Julgamento de ADIN pode representar retrocesso na questão do amianto
2005-10-11
O julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, no próximo dia 20 de outubro, às 14h00, da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) contra o estado de Pernambuco, onde o amianto foi banido, ameaça formar jurisprudência sobre o assunto já que o lobby pró-amianto conseguiu revogar, anteriormente, as leis estaduais de São Paulo e do Mato Grosso do Sul . Com a expectativa de evitar esse grave retrocesso na política brasileira de saúde e defesa ambiental – o amianto é comprovadamente cancerígeno, inclusive sob a denominação de crisotila, ou amianto branco, e já foi banido em 42 países – deve crescer até o dia 20 a movimentação dos ambientalistas, profissionais de saúde do trabalho e políticos que levantam a bandeira do futuro livre de amianto no Brasil.
A ADIN contra Pernambuco representa, segundo essas lideranças, uma ameaça concreta de retrocesso para a saúde pública brasileira, favorecendo a indústria produtora de amianto, hoje particularmente lucrativa nos países do chamado Terceiro Mundo. De acordo com a engenheira e auditora fiscal do Ministério do Trabalho, Fernanda Giannasi, que é também fundadora da ABREA (Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto) e da Rede Virtual-Cidadã pelo Banimento do Amianto na América Latina, essa etapa da batalha contra o mineral cancerígeno no Brasil exige uma importante conjugação de esforços para enfrentar o lobby pró-amianto, financiado pelo Instituto da Crisotila (de origem canadense) e sua entidade-irmã, o Instituto Brasileiro da Crisotila, e alimentado pelos políticos da bancada do amianto crisotila-, com destaque para o parlamentar Ronaldo Caiado, goiano, e um dos principais representantes desse lobby.
Fernanda Giannasi, que estará em Brasília para o julgamento da ADIN ao lado de um grupo de trabalhadores vitimados pelo amianto, explica que o Brasil mantém atualmente a principal mina desse produto na América Latina, operada em Goiás pela mineradora SAMA (do grupo Eternit). Especialista no assunto e uma das mais atuantes lideranças da luta contra o amianto na América Latina, Fernanda estuda os efeitos nocivos do mineral há 23 anos, acompanha a dramática situação das vítimas brasileiras – que agora começa a ser mais claramente diagnosticada, uma vez que o mesotelioma, câncer provocado pela exposição ao amianto, pode levar até 40 anos para se manifestar - e tem participado de todos os principais fóruns internacionais de debate sobre a questão.
Depois da revogação das leis paulista e mato-grossense, alerta Fernanda, agora vemos também na berlinda as leis dos estados de Pernambuco, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro. A de Pernambuco já tem data marcada para a corte marcial, pois não cabe qualquer recurso a esta decisão definitiva, que é uma divisora de águas entre a saúde ou a doença, a opção pela vida ou pela morte lenta e a opção pelo bem-estar da população ou os interesses meramente econômicos e prevalentes de um setor industrial agonizante no mundo todo, mas ainda pujante e detentor de um grande poder junto ao governo federal .
As legislações dos outros dois Estados pioneiros no banimento do amianto no Brasil (RJ e RS) ainda não foram agendadas, mas há o temor de que um julgamento de inconstitucionalidade contra a lei de Pernambuco gere jurisprudência, pondo fim ao sonho de ter o Brasil engrossando a lista dos 42 países que já decidiram em favor da vida de seus cidadãos e baniram o amianto. Segundo Fernanda Giannasi, se prevalecer o bom-senso e tivermos a lei de Pernambuco mantida, assim como as do Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, além da esperada sanção do governador Blairo Maggi, do Mato Grosso, podemos ter a esperança, mesmo que tardia, de virmos a viver numa sociedade livre da fibra cancerígena ou também chamada poeira assassina ou fibra do diabo.
Reviravolta política - — Infelizmente, vivemos no Brasil um momento político muito difícil e imprevisível em relação à nossa bandeira principal por um futuro livre de amianto-, observa a auditora fiscal. Até 2002, vínhamos numa sucessão de bem-sucedidas ações parlamentares que culminaram com a proibição do amianto em 6 estados e em 20 cidades (inclusive a capital de São Paulo), com mais de 70 outras propostas em todos os níveis legislativos.
A maioria destas propostas, explica Fernando, veio do Partido dos Trabalhadores, que tinha, juntamente com a CUT, desde 1994, uma posição clara pelo banimento e uma de suas bandeiras políticas mais importantes na área de saúde ocupacional e ambiental. — Nunca tive dúvidas, até então, de que uma administração petista poria fim rapidamente aos riscos representados pelo amianto para a sociedade contemporânea e que seria possível obter o banimento a nível federal, beneficiando todo o território nacional-.
A eleição do Deputado João Paulo Cunha para a presidência da Câmara Federal, diz Giannasi, corroborou esta idéia, pois o mesmo é oriundo de Osasco, a capital nacional das vítimas do amianto. O Deputado João Paulo era, então, o digno representante desta comunidade sofrida e conhecia sobejamente os problemas enfrentados pelas vítimas do amianto e, até então, um grande aliado.
