Relatório aponta violação dos direitos humanos e risco de tragédia ambiental em projeto da Vale no Maranhão
2005-10-17
Por Francis França
O relatório conjunto da Relatoria Nacional para os Direitos Humanos à Alimentação Adequada, à Água e à Terra Rural, Relatoria Nacional para o Direito Humano à Moradia Adequada e Terra Urbana e Relatoria Nacional para o Direito Humano ao Meio Ambiente constatou que foram e continuam sendo cometidas graves violações aos direitos humanos de 15 mil moradores das comunidades próximas à área onde a Companhia Vale do Rio Doce pretende construir um pólo siderúrgico, em São Luis/MA. O relatório indica também conivência com o empreendimento e descaso com o meio ambiente e a população por parte dos governos municipal, estadual e federal.
As Relatorias Nacionais - projeto da plataforma brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais (DHESC) com apoio do programa de voluntários da ONU e do Ministério Público Federal - realizaram uma missão conjunta a São Luis do Maranhão nos dias 22, 23 e 24 de agosto, a pedido do Fórum Reage São Luis (que congrega entidades da sociedade maranhense) para avaliar os impactos da implantação do pólo siderúrgico. O documento divulgado no dia 26/9 traz constatações e recomendações preliminares, o relatório circunstanciado, com recomendações finais, será produzido nos próximos dois meses.
O Pólo Siderúrgico São Luis faz parte de um pacote anunciado pela Vale do Rio Doce, que pretende investir US$ 8,5 bilhões até 2010 em projetos de minério de ferro, cobre e logística de carga. O empreendimento deverá produzir cerca de 22 milhões de toneladas de aço por ano, o que representaria hoje 70% da produção brasileira e cerca 3,2% da produção mundial. A estimativa do governo do Maranhão é de que o pólo comece a funcionar em 2007, produzindo inicialmente 3,7 milhões de placas de aço por ano. O empreendimento é uma parceria da Companhia Vale do Rio Doce com a empresa chinesa Baosteel e com a Arcelor, de Luxemburgo.
Apesar da campanha de desenvolvimento sustentável anunciada nas páginas da internet das empresas envolvidas, o documento das Relatorias Nacionais aponta que a área onde ficará o empreendimento, e que o governo municipal pretende transformar em zona industrial para implantar o Pólo Siderúrgico, é área rural de uma ilha costeira e habitada, que abriga mangues e dezenas de nascentes. O ecossistema caracteriza a região como Área de Preservação Permanente (APP), que seriam ilegal e inconstitucionalmente devastadas para abrigar o empreendimento. Além do impacto ambiental, o pólo também causaria impacto sócio-cultural à cidade de São Luis, tombada como patrimônio histórico e mundial pela Unesco em 1997.
De acordo com o documento das Relatorias Nacionais, os moradores de 11 comunidades que serão diretamente atingidas caso o pólo siderúrgico seja implantado foram ameaçados e intimidados por técnicos contratados pela Companhia Vale do Rio Doce. Sem qualquer autorização legal para a implantação do empreendimento na ilha, em meados de 2004 a empresa Diagonal – Urbana e Consultoria Ltda., contratada pela Vale, invadiu casas de moradores para fazer o cadastramento e marcação das propriedades a serem desapropriadas, pintando números nas paredes das casas.
Na lista de irregularidades apontadas pelo relatório, que inclui desrespeito ao artigo 186 da Constituição Federal - função social da propriedade rural - também constam problemas nas audiências públicas e consultas à população. Segundo as relatorias, as consultas foram parciais e tendenciosas, considerando apenas as opiniões favoráveis à implantação do pólo. As informações divulgadas pelo poder público estariam confundindo a população pela falta de informações sobre os impactos ambientais que a atividade siderúrgica pode causar. As comunidades, que habitam a região há quatro gerações, sequer foram informadas de que não são obrigadas a sair da área.
Mesmo sem qualquer autorização legal ou administrativa para a construção do empreendimento, a população já sofre os efeitos da implantação do pólo siderúrgico. As famílias, que vivem da mineração, pesca, extrativismo e agricultura familiar, foram excluídas do acesso aos recursos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), sob a justificativa de que seriam desalojadas pelo mega-projeto.
Manifesto da SBPC alerta para problemas ambientais
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) divulgou, em dezembro do ano passado, um manifesto contra a implantação do pólo siderúrgico de São Luis, baseado em estudo que indica graves problemas ambientais que serão desencadeados pela atividade industrial na região. Segundo o documento, as três usinas siderúrgicas que a Vale do Rio Doce e seus parceiros pretendem instalar em São Luis serão responsáveis pela emissão de 35,6 milhões de toneladas/ano de Dióxido de Carbono (CO2), principal responsável pelo efeito estufa, além de quantidades ainda não informadas de Óxidos de Nitrogênio (NOX) e Dióxido de Enxofre (SO2), que, se emitidos, podem gerar chuva ácida.
Segundo a SBPC, a emissão brasileira de dióxido de carbono decorrente da queima de combustíveis fósseis aumentaria em 10,2%, e a cada ano seriam produzidos 5,6 milhões de toneladas de rejeitos sólidos.
Outro fator preocupante destacado pela entidade é que o Pólo Siderúrgico demandará 2,4 mil litros de água por segundo - 207 milhões de litros por dia, o equivalente a todo o consumo atual de São Luís, que seriam basicamente transformados em vapor.
— A soma do impacto social causado e de todos os riscos ambientais envolvidos: possibilidade de contaminação de águas subterrâneas; poluição do ar e do solo; elevação da emissão nacional de dióxido de carbono; aumento do calor e das chuvas e geração de grande volume de rejeitos sólidos demonstram claramente que a Ilha de São Luís não suporta a implantação sequer de uma siderúrgica, quanto mais de três usinas de grande porte – destaca o manifesto.
