Artigo: A quem serve a transposição do São Francisco?
2005-10-19
Por Aziz Ab Sáber, geógrafo
É compreensível que em um país de dimensões tão grandiosas, no contexto
da tropicalidade, surjam muitas idéias e propostas incompletas para
atenuar ou procurar resolver problemas de regiões críticas.
Entretanto, é impossível tolerar propostas demagógicas de
pseudotécnicos não preparados para prever os múltiplos impactos
sociais, econômicos e ecológicos de projetos teimosamente enfatizados.
Tem faltado a eventuais membros do primeiro escalão dos governos
qualquer compromisso com planificação metódica e integrativa, baseada em
bons conhecimentos sobre o mundo real de uma sociedade prenhe de
desigualdades.
Nesse sentido, bons projetos são todos aqueles que possam atender às
expectativas de todas as classes sociais regionais, de modo equilibrado
e justo, longe de favorecer apenas alguns especuladores contumazes.
Pessoalmente, estou cansado de ouvir propostas ocasionais, mal
pensadas, dirigidas a altas lideranças governamentais.
Nas discussões que ora se travam sobre a questão da transposição de
águas do São Francisco para o setor norte do Nordeste Seco, existem
alguns argumentos tão fantasiosos e mentirosos que merecem ser
corrigidos em primeiro lugar. Referimo-nos ao fato de que a transposição
das águas resolveria os grandes problemas sociais existentes na região
semi-árida do Brasil. Trata-se de um argumento completamente infeliz
lançado por alguém que sabe de antemão que os brasileiros
extra-nordestinos desconhecem a realidade dos espaços físicos, sociais,
ecológicos e políticos do grande Nordeste do país, onde se encontra a
região semi-árida mais povoada do mundo.
O Nordeste Seco, delimitado pelo espaço até onde se estendem as
caatingas e os rios intermitentes, sazonários e exoreicos (que chegam ao
mar), abrange um espaço fisiográfico socioambiental da ordem de 750.000
quilômetros quadrados, enquanto a área que pretensamente receberá
grandes benefícios abrange dois projetos lineares que somam apenas
alguns milhares de quilômetros nas bacias do rio Jaguaribe (Ceará) e
Piranhas/Açu, no Rio Grande do Norte.
Portanto, dizer que o projeto de transposição de águas do São Francisco
para além Araripe vai resolver problemas do espaço total do semi-árido
brasileiro não passa de uma distorção falaciosa.
Um problema essencial na discussão das questões envolvidas no projeto
de transposição de águas do São Francisco para os rios do Ceará e Rio
Grande do Norte diz respeito ao equilíbrio que deveria ser mantido entre
as águas que seriam obrigatórias para as importantíssimas hidrelétricas
já implantadas no médio/baixo vale do rio - Paulo Afonso, Itaparica,
Xingó.
Devendo ser registrado que as barragens ali implantadas são fatos
pontuais, mas a energia ali produzida, e transmitida para todo o
Nordeste, constitui um tipo de planejamento da mais alta relevância para
o espaço total da região.
De forma que o novo projeto não pode, em hipótese alguma, prejudicar o
mais antigo, que reconhecidamente é de uma importância areolar. Mas
parece que ninguém no Brasil se preocupa em saber nada de planejamentos
pontuais, lineares e areolares. Nem tampouco em saber quanto o projeto
de interesse macrorregional vai interessar para os projetos lineares em
pauta.
Segue-se na ordem dos tratamentos exigidos pela idéia de transpor águas
do São Francisco para além Araripe a questão essencial a ser feita para
políticos, técnicos acoplados e demagogos: a quem vai servir a
transposição das águas? Uma interrogação indispensável em qualquer
projeto que envolve grandes recursos, sensibilidade social e honestas
aplicações dos métodos disponíveis para previsão de impactos.
Os vazanteiros que fazem horticultura no leito dos rios que cortam
- que perdem fluxo durante o ano - serão os primeiros a ser totalmente
prejudicados. Mas os técnicos insensíveis dirão com enfado: —A cultura
de vazante já era. Sem ao menos dar qualquer prioridade para a
realocação dos heróis que abastecem as feiras dos sertões. A eles
se deve conceder a prioridade maior em relação aos espaços irrigáveis
que viessem a ser identificados e implantados.
De imediato, porém, serão os fazendeiros pecuaristas da beira alta e
colinas sertanejas que terão água disponível para o gado, nos cinco ou
seis meses que os rios da região não correm. É possível termos água
disponível para o gado e continuarmos com pouca água para o homem
habitante do sertão.
Nesse sentido, os maiores beneficiários serão os proprietários de
terra, residentes longe, em apartamentos luxuosos em grandes centros
urbanos.
Sobre a viabilidade ambiental pouca coisa se pode adiantar, a não ser a
falta de conhecimentos sobre a dinâmica climática e a periodicidade do
rio que vai perder água e dos rios intermitentes-sazonários que vão
receber filetes das águas transpostas.
Um projeto inteligente e viável sobre transposição de águas, captação e
utilização de águas da estação chuvosa e multiplicação de poços ou
cisternas tem que envolver obrigatoriamente conhecimento sobre a
dinâmica climática regional do Nordeste.
No caso de projetos de transposição de águas, há de ter consciência que
o período de maior necessidade será aquele que os rios sertanejos
intermitentes perdem correnteza por cinco a sete meses. Trata-se porém
do mesmo período que o rio São Francisco torna-se menos volumoso e mais
esquálido. Entretanto, é nesta época do ano que haverá maior necessidade
de reservas do mesmo para hidrelétricas regionais. Trata-se de um
impasse paradoxal, do qual, até agora, não se falou.
Por outro lado, se esta água tiver que ser elevada ao chegar a região
final de seu uso, para desde um ponto mais alto descer e promover alguma
irrigação por gravidade, o processo todo aumentará ainda mais a demanda
regional por energia.
E, ainda noutra direção, como se evitará uma grande evaporação desta
água que atravessará o domínio da caatinga, onde o índice de
evaporação é o maior de todos? Eis outro ponto obscuro, não
tratado pelos arautos da transposição.
A afoiteza com que se está pressionando o governo para se conceder
grandes verbas para início das obras de transposição das águas do São
Francisco terá conseqüências imediatas para os especuladores de todos os
naipes.
Existindo dinheiro - em uma época de escassez generalizada para
projetos necessários e de valor certo -, todos julgam que deve ser
democrática a oferta de serviços, se possível bem rentosos. Será assim,
repetindo fatos do passado, que acontecerá a disputa pelos R$ 2 bilhões
pretendidos para o começo das obras.
O risco final é que, atravessando acidente s geográficos consideráveis,
como a elevação da escarpa sul da chapada do Araripe - com grande gasto
de energia!-, a transposição acabe por significar apenas um canal tímido
de água, de duvidosa validade econômica e interesse social, de grande
custo, e que acabaria, sobretudo, por movimentar o mercado especulativo,
da terra e da política. No fim, tudo apareceria como o movimento geral
de transformar todo o espaço em mercadoria.