O Acre está virando sertão
2005-09-22
O açude que até o ano passado abastecia toda a população do Bujari está seco. É outra vítima da mais longa estiagem já registrada no Estado. Esse açude, que havia sido construído pela prefeitura em 1988, tinha capacidade para armazenar cem mil metros cúbicos de água em sua barragem (um metro cúbico equivale a mil litros).
Onde havia água, agora só há terra rachada, e a bomba que antes abastecia a cidade está assentada sobre o fundo seco a mais de 20 metros de uma poça de lama. A situação é tão crítica que até os trabalhos na horta do pólo hortigranjeiro, onde está localizado o açude, foram suspensas por falta de água para irrigar os canteiros de verdura.
Em Acrelândia a produção de água da fonte que abastecia a cidade caiu de 400 mil litros por dia para apenas 100 mil e como não há rios ou igarapés por perto, a água está sendo recolhida dos açudes dos colonos e levada para a estação da tratamento do Departamento Estadual de Águas e Saneamento (Deas).
— Acrelândia é o município que vive situação mais crítica com relação à falta dágua no Acre. Tanto lá quanto no Bujari nós estamos fazendo uma campanha de esclarecimento para que as pessoas economizem água. Nos dois municípios onde a distribuição de água acontecia dia sim e dia não, agora já está limitada a um dia sim e dois não - explica o diretor-geral do Deas, Tácio Brito, que acompanha pessoalmente a situação em busca de soluções alternativas.
Embora tenha sido construído em 1998, o açude do Bujari só transbordou duas vezes, o que demonstra a diminuição no regime de chuvas do Acre. Diante disso, o Deas planejava a construção de um grande açude, o que veio a ser realizado numa parceria com a Infraero, que precisa de água para abastecer o Aeroporto Internacional Plácido de Castro.
O novo açude tem capacidade para armazenar 210 mil metros cúbicos de água e pode ser ampliado conforme a necessidade. Ele foi concluído em junho passado e mesmo represando o igarapé Redenção que, a exemplo do São Francisco é um dos mais extensos e caudalosos de Rio Branco, só conseguiu encher-se pela metade.
— Da água que represamos ainda resta cerca de 20% e é ela que ainda está abastecendo os moradores do Bujari. Se mantivéssemos nosso ritmo normal de distribuição isso seria suficiente para mais 30 dias e então ele estaria seco. Por isso decidimos abastecer dia sim e dois não, assim ganhamos mais uns 40 dias de água, pois embora estejamos em setembro, ainda não há previsão de chuva - enfatiza Tácio.
O problema de Acrelândia também está sendo resolvido com a construção de um açude com capacidade para armazenar 100 mil metros cúbicos de água.
— A obra está sendo iniciada agora e estará pronta até o fim deste ano, quando vai encher e reservar água para resistir ao próximo verão.
Lá dois carros-pipas estão trabalhando dia e noite transportando água para a estação de tratamento, que em condições normais distribuía um milhão de litros de água por dia à população. Já no Bujari o consumo diário, em tempos normais, é de 600 mil litros. Em ambos os casos isso teve de ser reduzido para evitar que a situação se agrave ainda mais.
Essas mudanças no clima acreano vêm sendo acompanhadas com apreensão pela equipe do Deas. A última chuva significativa no Bujari foi no dia 14 de abril. Nossos verões sempre foram marcados por um período de chuva intensa nos meses de janeiro, fevereiro e março, depois disso iam rareando até chegar agosto, quando ficava mais seco, e já na segunda quinzena de setembro, reiniciava com umas poucas chuvas que iam aumentando até chegar janeiro de novo.
Mas Tácio alerta para o fato de que esse regime vinha se alterando devagar, mas neste ano está mais diferente ainda.
— Nossos verões eram marcados por estiagens de até 90 dias, com chuvas menos intensas, pois sempre chovia um pouco, mas agora estamos com 120 dias sem chuva nenhuma. Isso é uma situação bastante preocupante e que merece receber uma atenção muito especial de nossas autoridades e também por parte da população, que precisa aprender a poupar água.
