Augusto Carneiro: Senhor do tempo
2005-10-11
A casa do homem não parece a de um verdadeiro amante da natureza. É um apê no centro
de Porto Alegre, de onde não se vê nenhum verde pela janela. Nas paredes, só tem
quadros de gente, com destaque para uma loira nazistona pelada com um bebê no colo -
nada de Amazônia, golfinhos ou onças. A decô é com vasos de plástico, suas flores
são de poliuretano. Uma cascata seca de gesso dá o supremo toque kitsch à floresta
doméstica. Seu sofá antigão pode ser a lembrança de que ali vive um sujeito
preocupado com animais, isto se levarmos em conta que o móvel é revestido de couro
fajuto.
Augusto César Abreu Câmara Cunha Almeida Pedreira Fabião Carneiro não precisa de
frescuras nem credenciais para ser considerado um dos pioneiros da ecologia no
Brasil.
Este gaúcho de 82 anos entrou na história ambientalista pela mão de ninguém menos do
que Henrique Roessler, o alemão que inspirou José vocês-sabem-quem-é Lutzenberger.
Carneiro virou escudeiro dos dois. Com eles, participou de todas as lutas por bichos,
verde e respeito à natureza ocorridas no Rio Grande nos últimos 40 anos.
Depois que os mestres se foram desta para melhor, Carneiro se tornou o guardião da
história deles. Mantém o único arquivo completo de tudo o que rolou naquele pedaço
do Brasil, com a autoridade de quem conheceu todos os envolvidos. Ele recém publicou
o livro A História do Ambientalismo , pela editora Sagra Luzzato.
Pelo livro se vê que seu Augusto anda ativo. Vai fazer 83 em dezembro, inteiríssimo
numa idade em que a maioria dos velhinhos já rateia, gosta de cadeira de balanço e
televisão. Seu Carneiro nem vê muito a tele porque é dono de uma Semp daquelas das
antigas, ainda preto e branco. É rueiro. Tem protesto, nem precisa convidá-lo, é
certo que ele estará lá.
Todo sábado, pode ser encontrado na sua banquinha da feira do Parque da Redenção,
distribuindo panfletos, agitando. Sua energia na tarefa é de dar inveja em militantes
jovens do Greenpeace. Muitas vezes, no fim da feira, quando estes começam a desarmar
sua barraquinha, o velho guerreiro ainda está firme na propaganda de suas idéias.
Claro, às vezes ele passa da conta. Como quando distribuiu, semanas atrás, um
documento pelo recolhimento do lixo seco, datado de 29 de agosto de 1990. Mas, numa
época em que até os computadores mais sofisticados sofrem alguma pane, o incidente
deve ser relevado.
Quando ele começa a falar do mundinho verde do Rio Grande, gosta de pegar a meada lá
fora, na África, em 1934. Lembra, furioso, que o ditador italiano Mussolini invadiu
o último país negro independente, a Abissínia. Para falar daqueles tempos seu sangue
ferve como se fosse hoje. Agita-se, conta que era comunista desde criancinha e
garante que foi a política que o levou ao ambientalismo. Retoma o tema da África
para contar que a Alemanha nazista cometeu também o holocausto negro , pela
execução pouco conhecida de todos os negros encontrados no país antes da
Guerra, número que ele calcula em 400, pouco mais ou menos.
Mas é o que rolou na Abissínia que o enfurece mesmo. – Sou casado há 30 anos com uma
negra- — dona Rosa, militante do Movimento Negro de Porto Alegre — ele vai falando,
quase dando a impressão de que a família de dona Rosa seria da Abissínia.
O homem começou seu lado de historiador do verde em 1967, com a morte de Henrique
Roessler. – Reuni quase 300 artigos que ele escreveu para jornais. Quando me dei
conta, tinha a linha cronológica completa, estabelecendo com certeza que ele foi o
pioneiro do Brasil-.
A primeira manifestação pró ambiente de Roessler foi um edital publicado por ele em
15 de fevereiro de 1939. Roessler trabalhava na Capitania dos Portos de São Leopoldo
e pregou um aviso na parede considerando crime a pesca com dinamite . Noutro
edital, pediu aos proprietários de terras na beira do rio que se abstivessem de usar
uma faixa de 15 metros nas suas margens — bem antes da lei que estabeleceu as Áreas
de Preservação Permanente (APPs).
Roessler legislou em suas portarias para que carroceiros não judiassem de
seus animais. Publicou um aviso para que os porcos não fossem soltos sob pinheirais.
A idéia era impedir a porcada de se locupletar com as sementes, o que prejudicaria o
reflorestamento natural.
O pioneiro dos pioneiros enfrentou as multinacionais da época quando multou
as indústrias calçadistas do Vale do Rio dos Sinos pela poluição dos cortumes. Isto
enfureceu os empresários, que foram ao governador protestar — eles conseguiram a
revogação das multas e a cassação dos poderes de Roessler como
legislador-protetor-fiscal-ambientalista.
Desarmado, ele saiu do campo e passou a defender suas idéias pelo jornal Correio do
Povo, então o mais lido do estado. Seus 310 textos, caprichosamente arquivados por
Carneiro, viraram a base do movimento ambientalista gaúcho (em 1955, Roessler fundou
a União Protetora da Natureza).
