Migrações: a fome move manadas
2005-09-29
Vida de migrante não é fácil. Em busca de pastagens mais verdes muitos se dispõem a
enfrentar dificuldades imensas. A travessia perigosa expõe o retirante a riscos e
muitas vezes termina mal, com cadeia, exploração e até morte. Mesmo para os que
conseguem fincar pé em território estrangeiro, onde as oportunidades são melhores e
a grama mais viçosa, ainda há muitas privações e riscos. Fora de casa, o migrante
normalmente acomoda-se na base da cadeia alimentar, onde é vítima fácil dos
predadores e abutres. O triste caso do brasileiro Jean Charles de Menezes em Londres
é o exemplo extremado de uma realidade que todo migrante enfrenta no seu dia-a-dia:
a lei da selva que, despida de moral e mais antiga que qualquer civilização
estabelecida, sempre vitimiza o mais fraco.
Na África também há muita migração. Todos os anos, na época das chuvas quenianas,
cerca de um milhão de gnus fogem das terras ressequidas do Parque Nacional do
Serengeti, na Tanzânia, cruzando a fronteira em busca do mato suculento da Reserva
Nacional do Masai Mara, no sudoeste do Quênia. Não existe data precisa para o início
da migração, mas deve-se ficar atento aos meses de julho a setembro. Como as chuvas
atrasaram este ano, o início da passagem dos animais também foi brevemente adiado.
Na segunda semana de agosto, começamos a ouvir, na cidade de Nairobi, rumores de que
o show dava sinais de ter começado. Sem pestanejar, organizamos a viagem para o
Masai Mara junto com outros oito membros do Kenya Mountain Club, divididos em três
caminhonetes 4x4. Durante o trajeto, a expectativa só aumentava: a fauna daquela
reserva natural é abundante. Como em nenhum outro parque queniano, o Masai Mara
proporciona fácil visualização de todos os felinos africanos. Em um mesmo dia de
game drive (game é o nome dado aos animais selvagens e drive ao passeio feito de
carro), é comum avistar leões e leoas tomando banho de sol, mesclando-se com a
savana dourada, namorando em dança de acasalamento, amamentando seus filhotes e, só
para mudar de gato, casais de guepardos à espreita de caça. Ainda assim, os felinos
são os animais de mais dificil apreciação pois, estando no topo da cadeia alimentar,
existem em menor número.
Outros animais encontrados no Mara em maior profusão são os elefantes, hipopótamos,
rinocerontes, diversas espécies de antílopes, hienas, avestruzes, zebras, babuínos,
chacais e facocheros (porco selvagem africano que se parece com o nosso queixada).
O percurso de carro de Nairobi ao Mara pode se tornar cansativo. São quase quatro
horas de viagem, sendo que a última é de estrada de terra, ou melhor, como acontece
normalmente durante a migração, de lama. Apesar de haver outros acampamentos dentro
do Masai Mara, além de opções de hotéis cinco estrelas, decidimos acampar em uma
reserva particular limítrofe, às margens do rio Mara. Ela está em local privilegiado.
É no rio que se dá toda aventura da migração. Originalmente, a totalidade do
território do Masai Mara pertencia à tribo Maasai, de tradições pastorais.
Entretanto, com a criação da Reserva, no início da década de 1960, eles foram
deslocados de suas terras para as bordas externas do Mara em prol da sobrevivência
e proteção dos animais selvagens. A emenda talvez não tenha melhorado o soneto, mas
pelo menos, através do turismo, a Reserva proporcionou uma grande fonte de renda
para a tribo Maasai. Hoje os nativos prestam serviços de guias, alugam suas terras
para acampamentos, vendem artigos de confecção local e proporcionam visitas às suas
vilas com direito a performance com música e dança.