A grande surpresa veio com a mudança abrupta de opinião por parte do governo. —Aqueles que haviam sido nossos principais interlocutores durante tantos anos, repentinamente, em nome de uma dita governabilidade, nos informaram que não poderíamos mais contar com o apoio dos parlamentares do PT. Eles nos pediram, sem qualquer cerimônia, que aguardássemos um segundo mandato de Lula, quando teriam a maioria absoluta e poderiam se contrapor tranqüilamente aos nossos opositores, especialmente a chamada bancada da crisotila, composta em sua maioria por parlamentares goianos, o grande estado produtor de amianto crisotila ou amianto branco, bancada esta capitaneada pelo deputado ruralista, Ronaldo Caiado-.
O deputado Ronaldo Caiado e outros tantos parlamentares de Goiás receberam da mineradora SAMA(do grupo Eternit) o montante de R$ 1 milhão, do que se sabe oficialmente, para suas campanhas eleitorais de 2002. Da maneira mais cínica e tranqüila possível, o deputado Caiado declarou no premiadíssimo documentário franco-canadense — A morte lenta pelo amianto, que esta é prática corrente no Brasil e que fez isto de maneira trans-pa-ren-te. Desnecessário chamar a atenção para o fato de que o próprio Caiado, coincidentemente, foi nomeado relator da comissão responsável pelo encaminhamento do Projeto de Lei dos deputados Fernando Gabeira e Eduardo Jorge, que propõe o banimento total do amianto no Brasil em prazo de um ano após sua aprovação, e que permanece devidamente engavetado .
—Evidentemente, todos que assistiram ao filme nos países em que ele foi veiculado, ficaram estarrecidos com tanta desfaçatez, mas por aqui a reação foi de total indiferença-, comenta Fernanda Giannasi. Indiferença esta notadamente no meio político, porque o documentário da cineasta francesa Sylvie Deleule foi o vencedor do troféu Cora Coralina, premiação máxima do Festival Internacional de Cinema Ambiental – FICA – realizado este ano em Goiás.
— Nossa perplexidade com a maneira esquiva adotada pelos parlamentares do PT em relação a estas graves denúncias de conflito de interesses e de tráfico de influências no Congresso, explica Fernanda Giannasi, começou a ser respondida recentemente pela onda de escândalos que assolam o País envolvendo as práticas republicanas e não republicanas de nossos ilustres parlamentares, em particular as iniciativas tomadas nos bastidores da Casa Civil-.
Ela afirma que — o governo LULA foi uma total decepção para todos nós que militamos há mais de 20 anos nesta seara-. E destaca, como uma das manobras mais hipócritas do processo, a criação de uma Comissão Interministerial do Amianto, iniciativa tomada no ano passado pela cúpula do governo, envolvendo em especial o Ministério do Trabalho e Emprego. —Foi uma clara manobra para tentar nos calar e nos descredenciar para este debate com a sociedade, como temos feito nestas duas últimas décadas, criando uma cortina de fumaça, através desta comissão de especialistas, que foi oficializada com muito estardalhaço e que seria doravante a única responsável por definir as políticas para a substituição do amianto, já que estes representantes do governo, em 28.3.2004, declararam ao jornal Folha de São Paulo que o banimento era uma questão de governo e ficou, ali, subentendido, que só faltava definir a data para seu anúncio.
Todas as audiências públicas de lá para cá ocorreram a portas fechadas, lembra Fernanda Giannasi, até que, finalmente, a Comissão decidiu que nada decide. O governo, pressionado pela mídia depois de inúmeros adiamentos, finalmente entregou seu relatório à Casa Civil, em 28.4.2005, e confirmou o que temíamos e vínhamos anunciando durante todo o ano de 2004. O anúncio foi feito através de representantes de escalões inferiores que informaram, sem aparentar qualquer constrangimento, que não há consenso no governo e que os Ministérios de Minas e Energia e Indústria e Comércio são contra o banimento, em contraposição à maioria representada pelas pastas de Saúde, Meio Ambiente, Trabalho, Previdência Social e uma apática Casa Civil, que preferiu se abster, diz Fernanda.
Pastelão – A auditora fiscal lembra que essa situação absurda, que envolve a saúde e a vida de milhares de pessoas, se assemelha muito mais a um filme pastelão, cheio de tortas na cara, do que a decisões governamentais de pessoas sérias. As leis de São Paulo e Mato Grosso do Sul foram as primeiras vítimas deste cenário de ópera bufa e foram julgadas inconstitucionais em ADINs propostas pelos produtores de Goiás. Juízes circunspectos, tentando demonstrar seriedade e conhecimento de causa, julgaram, acima da própria Constituição Federal, que os estados não podem legislar concorrentemente com a união nesta questão, ferindo o que dispõe a Carta Magna de 1988, que outorgou tal direito a estados e municípios, quando se trata de proteger a saúde e o meio ambiente, podendo aprovar leis inclusive muito mais restritivas do que a própria União.