Mudança no clima é global e terá conseqüências imprevisíveis
Para pesquisadores como Claudemir Mesquita, técnico da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, que há anos vem estudando o clima e o regime de chuvas do Acre, a natureza está em fúria. Esse é o momento de a comunidade e seus governantes avaliarem que não dá mais para continuar mantendo o atual modo de vida predatório e poluidor. A conseqüências serão desastrosas para toda a humanidade.
A queima de milhões de toneladas de petróleo lança na atmosfera, todos os dias, um imenso volume de carbono que a natureza levou milhões de anos para guardar debaixo da terra. Esse carbono aumenta a temperatura em todo o planeta, muda o clima, levando chuvas para onde não chovia e estiagem para onde as chuvas eram constantes. Aumenta a força dos furacões e cria vendavais em outras regiões. É o caos e muitos, principalmente nos países mais pobres não terão como sobreviver a essas mudanças repentinas.
— No caso do Acre nós estamos vivendo uma mudança gradativa do clima, o que pode ser notada ao longo dos últimos dez anos quando fomos deixando de viver num clima tropical, que se caracteriza por chuvas leves e demoradas bem distribuídas ao longo do ano, para termos um clima equatorial, que se caracteriza por chuvas rápidas e bastante pesadas, com o agravante de que aqui o período de estiagem está ficando cada vez maior. A má notícia é a tendência de que permaneça assim e até piore - adverte Claudemir.
Nunca é demais lembrar que as chuvas sempre tiveram seu maior pico entre os meses de janeiro e março, iam escasseando a partir de abril e cessavam na segunda quinzena de junho. Em agosto faziam-se até apostas para adivinhar em que dia choveria, raramente chovia. As chuvas voltavam sem pressa na segunda quinzena de setembro, iam aumentando até dezembro para formar aguaceiros no janeiro seguinte.
— Agora as chuvas estão ainda concentradas naqueles três primeiros meses. O problema está na estiagem, que se torna cada vez maior, e assim temos um verão cada vez mais seco e longo - lamenta.
Nós e os outros
Claudemir faz uma advertência: — A alteração do regime de chuvas não se deve só a mudanças causadas pelo homem no plano local, o que fazemos aqui no Vale do Acre vai atingir os moradores do Juruá, do Amazonas e mais adiante. Hoje entendemos que todos fazemos parte de uma grande máquina onde o que um faz acaba tendo conseqüências sobre a vida dos outros, por isso é necessário agir de maneira consciente.
A contribuição negativa dos acreanos sobre todo esse problema em que se destaca a falta dágua já ameaça a população de Rio Branco e municípios como o Bujari e Acrelândia - este último vivendo a situação mais crítica. Essa falta dágua está sendo agravada pelos desmatamentos sistemáticos das cabeceiras onde nascem os olhos dágua que formam os igarapés, que por sua vez alimentam o rio Acre.
— Temos dois problemas distintos contribuindo para agravar um mesmo problema, que é a falta dágua. O primeiro é a diminuição das chuvas, o segundo é o fato de que nas áreas desmatadas a água escorre rapidamente para os igarapés e dali vai se embora. Quando havia mata, essa água encontrava obstáculos de folhas e galhos e ainda era protegida pela sombra das árvores, assim tinha tempo para se infiltrar no solo e reabastecer nossos reservatórios subterrâneos. Agora ela cai e vai embora sem dar tempo de ser absorvida pela terra, com isso as nascentes ficam cada vez mais fracas.
Estima-se que existam, apenas no Vale do Acre, cerca de quatro mil nascentes que contribuiriam para alimentar o rio Acre. Mas boa parte das que ainda restam está sendo represada em açudes para dar de beber a mais de 1,8 milhão de cabeças de gado que precisam consumir um mínimo de 72 milhões de litros de água por dia para sobreviver.
