Artigo: Transgênicos matariam a fome no mundo?
2005-09-15
Por Jean Marc von der Weid*
Segundo a FAO, existiam 840 milhões de pessoas que passando fome no mundo em
1996, quando da Conferência Mundial da Alimentação. Nesta reunião
deliberou-se reduzir este número pela metade em 20 anos, mas estes esforços
vêm produzindo resultados pífios. Além disso, espera-se que a população
mundial cresça para 10 bilhões em 2030, aumentando em 66% a demanda de
alimentos. Este cenário aponta para um brutal aumento do problema da fome no
mundo nas próximas décadas e foi bastante explorado pelas empresas
multinacionais que produzem sementes de plantas transgênicas para defender a
difusão desta nova tecnologia.
A realidade atual aponta para o fato de que o problema principal da fome não
está na oferta de alimentos. No mundo há hoje suficiente comida para
alimentar a todos de forma adequada, mas a dificuldade de acesso aos
alimentos é que impede a eliminação da fome. Muitos dos países com fome
endêmica não conseguem produzir o suficiente para sua alimentação e não
dispõem de recursos para importá-los. Em outros países é a baixa renda que
impede as pessoas de se alimentarem convenientemente. É o caso do Brasil,
onde 13,7 milhões passam fome e outros 40 milhões se alimentam de forma
insuficiente ou desequilibrada.
A Conferência Mundial de Alimentação reconheceu que para enfrentar o
problema da fome é necessário aumentar a oferta de alimentos a preços
acessíveis nos países com déficit de produção, ficando as importações como
uma solução acessória para momentos de crise. Será que os alimentos
transgênicos podem resolver este problema?
Para isso seria necessário aumentar a produtividade das culturas, a preços
mais baixos. E é justamente isso que as empresas multinacionais dos
transgênicos dizem que estes produtos são capazes de fazer. No entanto,
desde a comercialização do primeiro alimento transgênico, nos EUA, em 1996,
estudos e resultados práticos vêm evidenciando que esta afirmação é uma
falácia.
Longe dos resultados anunciados
Mesmo sem levar em conta os riscos ambientais e para a saúde humana
apontados por diferentes estudos como graves[1] , os transgênicos não vêm se
mostrando nem mais produtivos nem mais vantajosos economicamente.
Pesquisas recentes indicam que os dois cultivos transgênicos mais difundidos
no mundo, respectivamente, soja resistente a herbicida (Roundup Ready, ou
RR) e milho Bt, resistentes a uma lagarta, não têm produtividades mais altas
que as variedades convencionais equivalentes e não reduziram o uso de
agrotóxicos.
Os ensaios da Fundacep[2], do RS, mostram que a soja transgênica produz 13%
menos que a convencional. Nos EUA, onde a soja RR produz entre 5 e 11% menos
que suas correspondentes convencionais, um levantamento com base em dados do
USDA referentes a nove anos consecutivos mostrou que o uso de outros
herbicidas dobrou após a introdução da soja transgênica no país e o uso de
herbicidas à base de glifosato cresceu 67%[3]. Na Argentina, entre 1996 e
2004, subiu em 14% a taxa de aplicação de Roundup (em kg/ha). O número de
pulverizações para o mesmo período aumentou 38,9% e o uso de outros
herbicidas cresceu 116,6%[4]. Esse aumento do uso de herbicidas é o mais
previsível dos resultados do uso continuado de uma única estratégia de
controle de plantas espontâneas. Por se basear em um único produto, a
aplicação repetida do herbicida Roundup nos cultivos transgênicos acelera o
desenvolvimento de tolerância e de resistência de plantas ao herbicida.
Existem relatos no Rio Grande do Sul de 8 espécies resistentes ao herbicida
glifosato.
Um estudo[5] de três anos feito em Ottawa, Canadá, comparou o milho Bt a
sementes híbridas usadas no país e verificou que alguns híbridos Bt
produziram quantidades iguais ou até 12% inferiores a seus equivalentes
convencionais. Para as condições em que o estudo foi conduzido, seus autores
não verificaram nenhuma vantagem dos híbridos Bt em comparação aos
convencionais em relação a infestação de lagartas consideradas de
intensidade baixa ou moderada.
Quanto à economia de custos, após resultados favoráveis nos dois ou três
primeiros anos, a soja transgênica perdeu competitividade em comparação com
a convencional. Inicialmente a soja RR resultou em uma economia na aplicação
destes agrotóxicos não tanto porque a quantidade tivesse diminuído, mas
também porque o número das aplicações reduziu-se e facilitou-se o seu
emprego, reduzindo os custos de mão de obra e do uso de equipamentos e
também porque o Roundup teve seu preço barateado. Entretanto, como vimos, o
surgimento de ervas daninhas resistentes implicou em um aumento das
quantidades e do número de aplicações de herbicidas e, muitas vezes na
necessidade de usar outros herbicidas para os quais a soja transgênica não
tem defesa, anulando as suas vantagens na simplificação da aplicação.
O milho Bt não é cultivado no Brasil, mas nos EUA, a economia de inseticida
é evidente, uma vez que a planta passa a produzir o inseticida em todas as
suas células, mas as vantagens são muito menores, pois a lagarta que é
controlada desta forma só causa dano econômico em um ano em cada cinco
enquanto o custo das sementes transgênicas, utilizadas todos os anos, é
consideravelmente maior que as convencionais. Por outro lado, também neste
caso ocorreu o aumento da resistência da praga, numa velocidade muito maior
que a esperada, forçando os agricultores a empregarem outros agrotóxicos
para garantir sua produção.
