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2005-09-19
Gilberto Cervinski não podia prever que, ao reagir contra o primeiro eixo da barragem de Machadinho, no Rio Grande do Sul, na década de 80, estaria integrando-se a uma causa muito maior, hoje defendida no Movimento dos Atingidos por Barragens - MAB.

Engenheiro Agrônomo, formado pela Universidade Federal de Santa Maria, ele faz parte da direção Nacional da entidade, severa crítica quanto ao modelo energético adotado pelo Brasil, que acarretaria mais problemas sociais e ambientais do que benefícios.

Cervinski diz que desde criança participa da luta contra a construção de barragens, mas lamenta: — O problema é que nunca se consegue impedir definitivamente. Quando impede por um tempo, as empresas se reorganizam e voltam com mais força.

Em entrevista a Ambiente Brasil, ele fala da realidade da população atingida por esse tipo de empreendimento e aponta o Brasil como alvo dos interesses capitalistas, uma vez que o país detém 16% da água do mundo.

AmbienteBrasil – Qual o objetivo do Movimento dos Atingidos por Barragens e como ele surgiu?

Gilberto Cervinski– O MAB é o movimento que organiza o povo que sofre perdas pela construção de barragens. Surgiu no início dos anos 80 através das construções das barragens no governo da ditadura militar, em que a concepção, naquela época, era de erguer o muro de cimento e o restante, a questão ambiental e social, se resolveria por bem ou por mal. Essa concepção dura até hoje. As empresas que eram construtoras na época, hoje são donas das barragens e entendem que para construí-las o processo ainda é o mesmo. O objetivo do movimento no início era apenas tentar garantir boas indenizações, mas fomos percebendo que as empresas não aceitam isso. Elas têm como propósito o lucro a qualquer custo com a construção de barragens. O objetivo do MAB hoje, além de defender as famílias contra as agressões dos donos das barragens. é defender e mudar o modelo energético desse país. Isso significa tratar de dois temas fundamentais para o interesse do nosso povo, que são as questões da água e da energia. Dois bens públicos, mas que estão a serviço dos grandes grupos econômicos multinacionais.

AmbienteBrasil – Quantas pessoas o MAB beneficia e de que formas?

Gilberto – Nos últimos 40 anos, em torno de 1 milhão de pessoas foram expulsas de suas terras. Estão ameaçadas, nos próximos anos, cerca de 850 mil. Desse total, somente nos próximos quatro anos, com a construção de em torno de 50 barragens que estão em andamento, e mais as 70 planejadas, nós acreditamos que deve alcançar 100 mil famílias expulsas pelas barragens em todo o Brasil. Destas, temos alguns dados – e a nossa prática mesmo - que demonstram que nas barragens, a cada 100 famílias atingidas, 70 não recebem absolutamente nenhum tipo de direito, ou seja, acabam se transformando naquelas pessoas que vão morar na favela nos municípios da região, ou se tornam sem-terras.

O MAB hoje está organizado em 15 estados do Brasil e estamos crescendo, trabalhamos direta e indiretamente com cerca de 100 mil famílias, 60 mil de forma direta, que representam a base do nosso movimento. Quando são construídas as barragens se faz uma propaganda muito grande de que ela trará desenvolvimento, progresso e emprego, isso não é verdade. É uma forma de enganar e iludir as famílias para que elas permitam a construção. Nós lutamos para mantê-las no mercado como agricultores, pescadores, como trabalhadores. Reconstruindo suas comunidades, com um lugar para continuar trabalhando e produzindo sua renda. Lutamos para que essas famílias também tenham moradia, acesso à energia – a maioria do povo atingido que mora na beira dos lagos, não tem energia –, lutamos também para baixar o preço da luz. Essa é uma luta não só do MAB, mas de todo o povo brasileiro.

AmbienteBrasil - Por que?

