Entrevista: A senhora da reciclagem
2005-09-20
Mesmo em meio à exótica fauna humana da feira de artesanato realizada no
Largo da Ordem, Centro de Curitiba, não passa despercebida a figura de
Efigênia Ramos Rolim. Aos 75 anos, um metro e meio de altura, cabelos longos
e totalmente brancos, ela é uma celebridade naquele aglomerado com
aproximadamente mil barracas, entre as quais passeiam milhares de pessoas
todos os domingos. Turistas não perdem a oportunidade de fotografá-la. É
comum ver duas ou três máquinas em ação ao mesmo tempo, interrompendo a
passagem caótica dos visitantes para imortalizar performances que incluem
jogar-se no chão, pernas para cima.
Franzina e folclórica, Efigênia acumula méritos que transcendem a capacidade
em sobressair lançando mão de um vestuário extravagante, sempre ornado por
papéis de bala e embalagens plásticas. Como um clown a serviço do meio
ambiente, ela tornou-se um símbolo não só do exercício criativo em materiais
recicláveis, mas, sobretudo, da mobilidade social que se pode amealhar
quando unem-se firmes convicções a boas doses de coragem. — Estou salvando a
Terra-, diz, nas conversas com os muitos freqüentadores de sua barraca na
feira.
Lá, ela vende bonecos, chapéus e vários estranhos instrumentos, tudo
confeccionado em plásticos, borrachas, papéis, restos de couro – enfim,
coisas que, para a maioria, seriam classificadas de imediato como lixo. À
primeira vista, é difícil apontar qual a utilidade de algumas das peças, mas
aí surge outro dos talentos de Efigênia: o de contadora de histórias. É
assim que um tubo recoberto de couros, panos e tampas de garrafas Pet
transforma-se no Dr. Penenem. No contexto de uma narração em que
traficantes de animais lutam com a fiscalização do Ibama, esse personagem é
o médico e guardião da floresta. Efigênia sopra o tubo e, desta forma,
aciona o alarme do Dr. Penenem. O objeto esdrúxulo ganha alma e serventia.
Com os bonecos é a mesma coisa. Atores de um teatro cujo cenário é a
educação ambiental, eles ensinam que o mosquito da dengue não deve ser
combatido com venenos – o que mataria também insetos inocentes. Nessa
parábola, um dos personagens, após aprender que o perigo mora sobretudo em
pneus abandonados a céu aberto, carrega nas tintas. Exagera e põe-se a
retirar até aqueles pneus com que borracharias identificam ao público seu
ramo de serviço. Efigênia dá risadas enquanto narra tamanha atrapalhação.
Criatividade nas peças que sustentam seu jogo cênico levaram-na a locais
como o Senado, no decorrer das comemorações pelos 500 anos do Brasil, e ao
Encontro Nacional dos Contadores de Histórias, na terceira edição do Fórum
Social Mundial, em Porto Alegre (2003). No mesmo ano, em setembro, foi
apresentada como um dos destaques do Simpósio Internacional de Contadores de
Histórias, promovido pelo SESC no Rio de Janeiro.
Natural de Abre Campo, em Minas Gerais, Efigênia mudou-se em 1964 para
Londrina, no Paraná, com o objetivo de tocar lavoura. Poucos anos depois,
uma geada braba matou a produção e o sonho. Restou-lhe um marido doente.
Em 1971, busca novo endereço, Curitiba, onde o companheiro poderia receber
melhor assistência médica. Depois da caminhada como lavadeira e bóia-fria,
sucessivos percalços e decepções, perde-o em 1988.
Em 1990, já descobrira em si pendor para as rimas. Expunha seus livretos na
Feira do Poeta, no centro de Curitiba, e, numa dessas idas e vindas, avistou
algo no chão. — Brilhou nos meus olhos, pensei que fosse uma jóia-, conta.
Nesse momento exato, quando se abaixou e conferiu a realidade, passava o
futuro a limpo. Sua jóia era um papel de bala. — Escutei uma voz no meu
coração: como vou dar vida a esses míseros caídos, que perderam o recheio?”.
A resposta foi sua arte. Tudo tem hora de nascer, acredita a Rainha de
Papel, título do documentário que retrata sua trajetória, produzido em 98,
com direção de Estevan A. Silveira.
Há quem veja estilos semelhantes entre as peças de Efigênia e as do
sergipano Arthur Bispo do Rosário, estas produzidas em seus anos de
internamento na Colônia Juliano Moreira, o maior e mais antigo manicômio do
Rio de Janeiro. Enquanto a intelectualidade hoje já nem mais discute se ele
era gênio ou louco, a Rainha do Papel adentrou nas hostes da arte pela
porta da frente. Não por acaso, em maio deste ano, ela era um dos três da
exposição Museu Bispo do Rosário + 3, no respeitado – e moderníssimo -
Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba.
Nada disso livrou-a de uma insegurança financeira que a leva, eventualmente,
a sugerir a doação de R$ 1 pela conversa ou pelas fotos. Efigênia é, assim,
um retrato da arte brasileira: os holofotes não lhe bastam para a
sobrevivência. Nem com o trabalho constante no Projeto Fera – Festival de
Arte da Rede Estudantil do Paraná -, do Governo do Estado, em que ministra
oficinas.
Mãe de nove, avó de 16 e bisavó de quatro, Efigênia Ramos Rolim diz: — vim e
venci, graças a Deus. Mas a melhor expressão de seu espírito libertário e
positivo talvez esteja em seus versos reproduzidos num blog: eu não sei pra
onde eu vou / ninguém sabe de onde eu vim / mas se Deus me convidou / vou
ficar até o fim. (Fonte: AmbienteBrasil, 17/09/2005)