Apesar destes problemas, os agricultores americanos continuam plantando
transgênicos. Há duas principais explicações para o fato. Uma relaciona-se
com a dificuldade de encontrar sementes não-transgênicas em quantidades
suficientes, já que a oferta de sementes está fortemente concentrada nas
mãos das empresas que produzem transgênicos. A segunda, válida sobretudo
para o caso da soja e outros cultivos resistentes a herbicidas, está na
praticidade resultante da aplicação facilitada do produto. Esta
justificativa também aplica-se no nosso caso.
Aumentar a oferta de alimentos
Olhando para os países do terceiro mundo, onde devemos aumentar a oferta de
alimentos e diminuir os custos de produção para enfrentar o problema da
fome, o grande problema da fome está no seu setor rural. São os agricultores
familiares e os sem terra que estão mais vulneráveis, particularmente nos
ecossistemas mais frágeis como o Sahel africano ou o nordeste brasileiro.
Além disso, muitos dos famintos urbanos são migrantes que transferem sua
pobreza para as cidades, onde uma economia globalizada vai oferecendo cada
vez menos empregos com um mínimo de remuneração e estabilidade para garantir
a segurança alimentar.
A solução transgênica não beneficiará estes produtores, pois, na escala de
produção em que operam e com os baixos níveis de capacidade de investimento
em sementes caras, royalties e agrotóxicos, estes produtos não os tiram da
situação de pobreza em que se encontram. As próprias condições ambientais em
que produzem estes agricultores não lhes permite correr o risco de investir
em tecnologias caras, ainda que estas, teoricamente, fossem mais produtivas.
A experiência de muitas ONGs e alguns governos em todo mundo mostra que é
possível aumentar as produtividades dos agricultores familiares mesmo em
condições ambientais difíceis sem impor-lhes riscos inaceitáveis em
investimentos com sementes (transgênicas ou não) e agrotóxicos. Para estes
agricultores a alternativa agroecológica é a mais aconselhada.
A agroecologia tem conseguido aumentar a produtividade de várias culturas em
até 500%, segundo pesquisa internacional[6] realizada pela Universidade de
Sussex, na Inglaterra. É verdade que estes incrementos se fazem partindo de
produtividades muito baixas quando comparadas aos sistemas modernizados,
convencionais ou transgênicos, mas o que interessa é que conseguem aumentos
espetaculares e passam, muitas vezes, a comparar-se com as produtividades
dos sistemas ditos modernos. O mais importante é que a agroecologia consegue
estes resultados sem exigir investimentos caros e arriscados e consegue
efeitos cumulativos e sustentáveis.
Tomemos agora o caso brasileiro onde existem 3,7 milhões de agricultores
familiares (em cujas famílias encontramos uma parte significativa dos 7,9
milhões de famintos rurais) dos quais cerca de 3 milhões estão à margem dos
sistemas modernizados de produção. Considerando apenas as cinco culturas
mais importantes de grãos (milho, soja, arroz, feijão e trigo) os
agricultores familiares produziram cerca de 20,57 milhões de toneladas em
1996, com uma produtividade média de 1513 kg/ha. Em sistemas agroecológicos
as produtividades destas culturas revelaram-se, no mínimo, duas vezes
maiores e tendem a crescer com a aplicação continuada desta tecnologia. Com
os custo da conversão para agroecologia situando-se em R$ 1.000,00 reais por
hectare em média e sem necessidade de investimentos recorrentes os atuais R$
7 bilhões oferecidos como crédito para a agricultura familiar seriam
suficientes para converter toda a área de grãos deste setor em apenas 3 a 4
anos.
Se generalizada a prática agroecológica os agricultores familiares poderiam
dobrar a sua produção (na hipótese mais conservadora) com custos baixíssimos
em comparação com os sistemas convencionais, pois não compram sementes,
adubos químicos e agrotóxicos. Além de melhorar o consumo alimentar e a
renda destes agricultores, eliminando um grande foco da fome no país,
ofereceriam aos consumidores urbanos um forte incremento de oferta de
alimentos de alta qualidade e baixo custo, diminuindo também a fome dos
pobres das cidades.
Para concluir, os transgênicos podem, na melhor das hipóteses, beneficiar
durante algum tempo os muito grandes produtores (se desconsiderarmos todos
os problemas já encontrados), mas não têm papel a cumprir no enfrentamento
da questão da fome no Brasil e no mundo. A agroecologia, por outro lado, já
vem mostrando seu potencial para resolver este problema mesmo sem ter
contado historicamente com políticas de apoio oficial em pesquisa, extensão
rural ou crédito.
*Jean Marc von der Weid, economista, é coordenador de políticas públicas da
AS-PTA e membro do Condraf/MDA. Artigo publicado originalmente na Revista Eletronica Com.Ciencia, 10/09/2005.
Notas
[1]GMOs and human health. I-SIS Press Release, 16/08/05.
http://www.i-sis.org.uk.
[2]Cultivares de soja RR provenientes versus cultivares convencionais
nacionais. Steckling, C., 2004. Fundacep.
[3]Genetically engineered crops and Pesticide use in the USA: the first
nine years. Charles M. Benbrook. BioTech InfoNet. Technical Paper Number 7.
October 2004
[4]Rust, Resistance, Run Down Soils, and Rising Costs: Problems Facing
Soybean Producers in Argentina. Charles Benbrook, 2005.
[5]Field Crops Research 93: 199-211, 14/10/2005.
[6]SAFE, 2001, http://www2.essex.ac.uk/ces/Research
Programmes/SAFEWexecsummfinalreport.htm