O Haiti também é ali: a demora do socorro na tragédia do Katrina
2005-09-13
Na cobertura da tragédia de New Orleans, foi lugar-comum dizer que Katrina lançou a cidade no Terceiro Mundo. É injusto. Ou, no mínimo, é uma generalização indevida. Já se viu, em países muito mais pobres, governos nacionais reagirem com mais eficiência e rapidez.
Nicholas Kristof, colunista internacional do jornal The New York Times, comentou que o governo de Bangladesh reagiu com mais presteza à catastrófica inundação de 1991. Em setembro de 2004, ante a aproximação do furacão Ivan, Cuba organizou a remoção de 17% de sua população, ou 1,9 milhão de pessoas – a maior da história desde a retirada de 2 milhões em Moscou ante o avanço nazista, na Segunda Guerra Mundial –, sem sofrer uma só vítima fatal. Três dias depois, Ivan matou 57 pessoas nos EUA.
Katrina não foi um tsunami inesperado, como o que devastou a Ásia em dezembro. Furacões sempre ameaçaram a Costa estadunidense do Golfo do México e sua freqüência tem aumentado nos últimos anos, devido ao aquecimento global, e este passara pela Flórida, com força suficiente para matar 13 pessoas, quatro dias antes de chegar à Louisiana.
O risco que um grande furacão representava para essa cidade era conhecido há anos. A profecia mais precisa foi o artigo Gone with the water (E a água levou), sobre a destruição dos pântanos da Louisiana. Baseado em um estudo da Cruz Vermelha discutido em 2002 pelo jornal Times-Picayune, de New Orleans, foi assinado por Joel K. Bourne Jr., na revista National Geographic de outubro de 2004, quase um ano antes dos eventos reais:
– Era uma quente tarde de agosto*1 quando chegou o aviso do furacão. No dia seguinte, a tempestade se aproximou da Costa. Mais de um milhão de pessoas deixaram a cidade e foram para terrenos mais altos, mas 200 mil*2 ficaram: os sem-carro, os sem-teto, os idosos e enfermos. A água marrom do lago Pontchartrain derramou-se sobre os diques, enquanto pessoas subiam aos telhados, e atingiu 8 metros de altura sobre algumas partes da cidade. Milhares se afogaram na mistura contaminada de esgotos e lixo industrial. Milhares de sobreviventes morreram de doença e desidratação enquanto esperavam socorro. Levou dois meses para a água ser bombeada, deixando uma cidade coberta de sedimentos pútridos, um milhão de desabrigados e 50 mil mortos*3.
– Quando essa calamidade aconteceu? Ainda não. Mas esse cenário apocalíptico não é absurdo. A Agência Federal de Administração de Emergências lista o impacto de um furacão em New Orleans como uma das piores ameaças à nação, junto com um grande terremoto na Califórnia e um ataque terrorista em Nova York. Mesmo a Cruz Vermelha deixou de abrir abrigos para furacões na cidade e reclama que o risco para seus trabalhadores é muito grande.
Apesar disso, o corpo de Engenharia do Exército de New Orleans pede desde 2001, inutilmente, recursos para consolidar os diques e melhorar o sistema de bombeamento para resistir a um furacão de categoria 4 ou 5. Em 2004, apesar da passagem do furacão Ivan, o governo cortou mais de 80% do orçamento desse órgão. Para 2005, cortou 40%. Para 2006, programou-se um corte recorde de US$ 71,2 milhões e o órgão suspendeu a contratação de pessoal.
Tratava-se de priorizar a guerra no Iraque e o Departamento de Segurança Nacional, criado após o 11 de setembro para coordenar 22 órgãos relacionados à segurança, informação e defesa civil, incluindo a Administração de Emergências. O DSN recebeu US$ 28 bilhões em 2003, US$ 36 bilhões em 2004 e US$ 40 bilhões em 2005, além de poderes sem precedentes para rastrear a vida dos cidadãos. É sua função ter planos para remover e socorrer vítimas de catástrofes – não só desastres naturais, como também de acidentes nucleares, grandes atentados terroristas e mesmo guerra atômica, uma possibilidade para a qual as grandes cidades dos EUA supostamente estão preparadas desde os anos 50.
