Morte de velejador-ambientalista estimula regulamentação dos esportes radicais
2005-09-13
Por Geraldo Hasse, especial para o Ambiente JÁ
O afogamento do windsurfista Tiago Farias, na semana passada, na Lagoa dos Barros, a maior lâmina dágua do litoral norte, com mais de 10 mil hectares, chocou a população de Osório (RS) e mobilizou velejadores de todo o Estado.
Estudante de administração de empresas e radialista, Tiago mantinha aos sábados na Rádio Osório AM um programa Rota 750 sobre esportes radicais ligados à natureza. Além de praticar vôo livre e windsurfe, cobria outros esportes praticados na região, como mountain bike e bicicross, e incentivava os cuidados com o meio ambiente. A Polícia Civil e a Marinha investigam o acidente.
No início da tarde da última quinta-feira (8/9) quem cruzava a Free Way no sentido Porto Alegre-Osório podia avistar duas velas de windsurfe e duas pipas de kite-surfe, em pontos diferentes da Lagoa dos Barros. Aproveitando o vento nordeste, as duas pipas estavam em frente à Rajada, escola de Rafael Freitas, na margem leste da lagoa; as duas velas na margem norte, em frente à Windfly, escola de Marco Antonio Rodrigues da Silva, mais conhecido como Bola, que fazia ali o que denominou o meu melhor velejo . Na outra prancha estava Tiago treinando para sua estréia no campeonato gaúcho de windsurfe - seria no próximo fim de semana, na Lagoa dos Patos, em Pelotas.
Quando Tiago se afastou da Windfly, sendo levado pelo vento em direção à Rajada, na outra margem, Bola foi atrás dele, mas o perdeu de vista, pois as ondas começavam a elevar-se. Bola então voltou para a base, pegou o carro e foi fazer o resgate do amigo por terra na outra margem, seguro de que já o encontraria confraternizando com o pessoal do kite-surfe.
Mas na Rajada ninguém o havia visto e da margem não se podia avistar a vela. Dois velejadores entraram no bote salva-vidas e foram para o meio da lagoa, Bola ligou para os bombeiros e, acreditando que Tiago tivesse buscado abrigo numa beirada da lagoa, continuou as buscas por terra, com a ajuda de amigos que apareceram para ajudar. O vento se tornava mais intenso à medida que a noite se aproximava e todos se lembravam do dia anterior, de calmaria quase absoluta.
No meio da tarde do 7 de setembro, Tiago Farias aportou na Lagoa dos Barros em sua asa, fazendo um pouso que ele declarou como sendo de boeing, em cima dos juncos. O vento estava fraco para vela no feriado; os velejadores que esperavam o momento propício para cair na água circundaram o amigo voador e o ajudaram a guardar a asa. Ele também estava disposto a velejar, mas faltou o principal: o feriado terminou com um pôr-do-sol sobre águas tranqüilas e temperatura amena.
O programa, depois da chegada inusitada de Tiago com sua asa, se resumiu a tomar chimarrão em frente à lagoa, sentindo a quentura do sol, olhando as crianças que jogavam bola e andavam de bicicleta em frente à praia.
Anoitecia quando, sem a vela e sem a bolina (quilha móvel), a prancha de 330 centímetros em que Tiago deu seu último velejo foi recolhida na margem leste da lagoa, a cerca de oito quilômetros do ponto onde ele costumava treinar. Até domingo a vela não havia sido encontrada. A bolina apareceu por volta das dez da noite, duas horas antes da descoberta do corpo, recebido por colegas de vela, de vôo, familiares e amigos.
Para os companheiros de velejo que tentaram o resgate, a separação das três partes do equipamento indica que o windsurfista realizou a operação mais difícil sob as rajadas fortes (53 km/h) e o frio intenso (10 graus): desatarrachou a vela da prancha, mas perdeu-se do que seria sua tábua de salvação - no windsurfe, a prancha é o principal item de segurança.
Não se sabe por que ele desconectou a prancha da vela, pois a recomendação básica é que o windsurfista, por acidente, cansaço ou pane no equipamento, permaneça em cima da prancha até para facilitar a localização pela equipe de resgate. É possível que, na impossibilidade de levantar a vela devido a força do vento, ele a tenha descartado para remar sobre a prancha e chegar mais rapidamente à margem. Na ânsia de voltar ao trabalho, mesmo com roupa de neoprene e colete de flutuação, deve ter-se esgotado nadando.
Os bombeiros de Santo Antônio da Patrulha e de Osório, sem barco, pouco podiam fazer e alertaram que o barco salva-vidas precisava sair da água de acordo com as previsões de tempo da Defesa Civil para aquela noite. Àquela altura os companheiros de Tiago já estavam voltando do meio da lagoa com o bote salva-vidas das escolas em meio a ondas desestabilizadoras, que dificultavam a visualização.
Enquanto a noite caía, outros davam voltas de carro e de moto por toda a margem, confiantes de que a qualquer momento Tiago chegaria em terra firme. A busca só terminou no início da madrugada, quando o corpo apareceu perto do local onde a prancha havia sido encontrada.
