Obra no São Francisco já consome R$ 12 mi e abre polêmica no país
2005-10-10
Quando o bispo de Barra (BA), Luiz Flávio Cappio, interrompeu a greve de fome em troca da reabertura do debate do projeto de transposição das águas do rio São Francisco, o Tesouro Nacional registrava que a obra já havia consumido neste ano seis vezes o dinheiro público dos recursos gastos na recuperação e revitalização da bacia. Foram mais de R$ 12 milhões para a transposição contra pouco menos de R$ 2 milhões para obras de revitalização e recuperação do São Francisco.
Contratado para gerenciar a transposição das águas, o consórcio Logos-Concremat já embolsou mais de R$ 8 milhões, por exemplo. A liberação de verbas para a transposição não foi interrompida no período de dez dias de jejum do bispo, acusam dados do Tesouro Nacional pesquisados pelo gabinete do deputado distrital Augusto Carvalho (PPS).
Na quarta-feira, penúltimo dia da greve e com a negociação com o governo em curso, os cofres públicos pagaram faturas emitidas pelo 1º Batalhão de Engenharia do Exército de aluguel de tratores e máquinas de escavação e terraplanagem na cidade de Cabrobó (PE) - a mesma onde o bispo fazia greve de fome.
O Exército é responsável pelo início das obras nos dois pontos do São Francisco em que uma parcela das águas do rio será captada e levada para quatro Estados - Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Paraíba.
— É só uma questão de disponibilidade financeira - avalia Pedro Brito, chefe-de-gabinete do ministro Ciro Gomes e coordenador-geral do projeto. No cronograma oficial, a obra começa em novembro, depois da concessão de licença ambiental pelo Ibama.
Ciro Gomes avalia que os prazos ainda não estão prejudicados pela reabertura do debate sobre a transposição provocada pela greve do bispo. O ministro reconhece que o projeto é polêmico, mas afirma que a obra não pode esperar por unanimidade.
Licitação gigante
A fatia mais cara do negócio ainda é objeto de disputa. A primeira etapa da transposição das águas do rio foi dividida em 14 lotes de obras civis, com valores que variam de R$ 173 milhões a R$ 294 milhões cada um. Por essa etapa, cuja conclusão é prevista para o fim de 2007, as empreiteiras receberão R$ 3,3 bilhões, de acordo com preços estimados no edital lançado pelo governo.
O retrato obtido no Siafi (sistema de acompanhamento de gastos da União) mostra que o governo mantém planos de inaugurar metade da primeira etapa da transposição das águas do rio até dezembro de 2006, quando termina o mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Mais de 120 exemplares do documento haviam sido vendidos pela Integração Nacional -ministério que é responsável pelo projeto- até quinta-feira.
A apresentação das propostas está marcada para 7 de novembro, e cada empreiteira poderá disputar mais de um lote da obra. Ganha quem oferecer melhor preço e mostrar condições de tocar o empreendimento.
O capital social mínimo exigido para o trecho mais barato é de R$ 16,9 milhões. Trata-se do maior negócio promovido pelo governo Lula. Desde os governos militares, não há notícia de uma obra nessas dimensões.
Pelos valores, a licitação para as obras da transposição das águas do rio São Francisco só pode ser comparada atualmente no setor público à construção de plataformas de petróleo.
Além da parcela que cabe aos empreiteiros, há outros milhões envolvidos no negócio: R$ 92 milhões é o custo estimado da participação do Exército na obra; R$ 145 milhões, o custo dos nove conjuntos de bombas que ajudarão a elevar as águas do rio a uma altura de até 300 metros no trecho mais acidentado da transposição.
Pecado
Ao destacar os esforços do governo na revitalização do rio São Francisco, um dia pós o fim da greve de fome do bispo de Barra, o ministro Ciro Gomes levou em conta os compromissos de gastos, os chamados empenhos no jargão orçamentário. Os programas de revitalização da bacia e de infra-estrutura no rio São Francisco, tocados pelos ministérios da Integração Nacional e do Meio Ambiente, tinham reservados para gastos até a última quinta-feira R$ 45,4 milhões.
A diferença entre despesas empenhadas e pagas é que os empenhos podem ser cancelados. A Folha considerou despesas já pagas as com a recuperação do rio, assim como aquelas pagas com a transposição das águas. O gabinete do deputado distrital Augusto Carvalho detectou pagamentos até no dia da negociação entre o governo e o bispo.
