Lei da Mata Atlântica nas mãos do governo - Entrevista Mario Mantovani
2005-09-05
Quem acompanha a desenvoltura de Mario Mantovani, seja fazendo protesto nas ruas, em audiências públicas pelo interior do país ou na Câmara dos Deputados, em Brasília, sabe do que ele é capaz. Irreverente e sério, loquaz e simpático, mas um ferrinho de dentista quando se fala em degradação ambiental. O bioma pelo qual ele luta ainda está presente em 3,4 mil municípios e dá qualidade de vida a 110 milhões de pessoas. Esta é a sua força de argumentação. Geógrafo por formação, ativista histórico da Fundação S0S Mata Atlântica, ele explica aqui porque, 13 anos depois de tentativas, frustrações e vitórias, ainda não foi aprovada, no Senado, o que já passou (ufa!) Na Câmara dos Deputados: a criação e entrada em vigor da primeira Lei da Mata Atlântica, de autoria do ex-deputado pelo PSDB-SP, Fábio Feldmann.
JB ECOLÓGICO - O que aconteceu com o Projeto de Lei?
MARIO MANTOVANI - Ele está parado há 13 anos na Câmara dos Deputados e serviu para todos os tipos de chantagem: dos grupos ruralistas, imobiliários e dos setores produtivos. Mas teve uma coisa boa também. Quando a gente fez os primeiros levantamentos, descobrimos que de 8% da área original da Mata Atlântica brasileira passou a ser 7,3%. O ritmo de devastação era contemporâneo e equivalente à perda de um campo de futebol de florestas a cada quatro minutos. Então vimos que a Mata Atlântica precisava mais do que instrumentos legais.
JB - Como assim?
MM - Porque, com base no Código Florestal existente, toda propriedade no país com mais de um módulo rural já teria de ter poupado 20% de reserva legal. Ou seja, na Mata Atlântica, teríamos de ter chegado somente a 20% da sua área original, e não os 7% que nos envergonha perante o mundo. Mais. Conforme também manda a legislação ambiental brasileira, se todas as Áreas de Proteção Permanente (APPs), ou seja, topos de morro, trechos com até 45 graus de declividade, beiras de rio, etc., estivessem protegidas, nós teríamos mais de 17%. Somando tudo isso, teríamos entre 30 e 40% desse bioma ainda totalmente protegidos no país. Tem algo errado.
JB - O quê?
MM - Que nenhuma lei generalizada estava sendo cumprida. Daí a idéia de lutarmos por uma legislação específica. Foi quando, à véspera da ECO/92 no Brasil, partimos para a denúncia, mobilizando a opinião pública.
JB - E aí?
MM - Aí entramos com o nosso projeto de lei, de autoria do deputado Fábio Feldmann, que superaria um entrave com os setores contrários.. Esse projeto de lei prevê tanto o uso como a proteção dos remanescentes florestais. Só do que restou, apenas. Alguém chegou a falar, na época, que íamos impedir o uso de 15% do país. Não tinha nada disso. Era só dos 7% que restam de Mata Atlântica.
JB - Mas o que aconteceu de importante, de bom, então, nesses 13 anos de espera para aprovar a lei?
MM - Aconteceu a criação da legislação nacional de Crimes Ambientais, dos Recursos Hídricos, da Biodiversidade, de florestas, o que acabou tornando o projeto do Fábio Feldmann mais leve. Isso fez diminuir a resistência generalizada dos setores contrários. Mais ainda. Nesse tempo, cada estado fez a sua regulamentação sobre que estágio teríamos de avaliar a Mata Atlântica e após negociações, houve um consenso amplo, já que o princípio da sustentabilidade não é impedir o progresso, mas compatibilizá-lo com a preservação ambiental.
JB - E o que temos hoje e está no senado para ser aprovado finalmente?