Quando Roessler morreu, em 1967, Carneiro ainda era um bedel do serviço público,
mais ligado na política do que no ambientalismo. Em 1971, começa a Era Lutzenberger.
– Nós fomos colegas no ginásio. Ele estava voltando da Europa com aquelas idéias
todas. Escreveu um artigo no jornal falando de uma associação para evitar o
envenenamento coletivo-. Nascia, assim, a Agapan (Associação Gaúcha de Proteção
ao Ambiente Natural). Lutz na cabeça, seu Carneiro de tesoureiro. – Eu já tinha sido
cobrador de aluguel de uma imobiliária, onde aprendi a perseguir caloteiros, gostava
de lidar com dinheiro-, conta. Por 13 anos, os primeiros e mais difíceis, ele
conseguiu manter a entidade sempre com dinheiro em caixa, só cobrando contribuições
de apoiadores voluntários.
Foi lenta a passagem da burocracia para o combate direto pró-verde. Carneiro é
advogado mas nunca exerceu a profissão, foi funcionário civil do Exército, fez
concurso para o Ministério Público, pulou dali para o Ministério do Trabalho, onde
se aposentou como mini-marajá, em 1982. Vive hoje da confortável aposentadoria de 9
mil reais.
Seu Carneiro não gosta do jeito que o ambientalismo é tratado pela imprensa. – Os
jornais abandonaram a nossa causa depois da redemocratização-, queixa-se. – Nosso
último grande momento foi na Eco 92, de lá para cá entramos em declínio-, acredita.
Ele aproveita a entrevista para resmungar contra os índios caingangues que ocupam o
parque natural do Morro do Osso , em Porto Alegre, uma pendenga que galvaniza
— palavra dele — o Rio Grande há dois anos. – Os índios não têm direito a viver lá.
Não é porque um dia passaram por lá que podem destruir tudo e reclamar direitos
ancestrais. O conceito ambientalista é não ocupar. Simplesmente não ocupar, para
deixar uma reserva de respiração. O valor da reserva é ficar intocada tanto por
índios quanto por brancos-.
Solto para falar, Carneiro ataca também os índios que vivem na Ilha do Bananal. –
Soube que eles alugam suas terras para fazendas de gado dentro do Parque Nacional-,
diz, fazendo cara de espanto. Pula para seus personagens preferidos, os negros. –
Estes, sim, são os primeiros ocupantes fixos de áreas brasileiras, mereceriam as
terras de seus quilombos. Os índios não, porque são migrantes-.
Desafiado a falar do movimento ambientalista do presente pro passado, ele refuga. –
Não vejo nada de grandioso no momento que estamos vivendo-. Dá uma pensadinha e se
queixa que a obra de Lutzenberger está abandonada, retomando a crônica inacabada de
seus companheiros do passado.
Seu Carneiro tem dois quartos do apê ocupados com livros. Exibe coleções antigas de
jornais, com fotos amareladas dos amigos. Abre um e relembra a luta para salvar uma
paineira do centro de Porto Alegre — o homem é capaz de dizer até se chovia naquele
dia da década de 80. O livro preferido dele é do ambientalista Francisco Fonseca.
Gosta também da obra do americano Warren Dean sobre o Pontal do Paranapanema. Ele
interrompe a entrevista para fazer uma diatribe contra o fumo.
O homem se considera um ambientalista da boca para dentro, porque desde 1983 só come
comida orgânica. Gaúcho entre gaúchos, jura que tem nojo de carne. Tanto
nojo que não lembra quando foi a última vez que comeu, garantindo que deve fazer mais
de 40 anos. Também odeia tratores. Se irrita só de ver fotos em que eles derrubam
árvores. Boa deixa para puxar seus álbuns de fotos. Começa mostrando uma de 17 de
março de 1995 no mesmo Parque da Redenção onde atua hoje. – Eu estava passando
quando vi um funcionário de uma firma de limpeza arrancando esta vegetação — diz e
mostra na foto —, um capital natural. Ele não foi treinado para perceber que estava
cometendo um crime-.
Os 40 anos de altos e altos, vitórias e vitórias do ambientalista Augusto Carneiro
tomariam páginas e páginas do Google. Mas o homem não é muito conhecido na web, nem
gosta dela. Usa uma máquina de escrever das antigas. Datilografa seus documentos
com dois dedos, lentamente, mas de forma firme e constante: – Nunca vou parar de
trabalhar-.
Um dos últimos documentos que produziu é um libelo contra a poda de árvores nos
jardins públicos, que seu Augusto chama de mutilação . Ele escreveu seu
manifesto em 1994, mas o reedita todos os anos, acrescentando ao pé da página um
A situação continua a mesma no presente ano .
Para o futuro ele tem previsões sombrias. Acha que o homem esta destruindo o planeta.
Cita as aterradoras elucubrações de seu guru Francisco Fonseca, sobre um tempo em
que o Brasil será todo dominado por gramíneas africanas. No pior cenário elas vão se
transformar em bambus de 20 metros de altura e engolir a vegetação nativa — isto
quando gado e homens não estarão mais aqui.
O homem diz isso e saboreia o terror infundido no repórter. Ele corta o papo
oferecendo material de propaganda para um mundo melhor — sinal de que acredita que
ainda temos chances de salvar o planeta. Ufa! (Renan Antunes de Oliveira, O Eco,
09/10)