— O Siafi mostra que há alguém pecando - deduziu o deputado.
Sergipe e Bahia criticam transposição por causa de custos e destinação da água
— No fundo, o projeto já conseguiu dividir o Nordeste. Uma coisa que nós sempre preservamos -a unidade regional - o projeto dividiu.
A análise do senador baiano César Borges (PFL) é precisa. O governador do seu Estado, Paulo Souto, e o de Sergipe, João Alves, ambos do PFL, são críticos ferrenhos do projeto de transposição do rio São Francisco.
Na semana passada, tiveram a adesão do alagoano Ronaldo Lessa (PDT) no bloco dos governadores nordestinos que se opõem à obra. Em comum, os três têm o fato de governarem Estados chamados doadores, por onde o São Francisco corre naturalmente.
Do outro lado da trincheira estão os Estados receptores, que, em tese, se beneficiarão da obra. Não à toa, os governadores de Ceará (Lúcio Alcântara), Rio Grande do Norte (Wilma de Faria) e Paraíba (Cássio Cunha Lima) são fervorosos defensores do projeto. A eles se alia Jarbas Vasconcelos, de Pernambuco, único Estado que é tanto doador como receptor.
Antes de referendar seu apoio às obras, Jarbas cobrou garantias do governo Lula. Em agosto foi assinado um termo de compromisso que pode resultar em custos adicionais de R$ 1 bilhão à obra, ao incluir no projeto a construção do Ramal do Agreste -canal que levará água do eixo leste para a região do agreste pernambucano- e a execução do projeto do Canal do Sertão Pernambucano. O Ministério da Integração Nacional afirma que o projeto ainda não é definitivo, mas está em fase de estudos. O governo pernambucano, no entanto, dá a obra como certa.
Motivo semelhante levou o alagoano Ronaldo Lessa, antes favorável à transposição, a mudar de posição na quarta-feira passada. Lessa agora condiciona o seu apoio à construção do Canal do Sertão Alagoano, que implica retirar água de um braço do São Francisco para abastecer projetos de irrigação e consumo humano.
— Todos os governadores eram contra [a transposição], menos eu. Cansei - resumiu.
Críticas
As maiores críticas ao projeto vêm dos pefelistas João Alves e Paulo Souto.
— O governo Lula está vendendo uma farsa à população. Antes diziam que iam resolver a questão da seca, agora mentem dizendo que vão usar a água para consumo humano e animal. Primeiro, não é este o motivo da transposição. Segundo, estão gastando de forma irresponsável - diz Alves (SE), que afirma ser com muita honra um dos maiores opositores do projeto.
Souto (BA) também reclama dos gastos.
— Essa água que vai ser utilizada vai custar cinco ou seis vezes mais do que a água que hoje é usada para a irrigação - diz ele, que também critica a oneração dos Estados:
— Esses R$ 4,5 bilhões [gasto previsto para a primeira fase das obras] são só para a infra-estrutura principal. Daí em diante, todos os investimentos deverão ser de responsabilidade dos governos estaduais. A pergunta é se os Estados terão condições efetivas de arcar com isso.
Souto e Alves buscam barrar o projeto por vias legais. O governador do Sergipe diz ter sido procurado por um grupo de defensores do rio, que pediram seu apoio para uma série de ações. A primeira delas resultou, na última quinta, em liminar suspendendo o processo de licença ambiental. Outra ação, já em andamento, questiona a competência da ANA (Agência Nacional de Águas) para decidir sobre o uso dos recursos do rio. O grupo também pediu ao TCU (Tribunal de Contas da União) auditoria dos gastos.
— O governo está agredindo as leis do Brasil. A Lei de Recursos Hídricos estabelece o seguinte: quem tem o direito legal de estabelecer as prioridades dos usos do rio é o Comitê da Bacia [Hidrográfica do Rio São Francisco]. E o comitê foi contrário à transposição - acusa Alves.
Ele diz não ser contra socorrer nossos irmãos do Rio Grande do Norte, do Ceará e da Paraíba. Tanto que apóia uma versão reduzida do projeto: uma adutora que levasse água para Campina Grande (PB), como previsto no eixo leste da transposição.
— O eixo norte [que atenderia CE e RN] é indubitavelmente destinado à irrigação - diz ele, baseado em um diagnóstico da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
Sede
O argumento de socorrer os irmãos também é usado por Jarbas Vasconcelos (PMDB).
