Água para todos?
2005-10-21
Por Roberto Villar Belmonte*
— O conceito água para todos já faz parte da nossa
linguagem quotidiana. Mas se trata de uma expressão?
Ou ele é uma fórmula, um slogan? Ele é realidade ou
sonho? Talvez os dois ao mesmo tempo. Seremos capazes
de atingi-lo? Não tem uma parte da humanidade que
morre diariamente de sede e fome? Se queremos dar água
a todos é porque ela é escassa. No entanto,
contrariando esta idéia geralmente aceita, eu digo que
ela é um recurso abundante, mesmo sendo o seu acesso
freqüentemente problemático.
Com esta reflexão, o presidente do Conselho Mundial da
Água, Loïc Fauchon, iniciou a sua conversa com
jornalistas ambientais de 32 países reunidos de 12 a
15 de outubro em Monte Porzio Catone, a 40 quilômetros
de Roma, pela Associação Cultural Greenaccord para
analisar as relações existentes entre os problemas
ambientais e a paz. Fauchon foi eleito em março de
2005 para presidir o conselho que irá realizar no
México, de 16 a 22 de março de 2006, o IV Fórum
Mundial da Água.
Da água existente na Terra, apenas 2,5% é água doce.
Dentro deste pequeno percentual, apenas 1% está
atualmente disponível para uso humano, o que, na
verdade, representa um volume estratosférico de 300
mil km3. Estima-se que anualmente a água retirada da
superfície do planeta seja de aproximadamente 5 mil
km3. Em alguns lugares, como na região Amazônica, há
abundância. Em outros, a quantidade de água tem sido
insuficiente para atender as necessidades básicas das
pessoas.
Inconsistência hídrica
— Esta disparidade gera o que eu chamo de
inconsistência hídrica. Existe um triângulo da sede
entre Gibraltar, Cabo Horn e Paquistão habitado por
meio bilhão de pessoas-, reflete Loïc Fauchon. O
consumo mundial varia muito entre os dois extremos.
Enquanto nos Estados Unidos um habitante usa
diariamente uma média de 700 litros, no Haiti o
consumo despenca para apenas 20 litros. Em escala
mundial, o consumo anual per capita caiu em apenas 30
anos de 12.900 m3 em 1970 para 6.800 m3 no ano 2000.
A exaustão dos recursos naturais ameaça o progresso e
também a capacidade dos ecossistemas atenderem às
necessidades das futuras gerações. — Esta questão tem
que ser repensada agora dentro do contexto complexo
das mudanças climáticas que estão acentuando os
extremos, não somente com secas, que sem dúvida são
fenômenos dramáticos, mas também com enchentes
catastróficas que tem devastado áreas agrícolas e
urbanas-, alerta o presidente do Conselho Mundial da
Água, Loïc Fauchon.
Os seres humanos são o principal inimigo da água desde
o início dos grandes avanços trazidos pelo progresso.
Como exemplo Fauchon cita a poluição do mar, os
efluentes agrícolas e industriais, o esgoto sem
tratamento das grandes cidades e ainda o aumento
populacional que tem sido de um bilhão de pessoas a
cada década. Este crescimento demográfico (de
consumidores) aumenta a pressão sobre o solo e a água
com mais poluição gerada e lançada nos mananciais
hídricos.
O alto preço pago já é bem conhecido: degradação, salinização dos solos, desflorestamento descontrolado,
eutrofização de lagos, poluição das águas e redução de
aqüíferos. Esta conta também inclui metade dos grandes
rios do mundo já considerados poluídos ou em vias de
secar, as diversas zonas úmidas, áreas de grande valor
ecológico, que desapareceram ao longo do século 20 e a
expansão das megacidades com mais de dez milhões de
habitantes e a conseqüente falta de saneamento
ambiental.
