
Para conter e organizar o crescimento desordenado das favelas, que hoje à luz do politicamente correto chamamos de comunidades carentes, o país já teve vários planos. Todos eles, claro, testados no Rio de Janeiro, onde o problema sempre foi mais agudo e de maior visibilidade. Dos mais repressivos - os parques proletários construídos no início do Estado Novo, e as remoções empreendidas no governo de Carlos Lacerda - ao programa Favela Bairro, do atual governo municipal, esses planos não apontaram uma solução.
Um estudo do Instituto Pereira Passos, órgão ligado à Secretaria Municipal de Urbanismo, feito com base nos números do censo de 2000, do IBGE, atesta que o crescimento das favelas foi de 2,4% ao ano, enquanto que o resto da cidade cresceu apenas 0,38%. Traduzindo, isso significa que as favelas cresceram em um ano o que o asfalto leva seis anos para crescer. A população do município do Rio, que era de 5.480.778 habitantes em 1991, passou para 5.851.914 em 2000.
Nesse universo, o número de favelados já vai além de um milhão, e o de favelas está em torno de 700. O número de habitantes de comunidades carentes aumentou mais rapidamente nos bairros da Barra e Jacarepaguá, enquanto no resto da cidade, de um modo geral, a população diminuiu nas áreas consolidadas. Suspeita-se que por terem, as famílias, reduzido o número de filhos.
Um projeto localizado no Arquivo Nacional, entre os guardados de Paulo Assis Ribeiro, nome de destaque na política de Getúlio Vargas a Humberto Castelo Branco, de quem foi um dos assessores, demonstra que quando atuou no planejamento e implantação do Instituto de Desenvolvimento Agrário, nos anos de 1962 a 1963 e, mais tarde, como presidente do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, de 1965 a 1967, ele quis implantar as agrovilas, com o objetivo de deter o homem no interior do país, evitando o êxodo rural e a formação das favelas. O projeto chegou a ser orçado em 50 milhões de dólares, que seriam financiados pelo BNDES.
As agrovilas seriam compostas de 30 lotes agrícolas dispostos em círculos circunscritos, em cujo centro seria construída uma praça com igreja, setores de educação e recreação. No segundo anel estariam os de administração e assistência. Num terceiro anel, viria o setor comercial, e nos dois últimos os setores industriais e os lotes residenciais. Ao que se sabe, esse programa jamais saiu do papel.
Na mesma pasta, Paulo Assis Ribeiro guardou um estudo da Campanha de Urbanização das Favelas do Rio de Janeiro - Princípios básicos que a norteiam, do início dos anos 50. Junto estava um depoimento de D. Hélder Câmara à Câmara dos Deputados expondo seu projeto de criação da Cruzada São Sebastião, e o seu estatuto. Nas campanhas de D. Hélder, um alerta:
— Os comunistas encontram campo fácil para sua pregação de luta de classes, porque é realmente gritante o contraste entre as casas dos favelados e as residências do meio independente, especialmente na Zona Sul.
Tínhamos então, segundo esses documentos, 150 favelas e 400 mil favelados descritos como focos perigosos de agitação social. A campanha, que começou em 1953, tinha em vista a urbanização das favelas do Rio em 12 anos, até o IV Centenário da Fundação da Cidade, em 1965. O projeto teria início pela Praia do Pinto, descrita como uma das mais tristes de nossas favelas. Hoje, sabe-se, a favela da Praia do Pinto pegou fogo misteriosamente. O incêndio é atribuído a especuladores imobiliários, pois ficava em uma das áreas mais nobres da cidade, onde está o condomínio Selva de Pedra, no Leblon.
Os pobres ficam nas bordas
O motivo de nada disso ter ido adiante, na visão do mestre em Antropologia Social pela UFRJ e doutor em Sociologia pela Universidade de Rutgers, de Nova Jersey, EUA, Luiz Antônio Machado da Silva, não está apenas no descaso das autoridades. A questão, para ele, é muito mais profunda. É que a favela reproduz a luta de classes e é fruto da acomodação das diversas camadas da sociedade, sob o controle social do poder. Sem medo de errar, ele afirma:
— Nenhuma política de intervenção de melhoria de condições habitacionais de população pobre jamais deu certo em lugar nenhum do mundo. Em alguns lugares atingiu a 10% da população, em outros chega a 12%, outros 5%, mas esta é uma questão que permite apenas ser negociada. Solução, não há - garante.
Investido da autoridade de quem pesquisa o assunto desde 1969, o antropólogo diz que para não enfrentar esse tipo de problema, só se o país tivesse aberto mão da industrialização e optado por um capitalismo light, o que teria sido impossível, dado ao rumo que trilhamos.
Ele lembra que nos anos 20 houve um surto de industrialização relacionado com a Primeira Guerra, mas pouco intenso. A partir dos anos 30, o Brasil viveu um processo de industrialização, no sentido massivo. E ressalta que quem mudou de fato a relação industrial foi o presidente Juscelino Kubitschek.
— O processo que começou nos anos 30 foi implantado sob a forma de substituição de importação e o país se consolidou como um país capitalista. Antes disso, a população sem recursos e sem vínculos já vinha orbitando, em torno dos aglomerados de classe média, onde havia os recursos de sobrevivência - afirma o antropólogo. - A história da favela é essa. Os pobres foram ficando nas bordas. Foi a procura da aproximação das populações que já não eram mais agrícolas, aos novos recursos de sobrevivência.
Nesse processo de acomodação ao novo modelo, as favelas começaram a ficar próximas demais. Surgiram então, nos anos 20, as primeiras tentativas de solução. O governo estimulava os empresários a buscar empréstimos e financiamentos, a fim de organizar a habitação para seus funcionários e trabalhar suas mentalidades. O estímulo à iniciativa privada não deu certo.
— Não havia dinheiro, e o problema não era suficientemente grande a ponto de incomodá-los. Os empresários só desembolsariam recursos para organizar alguma coisa que os incomodassem. E o governo só se disporia a dar mais dinheiro se o problema fosse mais sério do que era. Não deu certo porque não precisava nada além do que foi feito para manter a coisa em banho-maria, vamos dizer assim - afirma.
Luiz conclui dizendo que nunca houve nem disponibilidade, nem alocação de recursos suficientes para fazer face nem a 5% das necessidades de produção de habitação. Não só no Brasil, como no mundo inteiro. (Jornal do Brasil, 24/10)