— Pernambuco nunca iria adotar uma posição egoísta, de negar água para os vizinhos de Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. No entanto, nossa posição é em defesa dos interesses do Estado - diz ele, justificando as exigências feitas a Lula para apoiar o projeto. Jarbas é citado como possível candidato a vice na chapa de Lula à reeleição. Apesar de seu partido fazer parte da oposição, os tucanos Lúcio Alcântara (CE) e Cássio Cunha Lima (PB) são amplamente favoráveis ao projeto. Alcântara chegou a mandar uma carta tentando demover o bispo Luiz Cappio de continuar com sua greve de fome.
— Peço que leve em consideração fatos incontestes, como o que aponta a oferta hídrica na maioria dos Estados do Nordeste, por habitante, em apenas metade do que a Organização Mundial de Saúde admite para uma vida de qualidade. Ou como o fato de que o volume das águas necessário para a interligação representa somente 1% a 2% do volume total do São Francisco, sendo esta água, inevitavelmente, fadada a correr para o mar - diz Alcântara na carta.
Já Cunha Lima declarou em julho seu apoio incondicional à transposição, para matar a sede de milhões de pernambucanos, paraibanos, norteriograndenses e cearenses. Na quinta-feira, o governador da Paraíba disse acreditar que Lula manterá a obra, apesar da oposição do bispo Cappio.
— A dimensão positiva da obra para a vida de 12 milhões de nordestinos está sendo encarada como uma missão para o presidente.
Wilma de Faria (RN), do PSB, que integra a base aliada do governo Lula, vê com bons olhos a obra por pelo menos um motivo: a água vai passar a atingir regiões onde não chega atualmente.
— Moro num Estado em que mais de 80% do território está no polígono das secas. Com o projeto do São Francisco, a água vai chegar em regiões como Seridó, uma área de desertificação. O Estado vai ter água em lugares que antes não tinha - diz Wilma. Segundo ela, até um milhão e meio de pessoas serão beneficiadas com o projeto no Estado.
— O que esses Estados [favoráveis] estão acreditando é que o governo vai realizar uma série de intervenções após a transposição, mas isso é um sonho. Claro que a transposição pode iniciar e parar. Os governos já estão caindo pelas tabelas...quem vai manter isso? - questiona o senador César Borges, que reclama da falta de discussão do tema no Congresso. A continuidade do projeto depende da aprovação do Congresso, por meio da votação do Orçamento.
Minas e Maranhão
O Estado onde o rio nasce, Minas Gerais, não faz parte do Nordeste. Como os demais governadores dos Estados doadores, porém, Aécio Neves (PSDB) adota uma postura crítica em relação à transposição.
— Não pode acontecer se não houver revitalização. Temo que a pressa em fazer esta obra possa acabar inviabilizando a própria revitalização - opina o pré-candidato à Presidência.
Sobram críticas também do Estado com o pior Índice de Desenvolvimento Humano no Brasil: o Maranhão, um dos dois Estados nordestinos, junto com o Piauí, que não serão incluídos no projeto.
— [A transposição] não vai resolver o problema social e tampouco o problema da escassez de água. Acredito ser um investimento muito elevado para um retorno social muito pequeno - critica o secretário de Meio Ambiente do Estado, Othelino Neto.
Sucesso depende de saneamento básico
O projeto de transposição do rio São Francisco só poderá ser bem sucedido se ao mesmo tempo for feito um abrangente programa de saneamento básico. Mais até do que outros possíveis impactos ambientais, a qualidade da água é fundamental para que o projeto funcione de acordo com as intenções do governo -em vez de só espalhar água suja mais longe.
Essa é a conclusão de técnicos que estudaram o projeto, como José Galizia Tundisi, do Instituto Internacional de Ecologia, de São Carlos (SP), que fez um detalhado estudo sobre a qualidade da água na região para o Ibama.
Tundisi e colegas estudaram amostras, fizeram modelagem matemática e juntaram com dados ecológicos para entender o impacto da transposição na qualidade da água. A equipe de 15 pessoas estudou 48 reservatórios.
— Fizemos projeções até 2025 dos possíveis problemas de qualidade da água - diz Tundisi.
— O projeto só vai ser sucedido se um houver um grande programa de saneamento básico - diz. Para ele, quantidade não é problema; apenas algo entre 3% e 4% da água do rio seria desviada. Tundisi defende o projeto.