Gilberto - A energia que sai das turbinas com custo de R$ 40,00 a R$ 50,00 - às vezes, nas barragens mais antigas, ele chega a R$ 15,00 - nas contas de luz dos consumidores atinge R$450,00. Esse é um verdadeiro roubo que vem ocorrendo ano após ano depois da privatização.

AmbienteBrasil – Quais os principais impactos ao meio ambiente produzidos pela construção de hidrelétricas?

Gilberto- Impacto já é um nome complicado para utilizar, dá impressão de que deu uma batida, causou o problema e em pouco tempo já passou tudo. Na verdade não é assim. Onde se constrói uma barragem são causados profundos problemas que não são só sociais e ambientais. Aliás, estes não podem ser separados. O problema da extinção das espécies de peixes e da pesca é um problema ambiental, mas também é social. A relação das pessoas com a questão ambiental na região é muito profunda. Claro que existem problemas grosseiros como o caso de Barra Grande, no sul do país, entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, onde o estudo de impacto ambiental foi fraudado, escondendo problemas grandes. Lá, 98% da construção já foi concluída, mas só agora apareceu que havia 6 mil hectares de araucária nativa, árvore em extinção. Uma das maiores reservas de araucária foi alagada, os pinheiros inteiros, só que os estudos esconderam, para permitir a construção de uma bela barragem para um grupo chamado Alcoa, dos Estados Unidos.

Além desses problemas, causam problemas culturais e econômicos, porque há um empobrecimento, as famílias que são expulsas acabam se tornando sem-terras ou morando nos bairros mais pobres. Outro problema é que nas beiras dos rios existe uma biodiversidade enorme, por causa da fertilidade dessas terras e da conservação dessas áreas, então, há muitas espécies animais. Quando alaga, os animais têm que migrar. É o caso da barragem de Serra da Mesa, em Goiás, onde cavernas foram cobertas e os morcegos começaram a atacar os bovinos. Foram registrados casos de mais de 300 bois mortos pelos morcegos. Outras regiões, principalmente do centro do país para cima, onde existe o período seco e o chuvoso, sofrem também. Durante a seca, o lago diminui e aparece a lama, criam-se mosquitos e insetos que são infestações quase insuportáveis para as famílias. Em Tucuruí, em uma hora uma pessoa chegou a receber 600 picadas de insetos. Qual a população que consegue morar nessa região?

AmbienteBrasil – Que alternativas o MAB propõe para a geração de energia? Gilberto - Falar em geração é muito restrito, porque gerar é só para produzir energia. Na verdade temos um problema de modelo energético, desde a geração até o destino dessa energia. Como ela é produzida, como é distribuída, quem são os beneficiados, para quem vai essa energia? É para atender o povo brasileiro ou as empresas multinacionais como é o caso das eletrointensivas que utilizam a energia para produção de alumínio e levá-lo a um custo menor para os países ricos?

Existem, então, vários problemas. Um é que a energia é considerada mercadoria, dessa maneira, quem tiver dinheiro vai pagar e o pobre vai ficar sem energia. Por isso, já estão até instalando as contas pré-pagas, quem não tiver dinheiro vai ficar no escuro. Outro problema é a tendência de que sempre aumente o preço da luz, o que é um abuso. A questão da privatização, também, toda a energia e a água estão sendo entregues para multinacionais. A maior parte da energia produzida no país tem como destino as indústrias pesadas - chamadas eletrointensivas -, que são proibidas nos países ricos, porque não geram emprego, destróem o meio ambiente e precisam de uma quantidade de energia enorme. Para produzir uma tonelada de alumínio são necessários em torno de 15 mil quilowatts de energia. Ele é exportado em barras de lingote, em sua maioria para o Japão, Estados Unidos e Europa. Com esses 15 mil quilowatts poderia se abastecer uma família durante dez anos, pelos padrões de consumo brasileiros. Essa energia utilizada na produção do alumínio é paga em preços subsidiados, às vezes abaixo do custo de produção. A principal fonte de energia do Brasil é a hídrica, através da construção de barragens, isso é um equívoco.

