Olhar histórico sobre a Baía de Guanabara revela degradação ambiental e mau uso de verbas públicas
2005-09-21
Por Francis França, do Rio de Janeiro
Os alunos do Colégio Pedro II fizeram seu primeiro passeio pela Baía de Guanabara na quinta-feira, dia 15/09, para a tradicional aula de história que é dada todo ano para as 3as séries.
As 60 crianças embarcaram na maior algazarra no Rebocador Laurindo Pitta, construído em 1910, único remanescente da força naval brasileira que participou da Primeira Guerra Mundial. O turismo histórico continua fazendo sucesso, mas a Baía de Guanabara apresentada à turminha não é mais aquela que recebeu seus avós. Antes da saída, o primeiro sintoma: no Submarino Riachuelo, aposentado no cais da Marinha, a marca do limo grosso, a densidade verde da água não deixa ver nem um palmo abaixo da superfície.
Para aproveitar o passeio, é preciso olhar a Baía de Guanabara como quem admira uma pintura impressionista. De perto, o protagonista é o lixo. Plásticos, garrafas, madeiras, listras de espuma espessa cortando o mar até onde a vista alcança. E tudo isso na parte limpinha da baía, onde passa a excursão. Também é preciso não dar importância à água borrifada no rosto pelo balanço do rebocador nas ondas.
O passeio histórico no Laurindo Pitta é novidade até para a professora Yara Barreira de Morais, 61 anos, 43 de magistério. Ela não conhecia o veterano da Primeira Guerra, mas a baía ela conhece desde pequena, quando usava as barcas como meio de transporte para ir a Niterói.
— Era uma beleza, não tinha essa imundície que é hoje – lembra, acrescentando que agora a Baía de Guanabara está melhor, perto do que era há cinco anos.
Mas a baía já não vai bem há muito tempo. De acordo com o geólogo Elmo da Silva Amador, autor do livro Baía de Guanabara e Ecossistemas Periféricos: Homem e Natureza (1997), a capacidade de regeneração natural da baía esgotou quando o Rio de Janeiro atingiu 500 mil habitantes. Antes disso, no século 19, as praias eram recomendadas para banhos terapêuticos, para a cura de enfermidades phyísicas e nervosas, segundo os jornais da época.
Só que a população cresceu. Atualmente, os sete municípios ao redor da baía têm cerca de 10,7 milhões de habitantes, que geram 12 mil toneladas de lixo por dia. A baía recebe, a cada 24 horas, mais de 1,7 milhão de toneladas de esgoto e 1.500 toneladas de lixo.
E a tendência é que a quantidade de lixo cresça permanentemente. De acordo com o Estudo para Controle e Recuperação das Condições Ambientais, realizado pela equipe da Agência Japonesa de Cooperação Internacional entre maio e julho de 2002, o número de habitantes nessas cidades saltará para 12,2 milhões em 2020, data em que o próprio governo do estado admite como possível para que o carioca possa desfrutar das despoluídas praias de Ramos, Icaraí, Ilha do Governador, Paquetá, entre outras.
O lixo e o esgoto colaboram para que 15,7% de toda a água sejam transformados em lama. O valor da área assoreada, segundo Amador, equivale a 50 vezes o Aterro do Flamengo. Já em 1997 o geólogo apontava a perda de um terço da baía nos próximos cem anos.
— A baía perde até cinco centímetros de profundidade por ano em alguns pontos, enquanto o natural seriam 18 centímetros por século.
Guanabara já perdeu muito mais do que profundidade. Comparando com o passado, o ecossistema está irreconhecível. Originalmente, tinha 132 km2 de restingas. Sobraram 28 km2. Era filtrado por 235 km2 de brejos e pântanos. Restaram 75 km2. Abrigava 101 ilhas. Ficaram 65. Aninhava 118 praias. Perdeu 46 para os aterros. Ao todo, ela perdeu 29,1% de sua superfície.
Projeto de despoluição vira piada de mau gosto
Quando passa pela linha vermelha, entre a favela da maré e a baía, Ivone Tolomini fecha as janelas do carro. O cheiro de podre que vem da água é insuportável. Ivone lembra que a sobrinha trabalhava para uma empresa japonesa responsável pela despoluição da Baía de Guanabara. Um dia, eles simplesmente recolheram os equipamentos, os móveis e fecharam as portas.
