Cana-de-açúcar: Tecnologia faz bóia-fria trabalhar mais
2005-09-20
Eles têm de se esforçar cada vez mais para manter seus empregos e não ser devorados pela tecnologia. São os bóias-frias da cana-de-açúcar da região de Ribeirão Preto (SP), estimados em 40 mil trabalhadores, que convivem com aumentos anuais de área plantada que beneficiam os produtores e com a mecanização crescente.
Esse esforço extra, no entanto, é alvo de investigação da ONU (Organização das Nações Unidas) e da Pastoral do Migrante de Guariba (SP), ligada à Igreja Católica. As duas organizações investigam se as mortes de nove bóias-frias registradas desde 2004 em canaviais da região foram provocadas pelo excesso de trabalho.
Na década de 90, a região produzia 65 milhões de toneladas de cana. Passou para cerca de 90 milhões na safra passada. No mesmo período, os bóias-frias passaram a cortar, em média, 12 toneladas diárias de cana, contra 8 toneladas colhidas na década de 80.
Um estudo da USP mostra que, para cortar 10 toneladas de cana por dia, um trabalhador precisa desferir 9.700 golpes de podão - instrumento usado no corte.
No próximo mês, uma missão da ONU estará na região para analisar as condições de trabalho dos bóias-frias, as condições sanitárias dos alimentos e a quantidade de comida ingerida e a possível exposição a agrotóxicos.
Segundo Flávio Luiz Schieck Valente, membro do Comitê Permanente de Nutrição da ONU, especialistas e a Pastoral do Migrante de Guariba, o excesso de trabalho pode ter causado a morte dos bóias-frias.
— Vamos conhecer in loco a vida do bóia-fria. A situação vivida por eles está próxima do trabalho escravo - diz Valente, que também é o relator nacional para os Direitos Humanos à Alimentação, Água e Terra Rural da Abrandh (Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos).
— Os bóias-frias se sentem pressionados para trabalhar cada vez mais e vivem em condições de alimentação insuficientes. A raiz do problema é a intensidade da exploração. Eles precisam trabalhar mais e mais para tentar ter renda-, conta a socióloga Maria Aparecida de Moraes Silva, da Unesp (Universidade Estadual Paulista) de Araraquara, autora do livro Errantes do Fim do Século (editora Unesp), que retrata a vida dos bóias-frias.
Cada tonelada de cana-de-açúcar queimada cortada rende em média R$ 2,20 ao bóia-fria. Um cortador eficiente ganha cerca de R$ 600 brutos por mês.
De acordo com Inês Facioli, coordenadora da Pastoral do Migrante de Guariba, os bóias-frias saem muito cansados dos canaviais e têm problemas de saúde por isso.
— Um deles teve cãibra na semana passada no curso de alfabetização e ficou se contorcendo. Cãibras são muito freqüentes.
Trabalhadores ouvidos pela Folha disseram que as dores são comuns no dia-a-dia e que as histórias de mortes no campo são uma rotina.
Por causa das mortes em seqüência, Valente disse que não está descartada a possibilidade de pedir a exumação dos corpos dos trabalhadores rurais.
A medida, segundo Marco Aurélio Guimarães, 35, diretor do Centro de Medicina Legal e docente de bioética da FMRP (Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto), da USP, pode não surtir o efeito desejado, por causa do avançado estado de decomposição dos corpos.
— Como as mortes já ocorreram há algum tempo, a exumação pode não resolver.
A Unica (União da Agroindústria Canavieira) informa, em nota enviada à Folha, que as situações não devem ser generalizadas, alertando para o risco de conclusões precipitadas: antes é preciso estudar em detalhes as circunstâncias e os fatores envolvidos em cada caso.
Não tem jeito, preciso fazer isso - diz lavrador
Ele tem a mesma rotina desde 1982. Acorda às 4h, começa a trabalhar três horas depois, chega em casa às 17h, toma banho, janta e vai dormir.