O MAB não é contra a energia, e sim, a forma de como ela é distribuída e quem se beneficia. Quem paga a conta é o povo atingido, porque perde suas terras, sem ser indenizado, para entregar o rio, a água e a energia para uma empresa multinacional lucrar às custas do povo brasileiro.

AmbienteBrasil - Quais seriam as melhores alternativas?

Gilberto - Além das hidrelétricas existem outras fontes que precisam de mais atenção, como a solar, a eólica, a biomassa, a questão da repotenciação de usinas velhas, e potencialização da transmissão – hoje perdemos 15% da produção somente na transmissão, isso é uma vergonha. Todas essas questões poderiam acrescentar, mas muitos dizem que essas formas de energia são muito caras. Isso se deve à falta de pesquisas na área.

AmbienteBrasil – Levando-se em consideração que o Plano 2015 do Governo Federal prevê a construção de mais 494 Usinas Hidrelétricas, tendo como estimativa a expulsão de 800 mil pessoas de suas terras – dados retirados do site do MAB -, de que maneira o Movimento vem se organizando para enfrentar essa proposta?

Gilberto - O plano é de construir 494 grandes, mas isso muda a cada dia. O caso de Belo Monte, no Pará, por exemplo, eles tinham uma resistência muito grande da sociedade e fizeram um plano de construir seis pequenas barragens. Mas vai alagar da mesma forma, causar os mesmos problemas, ou até mais. Essas 494 podem se transformar em mil. A única saída para enfrentar essa situação é a organização do povo, não para lutar contra energia, mas sim pela mudança do modelo energético. Por isso estamos organizando o povo em todas as regiões, lutando, fazendo mobilizações e ocupações, que vão continuar enquanto os problemas persistirem e o modelo energétido não for mudado. Agora, isso não é uma luta só do MAB, mas de todos os trabalhadores, do campo ou, principalmente, da cidade. A Aneel estabeleceu a regra de que todo investimento no setor elétrico seja repassado na tarifa de energia.

AmbienteBrasil – As propaladas imprecisões – para dizer o mínimo - no Eia/Rima da hidrelétrica de Barra Grande não foram suficientes para deter o empreendimento. Por que?

Gilberto - Pela cultura de fazer os estudos acochambrados, fraudulentos, também pela cultura do fato consumado. As pessoas que fizeram aquilo lá deveriam ir para a cadeia. Eu conheço a região, andei pelo meio das araucárias. Para se ter uma idéia, existem araucárias que precisam de duas pessoas para abraçar a madeira, de tão grandes. Para chegar nesse estágio de desenvolvimento, leva algumas centenas de anos. Constrói, depois o resto se resolve por bem ou mal. Nunca questões ambientais e sociais são priorizadas e, sim, o lucro.

Em Barra Grande prevaleceram os interesses da Alcoa Alumínio e do grupo VBC – Votorantin, Bradesco e Camargo Correa. Não era nem para ter deixado construir a barragem, não é esse o problema agora. O problema é não ter previsto tudo isso antes. Como foram incompetentes na previsão, ou mal-intencionados - acredito que tenham sido mal-intencionados-, a situação deveria ter sido paralisada. Não vai existir outra região com 6 mil hectares de araucária, pode ter certeza. O mais gritante é que logo acima existe uma barragem chamada Paiquerê que tem as mesmas características de Barra Grande, tem araucárias, todo um problema ambiental e social idêntico e estão querendo construir. Os promotores da região estão defendendo.

AmbienteBrasil – O MAB vai fazer algo contra a hidrelétrica nas cachoeiras de Dardanelos, na região tida como “a Foz do Iguaçu mato-grossense”? Segundo denúncias que já chegaram à imprensa livre, a Eletronorte, a Odebrecht e o Governo do Mato Grosso pretendem construir a usina, rebaixando a vazão dos saltos e transformando-os em dois filetes de água - uma tragédia para a biodiversidade desta porção preservada da Amazônia Legal.