—O federalismo conquistado pela Constituição de 1988 foi simplesmente ignorado pelo STF, que levou em consideração que os banimentos propostos pelos dois estados prejudicariam a receita bruta do estado de Goiás, que depende em 30% da indústria do amianto-, informa Fernanda Giannasi.
A saúde dos brasileiros e os custos do combalido SUS para tratar os doentes foram simplesmente ignorados. Também deixaram de ser considerados os custos para a reparação de áreas degradadas pela indústria de mineração do amianto, como no caso da mina abandonada em Poções, na Bahia. Nesse exemplo específico, assegura Fernanda, se a Lei do Crime Ambiental retroagisse levaria muita gente para a cadeia.
Uma história de trabalho e morte - Há quase 100 anos já se sabia que o amianto, mineral utilizado por vários segmentos da indústria, em especial o da construção, causava doenças aos trabalhadores que respiravam as fibras do produto. Em 1931, numa das primeiras manifestações de grande porte, os mineiros da Grã Bretanha fizeram uma série de protestos contra a exposição à chamada fibra do diabo. Nas décadas de 50 e 60, estudos de risco de câncer comprovaram a extrema toxicidade do material e sua relação direta com os casos de mesotelioma (o câncer do amianto) e outras doenças respiratórias graves, mas as indústrias e os governos não tomaram qualquer providência.
Somente a partir de 1970 os países europeus reconheceram a validade das pesquisas e começaram a tomar atitudes restritivas, sempre prejudicadas pela atuação dos lobbies políticos e empresariais, muitas vezes escudados em teses acadêmicas encomendadas e mal articuladas para defender o mito do uso controlado do amianto e a menor nocividade do amianto crisotila ou amianto branco, teses estas ainda repetidas, à exaustão, pelos defensores do amianto no Brasil.
A luta contra o amianto e os interesses econômicos que o mantêm ativo em diversos países, entre os quais o Brasil, são o tema do documentário A Morte Lenta pelo Amianto (Asbestos, a Slow Death), dirigido pela francesa Sylvie Deleule. O filme é uma produção franco-canadense já exibida na França, Alemanha, Japão e Canadá e mostra abundante material de pesquisa colhido em vários países entre trabalhadores, médicos do trabalho, sindicalistas, ambientalistas, ex-governantes, pesquisadores e também representantes do lobby industrial.
Hoje os cientistas reconhecem, como destaca o filme, que o uso controlado do amianto é impossível de se obter, já que o produto está em toda parte, como pastilhas e lonas de freio, tetos, paredes, caixas dágua, revestimentos de fachadas etc. e sua deterioração libera no ambiente fibras que são cancerígenas em qualquer dosagem.
Na França, País que é o ponto de partida do documentário, um estudo feito em 1991 por uma socióloga sobre doenças do trabalho no país apontava a morte de 600 a 900 pessoas por ano devido ao contato com as fibras de amianto. Em outro estudo, de 1995, os resultados apontam para 2 mil a 3 mil mortes/ano – número que tende a crescer na medida em que o amianto mata lentamente, levando até 40 anos para se manifestar sob a forma de câncer .
O filme mostra que a luta contra o amianto, apesar da pressão lobbista, obteve algumas importantes vitórias, graças ao engajamento da sociedade: nos últimos anos, 42 países, nas sua maioria desenvolvidos econômica e socialmente, proibiram o uso da fibra do diabo. Em outros países, como no Canadá, Estados Unidos e no Brasil, adotam-se apenas soluções restritivas que, segundo cientistas, nada significam, pois o produto é letal mesmo se inalado em pequenas quantidades.
O esforço dos lobbies para escapar à proibição continua, numa guerra cujo final está longe de ser avistado. No Brasil, 4º. produtor mundial do mineral, a tramitação do projeto de lei de autoria dos deputados Fernando Gabeira e Eduardo Jorge, que visa banir o uso do amianto no País, está paralisada. Uma das maiores fabricantes mundiais do produto, a Saint-Gobain anunciou recentemente o abandono do uso do amianto, segundo mostra o documentário, e reconhece que encontrou alternativa para o produto a um custo apenas 15% superior – derrubando o mito plantado pelos lobbies de que o mineral era impossível de ser substituído por razões econômicas. A Eternit, que juntamente com a Saint-Gobain, é responsável por 90% do mercado de cimento-amianto, continua lutando contra a proibição.
Entre os depoimentos da parte brasileira do documentário está o da própria Fernanda Giannasi, contando um pouco de sua luta contínua desde 1983. Ela mostra as dificuldades do combate contra o lobby industrial e político, que conta com o apoio do Instituto da Crisotila, representante dos interesses do Canadá, ainda um grande produtor e exportador de amianto e que mudou de nome – se chamava até então Instituto do Amianto, por questão de estratégia de marketing depois que a União Européia decidiu pelo banimento da matéria-prima cancerígena. (Com informações Rede Virtual-Cidadã pelo Banimento do Amianto na América Latina)