O bóia-fria Aurindo Manoel dos Santos, que mora em Cruz das Posses, região de Ribeirão Preto, é solteiro, mas não encontra ânimo para ir aos bares da cidade, já que os 45 anos pesam nas costas. Ele conta que, muitas vezes, tem cãibras por causa da rotina diária. Santos, como seus colegas, trabalha cinco dias e folga um.
Natural de Livramento (BA), onde deixou mulher e três filhos adolescentes, o trabalhador rural passa a safra com renda mensal de R$ 250, dinheiro que tem de ser suficiente para o pagamento de aluguel, as contas mensais e a alimentação.
O salário é de R$ 550, mas ele envia R$ 300 para a família na Bahia.
— Não tem jeito, preciso fazer isso. Tenho muita saudade deles. Vivo do que é possível eu ter.
Santos integra um grupo de bóias-frias que foi acompanhado na última quinta-feira pela reportagem da Folha até um canavial de Jardinópolis, cidade vizinha a Ribeirão Preto.
O grupo, de Cruz das Posses, viajou quase uma hora por rodovias vicinais esburacadas e estradas de terra até chegar ao canavial definido para o dia. No meio do trajeto, o ônibus quebrou e os trabalhadores tiveram de aguardar outro veículo, enviado pela usina.
Santos corta cerca de dez toneladas de cana diariamente e se alimenta de arroz, feijão, carne -quando tem- e salada. A bóia, ainda quente, é ingerida pela primeira vez às 7h, antes de o corte da cana começar.
O almoço é às 10h, de forma improvisada, sentado em um cantil no meio do canavial. O prato é o mesmo, literalmente. Três horas depois, Santos come a mesma marmita, na merenda.
— Temos de comer cedinho para agüentar o dia. Mesmo ficando fria depois, tem de ser assim para dar conta.
A situação é a mesma vivida pela bóia-fria Maurise Maria Bispo, 40, natural de Recife (PE), mas que há 20 anos está em Cruz das Posses trabalhando no corte de cana. Como outras mulheres, acumula as funções da lavoura com as tarefas domésticas.
— É um trabalho cansativo demais. Já soube da história de um cortador que morreu no campo, abraçado à cana. É triste demais - diz ela, que tem renda mensal inferior a R$ 400 e é vaidosa - vai à lavoura com esmalte nas unhas e dois brincos.
Outro lado
A Unica, entidade que representa o setor empresarial produtor de cana, açúcar e álcool no Estado de São Paulo, informou, por meio de nota enviada à Folha, que defende e orienta todos os associados para que cumpram rigorosamente a legislação em vigor.
— A entidade entende, ainda, que o corte manual de cana-de-açúcar cria alternativas concretas de renda para agricultores e milhares de trabalhadores, que encontram na atividade um meio digno de conseguir o seu sustento - afirma a nota.
O Estado de São Paulo, segundo a Unica, tem cerca de 11 mil donos de pequenas e médias propriedades que também empregam trabalhadores e fornecem matéria-prima para as usinas, e aproximadamente 250 mil trabalhadores.
No entendimento da Unica, eventuais abusos ocorridos devem ser apurados. A entidade informou ainda que as situações não devem ser generalizadas, alertando para o risco de conclusões precipitadas: antes é preciso estudar em detalhes as circunstâncias e os fatores envolvidos em cada caso.
De acordo com a assessoria de comunicação da entidade, a Unica sustenta que a atividade no Estado de São Paulo apresenta um nível de formalidade e remuneração que supera quaisquer outras do meio rural e que o corte manual da cana-de-açúcar -ou seja, aquele feito pelos bóias-frias- cria alternativas concretas de renda para os agricultores.
Quanto à terceirização dos trabalhadores rurais nas lavouras de cana-de-açúcar, a Unica informou que sua adoção ou não depende de cada usina e que a entidade orienta para que seja obedecida a legislação vigente sobre o assunto. (Folha de S.Paulo, 19/09)