Gilberto - Temos o MAB lá, não especificamente na região, mas em Mato Grosso já temos sede. Estamos deslocando pessoal para ajudar a organizar o movimento e vamos lutar contra a construção da hidrelétrica. Pelas informações que temos, achamos que é um equívoco, porque em Dardanelos existe a rota das andorinhas, além disso é uma região com potencial para desenvolver. De fundo existe o interesse da Odebrecht e de outros grupos que querem energia, principalmente o pessoal ligado ao agronegócio da soja.

AmbienteBrasil – Por que tantos problemas estão acontecendo nas usinas hidrelétricas? O que estaria por trás dessa conjuntura?

Gilberto - O Brasil é um dos países que têm maior quantidade de água doce do mundo, que é o futuro “filé”, onde as empresas vêem bilhões de faturamento para os próximos anos. Quando se constrói uma barragem também se privatiza a água, o lago. Ele fica, nos próximos 30 anos de concessão do dono da barragem. Como já falei dos 86 mil megawatts de capacidade instalada, o Brasil ainda tem 260 mil de potencial hídrico se fossem construídas hidrelétricas em todos os rios brasileiros. Imagine os bilhões e bilhões de reais de faturamento. Atualmente as empresas do setor elétrico estão faturando em torno de R$ 100 bilhões por ano. Quando são construídos esses mega-projetos faraônicos, eles causam problemas e não são por interesse do povo. Se fosse, não se construiria grande parte e estariam a seu serviço. Como não são, as questões sociais e ambientais acabam sendo secundárias, com a conivência dos governos estaduais e federais, infelizmente. Eles sabem disso, mas não têm coragem de enfrentar, ou são comprometidos com esses grupos econômicos.

AmbienteBrasil – O MAB está incentivando também a produção agroecológica. Por que?

Gilberto - O MAB é um movimento formado por muitos camponeses, ou seja, temos relação com a agricultura. Nós também fazemos parte da Via Campesina, de que fazem parte os movimentos dos pequenos agricultores, o MST e outros movimentos. Na agricultura temos um problema de modelo agrícola, baseado no agronegócio, utilização massiva de venenos, destruição do solo, monocultura. Esse é um modelo que vai à falência, que acaba com o solo e as terras brasileiras. Basta ver a destruição da Amazônia, que está dando lugar à plantação de soja. Logo atrás vem a destruição das terras que não produzem mais nada. A agroecologia não é somente produzir alimentos limpos – livres de agrotóxicos, pesticidas, venenos, biocidas -, é um modelo de agricultura sustentável. Os pequenos e médios agricultores são priorizados.

AmbienteBrasil – Qual a posição do Movimento quanto à cobrança pelo uso da água?

Gilberto - Assim como a questão do preço de energia, que é um roubo o que o povo está pagando, nós somos contrários. A água não deve ser comercializada, no máximo ela tem uma taxa de transporte, quando precisa é tirada de uma fonte, um rio, ou do subsolo. Quando em cima dessa água se coloca uma taxa para o capitalista enriquecer é contra a lei brasileria, que diz que ela é um bem público e patrimônio da humanidade. O abastecimento humano deveria ser prioridade.

A cobrança do uso da água, principalmente agora, que a Agência Nacional da Água está querendo instituir cobrança até do uso da água dos rios, não vai ajudar a preservar. Pelo contrário, agora é que o agronegócio vai utilizá-la, os pobres serão proibidos de ter acesso. Essa é demonstração de que a água está sendo transformada em mercadoria, e como o Brasil tem 16% de toda a água do mundo, os grandes capitalistas estão vendo aqui bilhões de faturamento e de enriquecimento. (AmbienteBrasil, 18/09/2005)

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