A Polícia Civil e a Marinha abriram inquéritos para investigar as causas do acidente, que poderá ajudar a melhorar as condições para a prática desses esportes. Embora a vela seja tão antiga quanto a civilização humana, o windsurfe é praticado só há trinta anos e o kite-surfe tem apenas cinco anos.
São raros os acidentes na prática do windsurfe, um dos poucos esportes radicais que admitem crianças e adolescentes. A prancha é o principal equipamento salva-vidas, mas para aumentar a segurança recomenda-se surfar com o colete de flutuação, como o que Tiago Farias usava.
Os coletes do tipo salva-vidas não são usados porque impedem o velejador de mergulhar quando a vela cai, já que a saída precisa ser feita por baixo dela. No verão, em praias e lagoas, é difícil avistar windsurfistas com coletes ou roupas de neoprene. Os capacetes para a prática do kite-surfe só há pouco começaram a ser utilizados, depois de alguns acidentes.
O uso de bóias na água para delimitar espaços e rádio para monitoramento, por exemplo, podem ser regulamentações úteis e necessárias, mas até agora não previstas.
O Vento como Insumo
Coberta pelo vento minuano, a Lagoa dos Barros não registrou movimento de velas e asas no fim-de-semana, mas nas suas redondezas ninguém acredita que o acidente vá inibir os adeptos dos esportes radicais e emocionantes nos morros e lagoas do litoral norte. Com 40 mil habitantes, Osório é tradicionalmente procurada pelos chamados loucos pelo vento, que se deslocam de lugares distantes para a prática de diversas modalidades de esportes ao ar livre.
A divulgação do projeto da usina eólica da Enerfin, junto à Lagoa dos Índios, na estrada Osório-Tramandaí, está fazendo vir à tona, com força, a vocação regional para a exploração do vento como insumo do lazer e do turismo no litoral norte do Rio Grande do Sul. Segundo os esportistas de Osório, as duas escolas de vela recém-abertas na Lagoa dos Barros são apenas a confirmação de uma história de quase setenta anos. Desde 1937 funciona no município a Albatroz, uma escola de planadores montada originalmente pela Varig; em 1985 foi criada na cidade uma associação de vôo livre que mantém três plataformas de saltos nos morros vizinhos.
A prática da vela na Lagoa dos Barros foi iniciada depois que um grupo de velejadores liderado por Marco Antonio Rodrigues da Silva, o Bola, comprou um terreno há três anos à altura do km 5 da Free Way; visando instalar uma escola de vela e guarderia de material náutico.
Piloto agrícola há vinte anos, Bola tornou-se navegador em Tapes, na Lagoa dos Patos; em Osório, introduziu as aulas de vela nos anos 90. Praticava na pequena Lagoa do Peixoto, fonte de abastecimento de água da população de Osório. Somente no primeiro semestre de 2005 conseguiu a licença para realizar o sonho da escola e guarderia na maior das 38 lagoas do litoral norte gaúcho. Um galpão octogonal foi construído em dois meses e inaugurado no final de julho.
Com a licença ambiental 1/2005, de comum acordo com as autoridades ambientais, o prefeito Romildo Bolzan Jr. estabeleceu que a Windfly pode ter apenas um barco a motor -- para resgate de velejadores em risco. Ao proibir os motores, a prefeitura credenciou a Lagoa dos Barros apenas para os esportes náuticos tocados pelo vento. — Isso é bom, pois reduz o risco de poluição -, diz Bola, que se retirou da aviação agrícola inconformado com a prática sistemática de crimes ambientais, especialmente o lançamento de venenos proibidos sobre lavouras de arroz e soja.
Além de formar novos praticantes e guardar material de vela de esportistas tradicionais, a Windfly tem planos de organizar pelo menos um torneio internacional de vela por ano em Osório. Como incentivador do mais novo ponto de encontro dos velejadores do litoral sulino – a vela tem adeptos entusiasmados em Rio Grande, Pelotas, Tapes, Porto Alegre, Osório, Ibiraquera e Florianópolis --, Bola dispõe-se a provar que o turismo náutico não é apenas fonte de emprego e renda, mas um instrumento de educação ambiental num espaço tradicionalmente dominado por atividades agrícolas poluentes. — Acho bom que as autoridades endureçam para dar uma licença, mas os órgãos ambientais precisam fiscalizar também outras atividades tradicionalmente poluentes-, dizia ele, poucos dias antes do acidente com Tiago, chamando a atenção para o impacto ambiental do plantio de arroz irrigado e da pecuária.
Principal fonte de abastecimento dágua para as lavouras de arroz situadas entre Osório, Santo Antônio da Patrulha, Palmares e Porto Alegre, a Lagoa dos Barros é livre de poluição e tem um regime de ventos caprichoso por causa de um acidente geográfico particular – é ao seu lado que começa a Serra do Mar. Alguns praticantes de esportes náuticos bastante viajados a equiparam a grandes pontos internacionais da navegação a vela. Acredita-se que seus redemoinhos traiçoeiros, provocados pelo choque de correntes de vento contraditórias, possam servir como chamariz de competições.