— Minha sobrinha foi pra rua sem receber um tostão de direitos trabalhistas, nada – conta Ivone.
A sobrinha de Ivone perdeu o emprego em uma das cinco vezes que o Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDGB) foi interrompido desde que começou a ser executado, em 1994. As obras foram suspensas por falta de pagamento. Os japoneses construíram as Estações de Tratamento de Esgoto e queriam a contrapartida do governo, com construção dos troncos coletores de esgoto. Para a despoluição, o Estado entra com 65% do investimento e o banco com os 35% restantes.
No orçamento original de 1994, os recursos disponíveis eram de US$ 793 milhões, dos quais US$ 350 milhões financiados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), US$ 237 milhões pela agência japonesa Japan Bank for International Cooperation (JBIC) e US$ 206 milhões provenientes do governo estadual. O projeto está orçado hoje em US$ 1,04 bilhão (R$ 2,83 bilhões), dinheiro suficiente para construir seis Linhas Amarelas.
Até agora, o programa já tragou cerca de US$ 855 milhões (R$ 2,3 bilhões), mas, dez anos depois de iniciadas as obras, o estado trata apenas 25% de todo o esgoto jogado na baía. Ao longo dos últimos quatro governos, foram construídas ou ampliadas oito estações que, juntas, têm capacidade para tratar 11.869 litros de esgoto/segundo, mas tratam apenas 4.762 litros, o que representa cerca de 25% do total. Ou seja, 75% são lançados in natura.
Fazendo as contas, o estado consumiu 82% dos recursos, levou mais do que o dobro do tempo previsto para a primeira fase e não alcançou sequer a metade da meta. A conclusão da primeira fase do programa está prevista para 25 de dezembro de 2006, às vésperas do aniversário de 12 anos. Por enquanto, a segunda fase ainda é um sonho.
A Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) criou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) em 2003 para investigar denúncias de desvios de recursos nas obras do programa de despoluição e constatou que mais de 70% dos contratos sofreram acréscimos, o que teria causado um prejuízo de quase US$ 300 milhões (cerca de R$ 810 milhões) aos cofres públicos.
A comissão foi apurar porque, em oito anos, 76% dos recursos do Programa de Despoluição da Baía de Guanabara foram gastos sem que quase nada saísse do papel. O deputado Alessandro Calazans, que abriu o inquérito, denuncia que muitas obras do projeto foram integralmente quitadas com as empreiteiras sem terem sido executadas, que quilômetros de tubulações foram postos no mapa, mas não debaixo da terra, e que compras de R$ 98 milhões, para equipar a estação de tratamento da Alegria, na gestão Anthony Garotinho, foram fechadas sem licitação.
A justificativa do PDBG para os atrasos foi o obstáculo estrutural da sociedade, em outras palavras, a favelização. Há cerca de 900 favelas na margem oeste, onde fica o município do Rio de Janeiro e seus subúrbios da Baixada Fluminense. Entretanto, a favelização estava prevista no estudo básico do programa, um calhamaço de 500 folhas em que o governo japonês gastou dois anos e US$ 3 milhões para apadrinhar o projeto. Nele, os técnicos avisavam, em 1994, que a principal causa da poluição da água são as atividades humanas diárias e a produção industrial.
Segundo o relatório da CPI, houve abuso da ordem econômica por parte dos responsáveis pelo PDBG, ao atrasar os serviços. O projeto deveria estar pronto em 1998.
Com tantas expectativas frustradas, o que resta à baía são mesmo o turismo e a História. Os alunos do Colégio Pedro II, que a conheceram a bordo do Rebocador Laurindo Pitta na semana passada, aprenderam que, em tupi, guana significa mar, e bara, seio. Para os índios, a Baía de Guanabara era um seio de mar. Aprenderam sobre a história dos fortes ao redor da baía e sobre o belo castelinho da Ilha Fiscal, conhecida hoje pelo evento que a marcou O Último Baile do Império, realizado alguns dias antes da Proclamação da República. As professoras disseram que, vendo na prática, as crianças aprendem muito mais fácil.
Mas entre as explicações durante a viagem ninguém falou que, em 1502, ao chegar à baía, o navegador Pero Lopez de Souza decretou que toda água encontrada ali era excelente. As professoras preferiram se calar sobre o que não é possível demonstrar na prática.