Lado a lado com a pobreza
— Para agravar ainda mais a situação, já sabemos que a
demanda pela água vai aumentar em mais de um terço nos
próximos 25 anos-, destaca o presidente do Conselho
Mundial da Água, Loïc Fauchon. Segundo dados da
Organização Mundial da Saúde, atualmente já morrem 25
mil pessoas por dia por doenças associadas à água como
cólera, dengue, poliomelite, febre amarela, malária e
outras. — A lista de doenças que podem ser ocasionadas
pela água parada é praticamente infindável-, ressalta
Fauchon.
Há uma divisão no planeta entre os com e os sem
água. De um lado estão 25% da humanidade formados
pelos habitantes dos países ricos do mundo ocidental e
pela minoria rica que vive nos países pobres,
chamados nos fóruns internacionais de países em
desenvolvimento. Estas pessoas têm tecnologia,
conhecimento e dinheiro. Elas têm água. Do outro lado
está a grande maioria do planeta, 75% da população
mundial. Neste lado pobre, 3 bilhões vivem com menos
de dois dólares diários.
Os mais pobres sofrem mais com a escassez de água, com
a poluição do ar, com as condições deploráveis de
saúde, falta de acesso à energia e maior risco de
contaminação com resíduos perigosos. Estas pessoas são
duas vezes mais vulneráveis, enfrentam mudanças
ambientais imprevistas e sofrem mais com as
catástrofes ditas naturais. Elas são as vítimas
previsíveis das enchentes, ciclones, terremotos,
secas, deslizamentos de terra e também da insegurança,
guerra civil e conflitos armados.
— Nós sabemos perfeitamente bem que a falta de acesso à
água caminha lado a lado com a pobreza e a
insegurança. Com sede, as pessoas bebem água marrom e
contaminada-, lamenta Loïc Fauchon. No entanto, mesmo
diante de um quadro tão grave, o presidente do
Conselho Mundial da Água não concorda com os que
afirmam que no século 21 a água seria a origem das
guerras. E ele cita dados para mostrar que o potencial
de resolução pacífica dos conflitos é bem maior do que
se pensa.
Gerenciar melhor, consumir menos
Dois terços dos principais rios do planeta cortam
diversos países. Ao todo existem 263 bacias
hidrográficas internacionais. Pesquisa de Aaron Wolf,
da Universidade Estadual do Oregon, mostrou que a
apropriação da água quase nunca causou guerras. Ele
analisou 1.831 disputas entre países ocorridas desde
1950. Deste total, 1.228 terminaram em acordos de
cooperação e 507 geraram conflitos. Apenas 21
resultaram em conflitos armados, sendo que destes 18
envolveram Israel e os países vizinhos.
A maioria dos conflitos surge não pela falta de água,
mas principalmente devido ao modo inadequado como a
água é gerenciada. Este fracasso gerencial tem várias
causas, segundo Loïc Fauchon, entre elas a ausência de
instituições adequadas, falta de transparência e
corrupção. O presidente do Conselho Mundial da Água é
favorável à participação da iniciativa privada nos
serviços de saneamento desde haja um forte controle
público e social. Para ele, a água deve ser sempre
tratada como um bem público, e nunca privado.
O caminho para superar os desafios envolvendo as
dificuldades crescentes de acesso à água é resumido
por Loïc Fauchon em apenas uma frase: Gerenciar
melhor, e consumir menos. Melhorar o gerenciamento
significa fazer todo o possível para evitar os enormes
desperdícios de água nos sistemas agrícolas e nas
cidades, ou seja, processos de irrigação mais
eficientes e sistemas de saneamento urbano sem as
constantes e enormes perdas causadas por problemas nas
tubulações.
E consumir menos tem a ver com uma nova cultura para
evitar os desperdícios diários e também com uma
simples evolução tecnológica na cozinha, nas lavagens,
nos jardins. Significa considerar a água como um
recurso limitado e cujo armazenamento, transporte e
tratamento têm um custo elevadíssimo no orçamento
público e familiar. Outros avanços necessários citados
por Fauchon são o desenvolvimento dos processos de
dessalinização e o aumento do reuso da água na
agricultura e na indústria.
* Roberto Villar Belmonte participou do III Fórum
Internacional de Mídia Meio Ambiente, caminho de Paz
à convite da Associação Cultura Greenaccord.