Estamos secando
Na década de 60, quando começaram a ser elaborados os primeiros projetos para a instalação de projetos agropecuários no Estado, a Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), em parceria com técnicos do Museu Emílio Goeldi e Ministério da Agricultura, realizou um estudo detalhado sobre o quanto de água o solo do Acre tinha capacidade de reter no pique do verão.
Naquela ocasião foi instalada a primeira estação meteorológica do Acre e que ainda hoje existe, junto à antiga Delegacia do Ministério da Agricultura, logo depois da Corrente.
Os pesquisadores analisaram então o solo de um Estado onde havia pouco ou quase nenhum desmatamento porque a atividade principal ainda era extrativista. Eles constataram então que o solo do Acre retinha cem milímetros (igual a dez centímetros) de água.
O mesmo estudo foi sistematicamente refeito em anos posteriores. Assim, no final da década de 90, quando se planejava a instalação dos Projetos de Colonização que trariam levas de migrantes para o Estado, um novo estudo foi realizado e aí já havia apenas 70 milímetros (sete centímetros) de água retida no solo.
Um novo estudo foi realizado no ano 2000 e nessa época o solo acreano estava retendo apenas 40 milímetros, o equivalente a quatro centímetros de água.
— Passados cinco anos da última pesquisa, os desmates continuaram avançando, o clima esquentando e o regime de estiagens se tornando cada vez mais rigoroso. Isso diminuiu violentamente a quantidade de água retida no solo e, embora não tenha nenhum estudo em mãos, estimo que hoje não estamos com mais de 20 milímetros de água retida no solo, o que chega a ser desesperador - adverte o pesquisador.
As friagens alongam a estiagem, que deverá ter fim em outubro ou novembro, no máximo, embora ainda não haja previsão de chuvas.
— Mas, devido a toda essa onda de calor, o ambiente está acumulando grande quantidade de energia, e quando as chuvas chegarem isso vai causar grandes vendavais, talvez os mais fortes já vistos, por isso é bom que as pessoas se preparem amarrando tampas de caixas dágua e preparando os beirais dos telhados.
A floresta e a chuva
Ele lembra que fenômenos como o El Niño, que ainda hoje assombra muitos, sempre existiu, mas suas conseqüências eram sentidas minimamente porque ainda não havia as alterações de temperatura no planeta nem o Brasil estava tão desmatado.
— Antigamente tínhamos florestas do Rio Grande do Sul ao Acre. As friagens que aqui chegavam de lá vinham recolhendo a umidade que era transpirada por aquelas florestas e quando encontrava nosso clima quente ela produzia chuva e fazia baixar a temperatura por vários dias. Depois que foram tirando a floresta, principalmente de Mato Grosso e Rondônia, aquelas frentes frias já não têm de onde recolher umidade, por isso chegam aqui cada vez mais frias e mais secas. Por conta disso, acabam tirando a unidade que ainda temos retida em nosso solo e na floresta, fazendo ressecar ainda mais o ambiente.
Afluentes sofrem
Isso tudo contribui para que chegue cada vez menos água para o rio Acre. Por outro lado, o Riozinho do Rola, que era tido como principal contribuinte da água que vinha para Rio Branco, sofre com o processo de desmatamento e está com seu nível mais baixo, impedindo até o tráfego de embarcações dos ribeirinhos.
— Já o rio Xapuri, que nasce e corre praticamente dentro da Reserva Extrativista Chico Mendes, é o único do Vale do Acre que continua mantendo boa produção de água. Isso prova de maneira prática nossa teoria sobre o quanto as áreas desmatadas vêm causando prejuízos às nascentes. Outro exemplo é que, a partir do rio Purus, seguindo para todo o Vale do Juruá, onde o desmatamento é bem menor que no Vale do Acre, apesar da diminuição das chuvas seus rios mantêm-se com água bastante para atender as necessidades da população. (Página 20 – Acre, 20/09)