Além disso, parte substantiva dos ingressos cobrados pelas prefeituras de Trans-Mara
e Narok, que administram e manejam da Reserva, são investidos em obras de
infra-estrutura nas vilas Maasai. Graças à Reserva, todos os anos novos poços
artesianos são furados, escolas são construídas, estradas são melhoradas,
implementos agrícolas são adquiridos.
Mas não é só nisso que os recursos são aplicados. Substancial parte é destinada à
preservação do meio ambiente. Apesar de ser administrado por duas prefeituras, o
Mara tem um plano de manejo que o coloca na mesma categoria de preservação dos
Parques Nacionais. E não se trata de simples figura de retórica. São cerca de 100
guarda-parques recrutados na região do entorno e treinados na academia ambiental
mantida em Manyani pelo Kenya Wildlife Service – KWS (o Ibama do Quênia). Durante
três meses, os novos fiscais recebem adestramento em manejo de flora e fauna,
atendimento aos visitantes e (sobretudo) combate a caçadores.
Como explica Justin Bartenge, vice-reitor da academia, 70% da fauna do Quênia está
fora das unidades de conservação nacionais, manejadas pelo KWS. Por isso, é preciso
treinar os funcionários das reservas provinciais e municipais, além dos técnicos de
reservas particulares. – A fauna pertence a todos os quenianos. É nosso dever,
portanto, desenvolver e repassar as doutrinas de conservação a todos os agentes
envolvidos nessa tarefa-, diz.
Masai Mara está cercada de pequenas reservas particulares pertencentes aos Maasai.
Ali paga-se para acampar e obter guias para caminhadas ecológicas. Os recursos,
embora não sejam grandiosos, são suficientes para que os Maasai preservem a fauna
existente em suas propriedades. Eles entendem que os animais silvestres são o que
atrai a turistada. A escolha dos locais para os acampamentos, a provisão de água, a
construção de latrinas sépticas e o próprio manejo do gado Maasai, de modo a não
interferir com a rotina dos animais silvestres, são feitos com simplicidade e
competência.
Para conseguir oferecer esses serviços básicos sem interferir demasiado no
ecossistema, os Maasai têm recebido valorosa ajuda técnica do governo dos Estados
Unidos. – A manutenção da grande fauna africana é um interesse mundial. Para que
essa fauna sobreviva, contudo, não há soluções mágicas ou de força bruta. É
imperioso que o ecossistema que a suporta mantenha-se saudável e contínuo. Isso só
será possível se a população Maasai for capaz de obter mais emprego e renda, gerados
diretamente pela fauna silvestre, do que com o gado e a agricultura que hoje
disputam espaço de sobrevivência com os animais selvagens africanos-, explica Robert
Buzzard, da agência de cooperação norte-americana USAID.
Tratamos de armar as barracas com rapidez, pois a escuridão já havia descido e
estávamos com fome. O que era para ser uma noite pacata, com direito a céu estrelado
e marulhar das águas do rio, tornou-se bastante conturbada por roncos assustadores.
Ao checarmos a algazarra, descobrimos que o rio que beirávamos era moradia de dúzias
de adiposos hipopótamos; herbívoros sim, mas nem por isso considerados inofensivos.
Não foi uma das melhores noites, pois a cada ronco ouvido, imaginavámos um bichinho
de aproximadamente uma tonelada deitando em cima da barraca. Na noite seguinte seria
a vez das risadas das hienas, mas aí, já tínhamos visto a migração...
Por volta das seis horas da manhã, começamos a nos preparar para um longo dia de
game drive. Foi a primeira vez que fomos ao Mara em um carro particular. A outra
forma possível (e mais provável quando se é turista) é viajar em um furgão de
agências de viagens. O pacote pago à agência geralmente inclui a viagem de ida e
volta à Reserva, dois game drives por dia, de aproximadamente duas horas cada,
motorista e gasolina. A vantagem de ter um motorista está no fato de eles conhecerem
os caminhos e os hábitos dos animais, além de seus esconderijos, que se esmeram em
mostrar aos vistantes para garantir a farta gorjeta após a viagem. Já o carro
particular, além do preço mais módico, tem as vantagens da autonomia de escolher o
caminho e admirar a fauna pelo tempo que se quiser.