O documento das Relatorias Nacionais, produzido oito meses depois do manifesto, ratifica as preocupações da SBPC. De acordo com o relatório, a cidade de São Luis já convive com os impactos, cuja extensão ainda não foi avaliada de grandes projetos implantados no Estado do Maranhão, como os da Alumar e da Vale.
— No entanto, até hoje ainda não há políticas públicas desenvolvidas para os impactos e poluições dos empreendimentos da Vale e da Alumar, ou seja, para atender a educação, a saúde, a capacitação profissional, o controle ambiental e a saúde do trabalhador das empresas siderúrgicas implantadas na Ilha – afirmam as relatorias.
O relatório afirma ainda que, a despeito da experiência de impactos causados pela siderurgia em outros estados, sabe-se que um empreendimento desse porte exige políticas públicas efetivas para evitar problemas relacionados com a saúde decorrente da contaminação por resíduos sólidos, efluentes líquidos e poluição atmosférica, especialmente os aromáticos e metais pesados emitidos pelas siderúrgicas.
— O Estado não tem estrutura de monitoramento da qualidade da água e do ar e sequer conhece o impacto já causado pelas plantas industriais da Alumar e da Vale na Ilha de São Luís. O município não tem estrutura urbana para receber o fluxo migratório que naturalmente acompanhará o empreendimento e as próprias autoridades demonstraram desconhecer a realidade das famílias que seriam deslocadas – dizem as relatorias, acrescentando que se desconhece a tecnologia a ser empregada no pólo porque as empresas não apresentaram projetos às autoridades e à população.
Jeitinho administrativo
Mesmo com as irregularidades e deficiências, tanto o governo estadual do Maranhão quanto a prefeitura de São Luis estão empenhados em articular projetos que viabilizem a implantação do pólo siderúrgico da Vale do Rio Doce. Está em votação proposta de alteração da Lei de Zoneamento, Uso e Ocupação do Solo Urbano de São Luis para transformar a Zona Rural da região em Zona Industrial, sem diagnóstico sobre potenciais econômicos, sociais, culturais e ambientais.
Só que a medida é ilegal. De acordo com o documento das Relatorias Nacionais, o Plano Diretor de São Luis caducou em 1992, ao fazer aniversário de dez anos. É como se não houvesse plano vigente e, sem ele, qualquer alteração de zoneamento é inconstitucional.
De acordo com Guilherme Zagallo, representante do Fórum Reage São Luis, estudantes e moradores das áreas afetadas farão vigília nas seções de votação do projeto de lei de alteração de zoneamento, com protestos semanais. O Ministério Público Estadual do Maranhão também acompanha as rodadas de votação e impôs três condições para concordar com o projeto: que seja construída apenas uma usina e não três, que o empreendimento não atinja as APPs e que a Vale seja obrigada a se retratar publicamente pelas humilhações impostas às comunidades atingidas. Se as condições não forem atendidas, o MP deve entrar com ação de ilegalidade contra o projeto em tramitação.
As Relatorias Nacionais também indicam infração na Constituição Estadual. Segundo o documento, a área afetada pelo pólo tem extensão de 2.471 hectares. Mas o artigo 194 da Constituição do estado só autoriza a concessão de terras públicas até o limite de mil hectares. Acima de dois mil hectares é preciso aval da Assembléia Legislativa, mas, segundo o relatório, até agora não se tem conhecimento dessa autorização legal. Além disso, seria preciso fazer uma Emenda à Constituição do Estado para autorizar a concessão.
As Relatorias Nacionais também informam que o governo estadual estruturou um Grupo Executivo para Implantação do Pólo Siderúrgico (GEIP), embora afirme não ter conhecimento dos projetos dos empreendedores. A Secretaria de Estado da Indústria, Comércio e Turismo, a Superintendência de Políticas e Infra-Estrutura Industriais e o GEIP já possuem projeto pronto de remanejamento de parte das comunidades, elaborado sem consulta e participação das partes interessadas.
O documento também chama a atenção para o fato de que área projetada para o pólo não teve regularização fundiária e não há levantamento sócio-econômico da região.
— O posicionamento a priori favorável dos governos (municipal, estadual e federal) infringe princípios constitucionais da administração pública que são fundamentais na garantia de direitos humanos: legalidade, publicidade, eficiência, moralidade e impessoalidade (artigo 37 da Constituição Federal). Essa postura antiética cria um risco desnecessário e extremamente perigoso à população, violando seu direito à participação – registra o relatório.
Queda da MP do Bem pode frustrar investimentos estrangeiros
A derrubada MP do Bem - como é chamada a Medida Provisória 255 - na última quinta-feira (13/10) pode interromper os planos da Vale do Rio Doce em relação ao Pólo Siderúrgico São Luis. A MP do Bem isentava as empresas predominantemente exportadoras de PIS e Cofins na compra de bens de capital. Com o fim da vigência da MP 255, as companhias ficarão impedidas de compensar os créditos dos impostos pagos durante a construção dos projetos.
O presidente da Vale do Rio Doce, Roger Agnelli, disse no dia 13 que, além do Pólo Siderúrgico São Luis, o fim da vigência da MP do Bem também pode atrasar uma refinaria de alumina no Pará em parceira com a chinesa Chalco e a Companhia Siderúrgica do Atlântico, que seria implantada no Rio de Janeiro em conjunto com o ThyssenKrupp, da Alemanha.
(Com informações das Relatorias Nacionais - http://www.siderurgianaamazonia.com.br/ListarDocumentos.aspx?tipo=1 - da Reuters e do Valor Online)