— Pode haver também problemas de salinização, mas isso pode ser resolvido.
Resolver o problema da água no semi-árido, para alguns críticos do projeto, significa dar mais importância à revitalização do rio, que tem vários trechos poluídos por esgotos e sofre com erosão, desmatamento das matas ciliares e é foco de transmissão de esquistossomose em certos locais.
Para outro pesquisador de recursos hídricos, Vicente de Paulo Pereira Barbosa Vieira, da UFCE (Universidade Federal do Ceará), o Nordeste tem água suficiente para os próximos 20 a 30 anos, mas ela é mal distribuída na região semi-árida. Ele defende que em caso de transposição seja feita uma revitalização simultânea. A revitalização, coordenada pelo Ministério do Meio Ambiente, começou há dois anos e só deve acabar daqui duas décadas.
A dimensão dos desafios foi mostrada em um parecer do Ibama analisando o Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório de Impacto Ambiental do projeto.
Segundo o parecer, os principais fatores que afetam a qualidade da água, na bacia do São Francisco e nas que receberão sua água, são os esgotos sem tratamento e o escoamento de substâncias utilizadas na agricultura.
Alterações em um ponto do sistema afetam outros que precisam ser previstos e gerenciados. Por exemplo, o maior consumo de água também causará maior produção de esgoto. Sem ampliação do saneamento pode crescer casos de doenças de transmissão pela água, como diarréias e hepatite.
Os quatro Estados beneficiados vão ratear conta de R$ 127 milhões por ano
Depois que a União desembolsar R$ 4,5 bilhões, o valor estimado para concluir a construção dos canais de concreto, estações de bombeamento e reservatórios da transposição do São Francisco, será a vez de os Estados beneficiados ratearem os custos de operação do projeto.
Por ano, a conta para o conjunto dos quatro Estados -Ceará, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte- deve chegar a R$ 127 milhões, de acordo com cenário traçado para 2025. Em alguns trechos da obra, bombas movidas a energia elétrica terão de elevar as águas do São Francisco a uma altura de até 300 metros. O preço da energia é parte do custo de operação do projeto. Há nove estações de bombeamento ao longo dos mais de 700 quilômetros dos canais; seis delas serão instaladas no eixo Leste, o que tornará a água transportada para o Ceará e Pernambuco mais cara do que aquela que chegará em cidades da Paraíba e do Rio Grande do Norte.
O rateio
Nota técnica da ANA (Agência Nacional de Águas) que acompanha o certificado de sustentabilidade da obra de transposição tornou pública a conta que caberá a cada Estado. Em conjunto, Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte vão ter de ratear custos crescentes, mostra o documento com base em informações prestadas pelo Ministério da Integração Nacional.
O Estado de Pernambuco pagará mais do triplo da conta que caberá ao Rio Grande do Norte em 2025 (R$ 42,8 milhões e R$ 11,4 milhões, respectivamente).
No cenário traçado para 2010, os dois Estados pagariam ao longo de um ano R$ 26,8 milhões e R$ 6,7 milhões. O Ceará terá custo próximo ao de Pernambuco e mais elevado do que o Estado da Paraíba.
Embora o ministro Ciro Gomes afirme que a água da transposição sairá de graça para as pessoas pobres, a nota técnica da ANA informa que os Estados já se comprometeram com a cobrança de tarifa pelo uso da água.
— Os Estados signatários [do Termo de Compromisso] comprometeram-se com a implantação da cobrança de tarifas dos serviços de operação e manutenção e a com a implantação da cobrança pelo uso da água nos seus respectivos territórios - informa a ANA, que condicionou a concessão de certificado de sustentabilidade de transposição do rio São Francisco à apresentação de garantias de gerenciamento futuro da obra.
Custo
O certificado da ANA foi concedido em 19 de setembro, depois de quatro meses de discussão do modelo de gestão com os Estados, e os documentos estão disponíveis no endereço eletrônico da agência (www.ana.gov.br).
Assim que a obra for concluída, seu gerenciamento será entregue a uma subsidiária a ser criada na Chesf (Companhia Hidroelétrica do São Francisco), empresa responsável pela geração de energia ao longo do rio.
O custo da água sem tratamento a ser oferecida pela transposição é considerado médio pelo Ministério da Integração Nacional em comparação a projetos similares em outros países, e baixo, se comparado com o custo do metro cúbico da água tratada oferecida nas grandes cidades. (Folha de S.Paulo, 09/10)