O preço que o turista paga para visitar a Reseva Nacional Masai Mara equivale a US$
30 diários, mas cidadãos quenianos e residentes têm um desconto considerável. Pagam
cerca de US$ 8 pelo mesmo período. Há muita gente disposta a desembolsar a
dinheirama. Centenas de carros esquadrinham diariamente os 1.510 km² da Reserva,
cuja amplidão acaba dispersando os veículos.
Durante o período migratório, porém, toda a ação se dá no rio. Gnus e zebras
aglomeram-se às suas margens, em busca de um ponto de fácil travessia. A até 30
quilômetros de distância, é possível ver o rolo de fumaça empoeirada levantado pelo
tropel dos milhões de cascos batendo sobre o solo marrom. A marcha é lenta, um bando
de cada vez. Dez, quinze em cada manada. À medida que o rio vai se aproximando, as
manadas fundem-se e vão ganhando volume. Quando o primeiro gnu chega à beira d’água,
já está à frente de três, às vezes quatro mil animais. Raramente os líderes
atravessam imediatamente. Avaliam a correnteza e a profundidade das águas,
perscrutam a superfície para evitar crocodilagens; analisam a outra margem do rio:
Qual a melhor receita para cruzar a fronteira? Onde está o leão? Qual o melhor
passaporte para o outro lado? Há hienas, chacais, alguém espreita? Enquanto os
líderes conjecturam, a manada vai se achegando. Não pára, não pára, não pára. Os da
frente, qual ônibus na hora do rush, são espremidos pelos de trás, adensando o
ambiente, apertando a moçada. E continuam chegando. – Um passinho à frente por
favor...-. Aos poucos o suor acre, cujo cheiro quem alguma vez já se apavorou sabe
reconhecer de pronto, entorpece o ambiente. A tensão perpassa o ar, que de tão denso
pode ser cortado por uma faca. Nervosos, os gnus parecem prontos para a travessia,
mas o tempo está suspenso. O relógio não bate. O que falta? O que os impede?
Tantos carros estacionados na margem oposta! Que visão aterradora. Esses bichos
enormes de quatro rodas... são predadores? Talvez não, mas assim como os vigilantes
gringos na fronteira do Arizona tão bem mostrados em América, inibem os
caminhos naturais da migração. É triste. Certamente aqui temos um caso clássico em
que a visitação (desenfreada?) impacta o meio ambiente. No futuro, talvez os animais
se acostumem com os automóveis e percebam o quanto estes não são os seus predadores.
Por enquanto, contudo, fica claro que os gnus não estão nem um pouco à vontade com o
tráfego de metrópole, que terão de atravessar.
O debate é acalorado como a África. De um lado, os que defendem a proibição ou a
redução drástica da visitação nos períodos migratórios. Do outro, aqueles que apóiam
a fundamentação realíssima de que é o dinheiro dessa visitação que permite
financiar o aparato fiscalizatório e administrativo, que garantem a sustentabilidade
do Masai Mara. Somente graças aos recursos advindos da atividade turística,
argumentam, foi possível reverter a matança que nas décadas de 70 e 80 dizimou 80%
da fauna do Quênia em geral e do Mara em particular. Sem esse dinheiro, o Mara, como
Reserva, provavelmente não existiria. Por outro lado, sem o Mara, a migração estaria
fadada a proceder tal qual as filas do aeroporto de Miami: todos os indocumentados
acabariam presa fácil das hienas e leões.
Resta-nos torcer para que o processo evolutivo dos gnus os leve a tratar os carros
como se fossem apenas mais um grande mamífero a dividir com eles as planícies do
Serengeti. Afinal, se podem conviver com manadas de elefantes e cruzam rios
coalhados de hipopótamos, por que não se adaptariam à presença dos veículos da
turistada que, afinal, tira fotos mas preserva-lhes a vida?
