Bispo em jejum contra transposição responsabiliza Lula
2005-10-05
O bispo de Barra (BA), dom Luiz Flávio Cappio, 59, em greve de fome há nove dias, responsabilizou ontem o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo que acontecer com a sua saúde.
— Eu peço ao divino Espírito Santo que o ilumine para que ele [Lula] não carregue pelo resto da vida, na consciência, esse peso. Eu não quero morrer, mas entrego a minha vida, se for preciso – disse.
A secretaria de imprensa da Presidência informou ontem que, nos últimos dias, o governo federal tomou iniciativas para manter um diálogo com o bispo de Barra (BA), frei Luiz Flávio Cappio.
— Desde que teve conhecimento da greve de fome, na segunda-feira [da semana passada], a Presidência tomou iniciativas para estabelecer um diálogo com o bispo Luiz Flávio Cappio - informou em nota.
Na quarta-feira, o ministro Luiz Dulci (Secretaria Geral) e o chefe-de-gabinete da Presidência, Gilberto Carvalho, estiveram na CNBB para conversar sobre o assunto por determinação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Em seguida, o presidente enviou um emissário pessoal a Cabrobó (PE) para entregar, no sábado, uma carta ao bispo em que este aceite reabrir o debate sobre a interligação das bacias.
— A Presidência continua aberta a dialogar sobre esse tema e, para isso, espera o apoio da Igreja Católica.
Cappio não se alimenta desde o dia 26 de setembro, em protesto contra o projeto de transposição das águas do rio São Francisco. Desde então, ele só ingere água retirada do próprio rio.
O bispo, que está em uma capela na zona rural de Cabrobó (PE), onde será captada a água do projeto de transposição, registrou em cartório sua intenção de morrer pela vida do rio. Ele diz que só encerrará o jejum se Lula revogar o projeto. Cappio defende que o governo priorize a revitalização do rio e invista em projetos de cisternas, açudes e aproveitamento da água da chuva e do subsolo.
Um emissário do governo entregou no sábado uma carta de Lula ao religioso, na qual o presidente afirma estar aberto ao diálogo, mas não fala em revogar o projeto.
— A carta é muito amiga, solidária, mas não muda nada - respondeu Cappio.
Cappio classifica a obra de insana e mentirosa e diz que o governo passou um rolo compressor sobre pessoas e instituições de gabarito que poderiam opinar sobre o projeto. Ex-militante de campanhas do PT, o bispo afirma que não participará mais de eventos políticos-eleitorais, mas diz que ainda acredita na pessoa de Lula.
A capela onde bispo cumpre sua promessa transformou-se em ponto de romaria. Cappio aparenta boa saúde, apesar de os amigos afirmarem que ele emagreceu muito. Ele foi submetido a um exame clínico, no domingo, que não constatou problemas. Hoje, data de seu aniversário (e, coincidentemente, dia de São Francisco e do rio São Francisco), estão sendo esperadas cerca de 2.500 pessoas de Sergipe e da Bahia. O bispo vai rezar uma missa no local.
Religioso poderá suportar mais três semanas sem comer
Caso o bispo de Barra (BA), frei Luiz Flávio Cappio, siga a promessa de continuar com a greve de fome, não deverá suportar mais três semanas sem se alimentar. Depois desse período, deve perder os sentidos e ser levado a um hospital. Essa é a avaliação do médico Antonio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica. Segundo ele, o período é variável, pois depende da reserva calórica. Mas como o religioso tem se hidratado com água, 30 dias é tido como um limite -Cappio já está há oito em jejum.
Segundo Lopes, apesar de o bispo ter registrado em cartório a disposição de manter a greve de fome até a morte, seu desejo não será atendido se ele for hospitalizado.
— Ele não tem o direito de acabar com sua vida: está no Código Civil. Chegando [ao atendimento médico], ele pode ser submetido a uma nutrição por sonda ou pela veia - disse. Por cautela, ele aconselha o médico a requisitar ao juiz da comarca responsável a autorização para o procedimento. Para o médico, as complicações de uma greve de fome para o organismo são as mesmas da de um diabético.
— Primeiro, ele começa a perder as reservas de glicose. Como fonte energética, usa o glicogênio hepático [do fígado] e o muscular.
Depois, afirmou, utiliza o tecido muscular, o que pode comprometer a respiração. O corpo passa a consumir a musculatura do coração, prejudicando o funcionamento do órgão. O cérebro também já não atua da mesma forma e o nível de consciência fica baixo.
Por último, há a necessidade de recorrer ao tecido adiposo. O resultado é uma forte náusea, seguida de vômitos. Para a nutricionista Daniela Silveira, da Unifesp, 50% do peso que ele está perdendo é de líquido e isso pode causar sérios problemas de hipotensão.
— No caso dele, o estoque de vitaminas que acabará utilizando deixará o organismo bem deficiente. Assim, fica suscetível a pegar mais infecções e doenças.
Greve ameaça encontro entre Lula e Bento 16
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva enfrenta dificuldade para marcar audiência com o papa Bento 16 na sua viagem a Roma entre os dias 15 e 17 deste mês. Há dois obstáculos, segundo disse à Folha um membro da cúpula do governo: a agenda do papa está complicada para o dia 17 (segunda-feira) e a greve de fome do bispo de Barra (BA), Luiz Flávio Cappio, já provoca reações negativas no Vaticano.
A greve de Cappio é vista com preocupação na cúpula da Igreja Católica. E o governo brasileiro teme o desgaste internacional do protesto do bispo contra a obra de transposição de parte das águas do rio São Francisco. Cappio, que completou oito dias de greve de fome, recusou no sábado convite de Lula para ir a Brasília para uma audiência. Isso levou o governo a avaliar que será difícil convencê-lo a encerrar a greve.
Ainda não foi divulgada a agenda oficial da viagem do presidente à Itália. Informalmente, sabe-se que ele terá encontro com o primeiro-ministro, Silvio Berlusconi, e participará de um evento da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), sediada em Roma.
O governo tentou marcar uma audiência com o papa para o dia 16, domingo. No entanto, o papa não costuma conceder audiências aos domingos, quando dá a tradicional bênção aos fiéis na praça de São Pedro. O mais provável é que, se for concedida, a audiência aconteça na segunda, 17.
O governo brasileiro trabalha para que a greve de fome do bispo Cappio venha a ser interrompida antes da viagem de Lula à Itália. Isso ajudaria o Itamaraty a marcar a audiência com Bento 16. A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) tomou partido de Cappio e pediu ao presidente que reconsidere a decisão de levar a cabo o projeto.
Há desconforto do Vaticano em receber um presidente de um país onde um bispo faz greve de fome, segundo relato de negociadores do Ministério das Relações Exteriores. Inevitavelmente, seria o tema da audiência e no noticiário italiano sobre a visita, o que poderia, na visão do governo, tornar desgastante a ida de Lula a Roma. (Folha de S.Paulo, 04/10)