Pois a ajuda federal levou dois dias para chegar às vítimas do terremoto de São Francisco em 1906 e cinco para alcançar os flagelados de New Orleans em 2005. No quarto dia do desastre, o diretor da Administração de Emergências, Michael Brown, ainda alegava não saber que havia milhares de refugiados no Centro de Convenções, cujo drama a tevê exibia continuamente há dias. E culpava as vítimas por não acatar a ordem de evacuação. Ignorava a situação explicada há um ano por Bourne e há três pela Cruz Vermelha tanto quanto Bush júnior, que alegou que ninguém tinha como prever a ruptura dos diques.
Apesar disso, seria injusto culpar apenas as autoridades federais. Era de esperar que o prefeito Ray Nagin estivesse mais consciente das condições da cidade, mas limitou-se a decretar a evacuação na véspera da chegada de Katrina sem oferecer meios para isso, enquanto ônibus rodoviários e ferrovias suspendiam as operações – e centenas de ônibus escolares do município ficavam esquecidos em um pátio para serem cobertos pelas águas.
Quando a prefeitura se deu conta, na última hora, de que milhares de pessoas iam ficar na cidade, encaminhou-as para o estádio Superdome e ao Centro de Convenções, nos quais 80 mil refugiados foram apinhados sem luz, água, comida, banheiros, médicos ou medicamentos por até seis dias à mercê de um calor de 32 graus, estupros e assaltos. Dois morreram, um se suicidou.
Muitos negros e parte da esquerda estadunidense formaram a idéia de que a cidade foi deliberadamente ignorada por causa da cor da pele de seu povo e até qualificaram a calamidade de genocídio. As razões não são difíceis de entender.
Descaso.
Municipal (Nagin) e federal (Bush)
New Orleans, berço do jazz, da culinária cajun e do Mardi Gras, é a capital da cultura negra nos EUA – digamos, a sua Salvador. Da população, 67% é negra e a proporção destes entre os que tiveram de ficar é certamente muito maior. E em outros desastres ainda frescos na memória dos EUA, nos quais a porcentagem de negros atingidos era menor – como o terremoto de 1989 em São Francisco –, o socorro foi bem mais eficiente e o sofrimento dos sobreviventes muito menor.
Mesmo assim, a má vontade do governo em relação à proteção da cidade e sua lentidão em reagir são sintomas, muito mais, de descaso para com o papel do Estado na preservação dos bens coletivos e na proteção dos mais fracos, resultado da mentalidade neoliberal enraizada ao longo da década passada para facilitar aos ricos tornarem-se ainda mais ricos, enquanto serviços públicos de saúde, segurança e previdência são abandonados e desmantelados. É nesse aspecto que os EUA parecem-se, cada vez mais, menos com o Terceiro Mundo em geral do que com alguns de seus países precariamente administrados.
Essa mentalidade não é exclusiva de brancos. Ao lançar o salve-se quem puder, Nagin, ex-executivo republicano da TV a cabo Cox Communications, que se filiou ao Partido Democrata para conquistar a prefeitura, identificou-se com os irmãos de bolso, não os de cor: apenas os eleitores saudáveis, jovens, motorizados e com dinheiro para se hospedar fora, nessa cidade onde 37% das famílias não tinham carros e 4% das pessoas eram idosas e sozinhas. A esses passageiros de terceira classe da nau do Estado coube a mesma sorte de seus colegas no Titanic.
Como os países mais precários doTerceiro Mundo, os EUA descobrem tarde como o barato sai caro, quando se trata de infra-estrutura. O governo federal cortou US$ 250 milhões dos US$ 680 milhões pedidos para combate a inundações em New Orleans nos últimos dez anos. Agora gasta US$ 700 milhões por dia com o socorro às vítimas e a conta final foi estimada em US$ 150 bilhões, a serem extraídos de um orçamento já muito deficitário e sobrecarregado pela ocupação do Iraque.
Mas mudarão os EUA de atitude? Os republicanos ainda querem cortar US$ 35 bilhões em programas assistenciais. Cerca de 46% das pessoas aprovam a ação do governo. Editorialistas conservadores, indignados com a alta da gasolina, pedem a abolição de leis ambientais que dificultam a expansão de refinarias e a abertura de poços no Alasca (cujo potencial é irrelevante ante a demanda, diga-se de passagem). Não é só nas ruas alagadas de New Orleans que há saqueadores.
*1 O aviso chegou no dia 26 de agosto; o estado de emergência, dia 27; a ordem de abandonar a cidade, dia 28; o furacão, dia 29; e a inundação, dia 30.
*2 Estima-se que ficaram de 240 mil a 300 mil.
*3 A estimativa oficial está em 10 mil mortos, mas há pelo menos 25 mil desaparecidos. (Carta Capital, 12/9)