MM - Não é mais uma lei daquelas que saem de Brasília e depois todo mundo tem que cumprir, sem discussão. O atual projeto de lei da Mata Atlântica está vindo de baixo para cima, foi regulamentado nos estados, passou pelos conselhos estaduais de Meio Ambiente, passou pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) e ganhou uma mobilidade e um reconhecimento fantásticos. Por isso ele conseguiu ser aprovado no final de 2003, com 500 votos na Câmara dos Deputados, quase por unanimidade. Só continua parado no Senado, nas mãos do César Borges (PFL-BA), por causa da turbulência do mensalão que paralisou o país.
JB - E o que acontece agora?
MA - São 13 anos de luta, atualização e mobilização nacional, a ver navios. O César Borges, inclusive, está propondo uma audiência pública para o seu encaminhamento final, na Comissão de Constituição, Justiça e Meio Ambiente Determinativa. Aí, se tiver alguma alteração, volta para a Câmara dos Deputados. Senão, vai para a sanção do presidente Lula.
JB - O que irá mudar com essa lei?
MM - Ela define e dá um status de proteção para Mata Atlântica muito maior do que está hoje. Por questões de interpretações diferentes, alguns estados ainda não reconhecem o bioma da Mata Atlântica. O Paraná, por exemplo, não reconhece as florestas de araucárias como tal. Precisamos superar, enfim, essa história de moeda de troca e levar para o interesse da sociedade, a proteção dessa que é uma das florestas mais ameaçadas do planeta.
JB - Esta e outras dificuldades acabariam com a nova lei?
MM - Tranqüilamente. Porque ela permite você fazer mais incentivos, vincular isso com a questão da cobrança da água e é mais propositiva do que a APA. É a única lei no Brasil sem a palavra não, uma lei maravilhosa. É o sim para a convivência. Ou seja, nesses longos 13 anos de negociação na Câmara dos Deputados, nós conseguimos trazer o melhor dos mundos. Trata-se de uma lei inédita do ponto de vista da gestão ambiental, que dá um entendimento único tanto para o governo como para a sociedade. Aliás, ela tem a cara da sociedade consciente e das questões hoje emergentes.
JB - Como assim?
MM - Ela está vinculada, por exemplo, com a proteção de água. Se as pessoas não entenderem que proteger a Mata Atlântica, onde vivem 62% da população brasileira, é proteger o que ainda temos também de água, não vão entender mais nada. Nem o que Dom Pedro entendeu lá atrás, em 1800.
JB - O que o imperador entendeu?
MM - Não apenas entendeu, mas recuperou a Floresta da Tijuca, a maior área verde contígua a um ambiente urbano hoje no país, fazendo, pioneiramente, o mesmo que lutamos hoje. Mandou plantar 80 mil árvores, o que foi considerado uma loucura na época.
JB - Como foi essa história?
MM - No final de 1870, o seu primeiro ministro, digamos assim, era o José Bonifácio. E ambos sacaram que o Rio de Janeiro, já naquela época, estava ficando sem água. Isso porque toda a cidade era movida à lenha. Lenha como combustível, lenha para cozinhar, o que explica tanto a devastação do Rio como a Floresta da Tijuca, em particular. Os dois perceberam que, por causa disso, a água que descia da Tijuca e de outras regiões estava diminuindo no mesmo ritmo. Aí eles fizeram uma lei dizendo que não se podia tocar mais na floresta, estaria protegida, e puseram o pessoal para começar a plantar e, assim, recuperá-la. Mais inteligente ainda: plantaram 80 mil árvores de várias espécies, e os pássaros fizeram o resto, espalhando e fazendo misturar as sementes, o que explica a maravilha da flora e fauna que voltaram à exuberância biodiversificada de hoje.
JB - Quer dizer...
MM - Que o turista estrangeiro que sobe a Floresta da Tijuca hoje não sabe que ela foi devastada, mas também teve a mão do homem para refazê-la. O único problema é que, naquela época, menos degradada, a natureza estava a favor do homem, o ajudava. Hoje, não. Arrasada em 93% da sua área original, a natureza da Mata Atlântica não está mais a favor. É ela que precisa ser ajudada. Essa ajuda se chama sabedoria, mobilização e participação da sociedade.
(Jornal do Brasil, 03/09)