Queimadas: Fumaça que vem de longe
2005-09-08
Se um dia os telejornais apresentarem, na previsão do tempo, as imagens do deslocamento da gigantesca corrente de fumaça que sai da Amazônia e cobre grande parte da região centro-sul do Brasil, talvez o público comece a ter uma noção mais realista do quanto a floresta está queimando. Executar essa idéia não é coisa de outro mundo. - É possível sim -, garante Paulo Artaxo, físico da Universidade de São Paulo (USP), minutos após uma palestra na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Com o aval de uma das maiores autoridades brasileiras quando se fala nos efeitos das queimadas sobre o clima, as televisões podem começar a cogitar a novidade.
Relevância é o que não falta nesse tipo de dado, que pode ser tão fácil de mostrar quanto o deslocamento de uma frente fria. Além desse cobertor de fumaça mudar completamente a visibilidade e a qualidade do ar em boa parte do país nos meses de seca nas regiões Norte, Sudeste e Centro-Oeste, é a maneira mais simples de entender por que as queimadas florestais são fonte de 74% das emissões de gases de efeito estufa no Brasil – taxa que o coloca na quinta posição do ranking dos países que mais poluem no mundo.
As queimadas emitem gases como o monóxido e o dióxido de carbono, compostos nitrogenados, metano e aerossóis (partículas sólidas em suspensão). Em quantidades amazônicas, tornam-se ingredientes de uma mistura extremamente prejudicial à floresta. Nos últimos 150 anos, a concentração de alguns desses gases na atmosfera aumentou como nunca. - Se pensarmos só no metano, por exemplo, existem estudos que apontam que, nesse período, a concentração passou de cerca de 400 partes por bilhão (ppb) para 3.700 ppb. Segundo o pesquisador, esse crescimento não tem mistérios. É resultado da queima de combustíveis fósseis somada à alta taxa de desmatamento mundial.
Uma nuvem qualquer se forma quando existem na atmosfera vapor da água e aerossóis, que funcionam como núcleos de condensação. Esses núcleos crescem e, na Amazônia, ao superarem o tamanho de 14 microns (0,0014 milímetros), a gota precipita. Mas quando há excesso de aerossóis, como no caso das queimadas, a gota não cresce o suficiente e não chove. Acontece um fenômeno que Paulo Artaxo chama de supressão de chuvas. - A atmosfera fica alterada e as verdadeiras nuvens de chuva são inibidas, não se formam mais. As falsas nuvens, as de fumaça, são assim. Demoram mais para se dissipar, são mais brancas e refletoras, ou seja, atrapalham a radiação solar, o que traz conseqüências à produção de energia na floresta. Recentemente comprovou-se que essas imensas nuvens influenciam também o clima.
Uma pesquisa do Experimento de Grande Escala da Biosfera - Atmosfera na Amazônia (LBA/ Ministério da Ciência e Tecnologia da qual participou o próprio Artaxo, levou cerca de 400 cientistas a Rondônia entre os meses de agosto e outubro de 2002 para realizarem uma série de estudos. Eles registraram uma queda na temperatura no estado de 2 ºC, além da redução de um quinto da luz solar e a diminuição de até 30% na quantidade de chuvas – tudo isso em decorrência da fumaça que, todo ano, muda sensivelmente a paisagem na cidade de Ji-Paraná.
Tais mudanças, no entanto, não acontecem apenas onde a floresta queima. - A redução das chuvas se espalha pelo país na medida em que a alta concentração de aerossóis é transportada pelas correntes de ar para outras regiões. Isso sem falar na poluição, que danifica até as florestas que não sofreram com o fogo. Além de mexerem no comportamento da atmosfera, as queimadas alteram profundamente outras esferas, como a biodiversidade de uma região e os recursos hídricos – por falta de chuvas e por deixar o solo desprotegido quando não existe mais cobertura vegetal – de modo irreversível no curto prazo. - Na Amazônia, boa parte dos nutrientes vem da chuva. Se você não tem chuva, as florestas saem perdendo -, diz Artaxo. Segundo ele, existem estudos mostrando que áreas de matas devastadas e abandonadas no sul do Pará há cerca de 30 anos não conseguem até hoje se regenerar plenamente. - A biomassa que renasce não chega a 40% do que era antes e a diversidade não supera os 25%.
Artaxo não quer ser chamado de catastrofista, mas apresenta dados nem um pouco animadores. Uma pesquisa do centro de previsão do tempo do instituto de meteorologia do Reino Unido, o Hadley Centre, previu que, se as taxas de desmatamento mundiais forem mantidas, entre 1990 e 2090 haverá uma mudança de algo entre 10 a 12 °C na temperatura do solo. Ainda segundo o instituto, no ano 2100 restarão no máximo 20% da cobertura original da Amazônia, num cenário otimista. Atualmente, 18% da região já foram completamente devastados.
A culpa, segundo Artaxo, é do governo, que não acompanha os avanços tecnológicos que permitem aos pesquisadores brasileiros monitorar em tempo real o surgimento das queimadas. Na realidade, não só quem entende do assunto, mas qualquer internauta curioso. No site do Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos do Instituto Nacional de Pesquisas Espacias (Inpe), é possível saber, entre outras coisas, quantos focos de incêndio existem neste momento em cada estado brasileiro ou em cada país da América do Sul, além de sua localização e de números acumulados. - Temos equipamentos e cientistas aptos a prever áreas até com risco de fogo. Pena que o governo não consiga realizar a última parte desse trabalho, que é executar as ações e impedir a devastação -, critica Artaxo. Para ele, não existe política efetiva de controle de queimadas no Brasil.
Isso se torna ainda mais grave quando alguns estados decretam proibição a todo tipo de queimada no período de estiagem e, mesmo assim, centenas de focos são registrados. - A Amazônia não pega fogo sozinha por causa da altíssima umidade, inclusive nas áreas que são consideradas menos úmidas, como o norte de Mato Grosso -, explicou Artaxo. Se até agora esse tema não tem conseguido ganhar o interesse da sociedade, a estratégia da corrente de fumaça na TV talvez possa impactar e revelar mais do que a dimensão da área consumida pelo fogo. Quem sabe mostre também a dimensão da impunidade. (O Eco, 04/09, por Andreia Fanzeres)