Enquanto não evoluem nessa direção, os gnus são tomados por uma indecisão nervosa que
retarda sua travessia do rio. Em nossa visita, a relutância em ganhar as águas do
Mara continuou por cerca de duas horas. Até que, sem razão aparente, o líder da
manada se atirou às águas e, meio nadando meio vadeando, pois-se a buscar a margem
queniana da fronteira. Não demorou mais que 30 segundos para atingir o eldorado,
onde pastagens de tenra grama recém-regada por abundantes chuvas o esperavam. Foi o
sinal para um frenesi impressionante. Atrás do pioneiro, centenas de gnus começaram
a se atirar em direção à outra margem. A excitação era tanta que a maioria sequer
escolhia o melhor ponto de travessia. Um grupo grande começou a se lançar em direção
às águas por um barranco de 5 metros de altura. Os de trás empurrando os da frente,
uns querendo ultrapassar os outros. Todos perigosamente embolados.
Ao se atirarem
freneticamente do íngreme precipício, diversos animais se machucaram, alguns
seriamente. Não tardou para que um deles quebrasse a perna. Outro, ao saltar em
direção ao rio, enganchou a pata em uma raiz, que o deixou dependurado agonizando.
Mais abaixo, ainda outro gnu de pata partida, depois de em vão tentar diversas vezes
se levantar, acabou por desistir e deitou-se com meio corpo imerso na água.
Imobilizado pela fratura, só lhe restava esperar a mordida de misericórdia dos
predadores que, mais ou cedo ou tarde, hão de aparecer para transformá-lo em
banquete.
Muitos não precisam esperar tanto. Alguns metros rio abaixo, um jovem leão, de
repente, revela-se ao sair de seu esconderijo por detrás das moitas. Já sai na certa.
À sua frente um punhado de gnus, cuja travessia foi recém-completa, se dispersa.
A maioria sai ilesa, menos o escolhido. A perseguição dura pouco. São umas dezenas
de metros de carreira. Uma patada nas ancas e um bote certeiro sobre a jugular,
seguidos por três ou quatro mordidas, terminam o serviço. Em três tempos, acabou o
sonho de dias melhores para o gnu imigrante.
Nas dezenas de automóveis que coalham ambas as margens do rio Mara, todos assistem
hipnotizados, apreciando essa corrida frenética pela sobrevivência. A sensação é a
de guerreiros galopando para uma batalha. Apesar da beleza dos animais atuando em
conjunto em tão grande número, é inevitável sentir uma mescla de aflição e
impotência. Ao avistá-los em família, uns velhos, outros filhotes, e ficar atento ao
seu martírio, fica a frustração de não poder ajudar. Nesses momentos, lembramos que
a migração é só mais um espetáculo proporcionado pela natureza há anos, cuja balança
entre os bem-sucedidos e aqueles que caem nas garras dos predadores, mantém o
equilíbrio das espécies em seu habitat. Sempre foi assim, e de uma forma ou de
outra, sempre será.
A garantia da perpetuidade do fenômeno está na atitude das autoridades fronteiriças
de Tanzânia e Quênia, que tiveram o bom senso de manejar o Masai Mara e o Serengeti
de forma integrada e coordenada. “A vida desses migrantes já é dura o suficiente
apenas com os entraves que a natureza os impõe. Transpor rios, driblar crocodilos,
enfrentar leões e leopardos, já é por si só um grande desafio. O KWS tem a missão de
não aumentar em nada mais o controle fronteiriço. Pelo menos no que toca à fauna
migratória, queremos um mundo mais globalizado e com menos barreiras”, diz Paul
Gathitu, diretor-assistente do Kenya Wildlife Service. (Ana Leonor e Pedro Cunha e
Menezes, O Eco, 25/09)