Congresso de Biossegurança: Pensamento único
2005-10-04
Porto Alegre acolheu, ouviu, paparicou e despachou em paz na semana passada a nata
dos defensores de transgênicos no Brasil - com destaque para um simpático suíço
barbudo, um inglês sisudo e uma prosadora argentina. Tudo aconteceu no quarto IV
Congresso Brasileiro de Biossegurança, onde os estrangeiros foram apresentados como
sumidades teóricas no assunto.
A argentina Miriam Gallardo arrasou apresentando uma pesquisa científica completinha
contando a história de uma vaca portenha criada apenas comendo organismos
geneticamente modificados – ela seria a prova viva de que eles não fazem mal à saúde.
A vaca não veio ao vivo.
Na prática, os estrangeiros agiram como caixeiros-viajantes das multinacionais de
transgênicos, defendendo seu uso na agricultura brasileira. De quebra, deixaram um
rastro de ironias e até ofensas aos ambientalistas críticos da transgenia.
O primeiro a falar, na segunda-feira, 26 de setembro, foi o sisudo mister Graham
Brookes, economista autor do inédito Lavouras Geneticamente Modificadas - Impactos
Econômicos Globais e Ambientais: os primeiros nove anos, de 1996 a 2004 (a obra
só estará disponível no dia 11, no site da PG Economics).
Brookes antecipou que seus estudos comprovaram, de uma vez por todas, o sucesso
econômico dos transgênicos e sua segurança para os consumidores. O trabalho
definitivo foi realizado pela consultoria PG Economics, do próprio Brookes.
Ele admitiu que recebeu financiamento da multinacional Monsanto, mas não gostou de
ter sua credibilidade posta sob suspeita apenas por receber dinheiro de uma das
partes interessadas na polêmica pró e contra, uma das principais pendengas
ambientais da década.
A Monsanto é a mãe de todos os transgênicos. Foi ela que, em 1911, lançou o açúcar
frio com cara de verdadeiro, a sacarina. Em 1982, seus pesquisadores conseguiram
fazer a primeira alteração genética numa semente - hoje, em conseqüência, o
conglomerado americano é o líder mundial do setor.
O papo de Brookes, resumido em slides projetados num telão, no que interessa aos
brasileiros: aqui estão 6% das lavouras transgênicas do mundo, 5 milhões de hectares
plantados em 2004. Desde 1997, nossos agricultores teriam obtido um lucro extra de
829 milhões de dólares com as safras geneticamente modificadas - além do lucro extra
da redução do custo por menos uso de herbicidas, uma das vantagens propaladas dos
organismos geneticamente modificados, os OGMs.
Na terça-feira (27/09), apareceu o suíço Klaus Amman, diretor do Jardim Botânico de
Berna. De cara, parecia um ongueiro do bem. Gordo, descabelado, roupas informais,
jeito bonachão, chegou se espalhando todo. Apresentou-se como criador da ONG européia
Genepeace - nome que pronunciado em inglês soou quase como
Greenpeace, confundindo a platéia de jornalistas.
A Genepeace faz propaganda dos organismos modificados. O Greenpeace ataca tudo que
for geneticamente alterado - em sua página atual na internet pega pesado com a
Monsanto. Diz que a empresa está tentando patentear até a produção de porcos, por
uma alteração causada na reprodução deles (a Monsanto ganha um percentual de quem
use seus produtos patenteados).
Continuando com o suíço: o homem botou no telão seus slides em alemão e saiu falando
em inglês, com tradutor, para convencer a gente de que os tais gráficos eram um
mantra sagrado: Em quase 20 anos de pesquisas nunca vi nenhum incidente em que
organismos geneticamente modificados tenham causado algum mal, sacramentou.
Entremeava sua fala com piadas simpáticas. Foi fundo: – Experiências mostram que
lavouras OGM aumentam a biodiversidade-, afirmação na contramão de várias pesquisas
independentes.
No fim, apresentou um slide ironizando o Greenpeace. Disse que seus dirigentes são
corruptos, ganham muito dinheiro propagando mentiras - ele criticava um texto da ONG
no qual ela pede a suspensão da introdução na natureza dos OGMs. Aí foi a vez do
bonachão pegar pesado: – Faço ciência. Provei que eles não fazem mal, mas o
Greenpeace precisa disseminar a mentira dos riscos e mantê-la viva para arrecadar
dinheiro-.
Para comprovar seus estudos independentes da segurança ambiental, pediu então o apoio
do mesmo inglês sisudo que falara na véspera. A cena aconteceu durante um café da
manhã reforçado. Brookes estava engolindo brioches quando foi citado - só pôde
balançar a cabeça em sinal de yes.
À platéia apatetada de jornalistas, Klaus deu um testemunho final, apostando nele
minha credibilidade. Balançou um braço no ar, como um político em campanha.
Fechou o papo: – E se alguém aqui tiver alguma dúvida quanto à segurança dos OGMs, é
só me mandar email pra Suíça, responderei com o maior prazer-. Quando terminou de
falar e dar entrevistas, o diretor do jardim botânico suíço atracou-se nas frutas
tropicais, brioches e pãezinhos.
No final do encontro, que reuniu 300 pessoas no Hotel Plaza, a Associação Nacional
de Biossegurança (Anbio) divulgou um manifesto à nação. Exigiu do Congresso Nacional,
embananado com três CPIs, que dedique seus dias a aprovar a regulamentação da Lei de
Biossegurança, assinada por Lula em março - pra isso vai ser preciso modificar os
genes dos deputados, mais preocupados com a crise do que com os projetos parados.
A redação da peça teve uma pequena dose de mistério. Foi atribuída pela assessoria
do evento a um grupo de cientistas eminentes, cujos nomes não foram revelados.
O Manifesto de Porto Alegre pede a criação de condições para a capacitação de
especialistas e maior socialização dos conhecimentos científicos no campo da
biotecnologia. Pede também mais pesquisas - um grande impulso para os transgênicos.
Quem fez a leitura pública do documento foi a presidente da Anbio, professora Leila
Oda. Ela terminou com um forte O Brasil não pode parar, frase mais política
do que científica, incluída de improviso.
Na falta do currículo dos redatores do manifesto, aqui vai o de dona Oda: ela fez
carreira na Fundação Oswaldo Cruz, onde começou em 1984. Há dez anos é também
presidente da Comissão Técnica de Biotecnologia, parte do Ministério de Ciência e
Tecnologia – órgão da cota do nanico PSB, partido da base aliada do governo.
O governo deu uma mão na organização do Congresso. A Polícia Federal e a PM gaúcha
cuidaram da segurança, para evitar manifestações de protesto do Greenpeace, como
ocorridas nos anos anteriores. Leonildo Leal, assessor da ANBio, comemorou: – Não sei
o que aconteceu, mas fiquei satisfeito porque eles não apareceram este ano-. (Renan
Antunes de Oliveira, O Eco, 02/10)