Mais de 40% da energia consumida nos lares brasileiros vêm da madeira e do carvão
2005-09-05
A madeira estalando no fogão a lenha virou rotina na casa da empregada doméstica Vangéria Aparecida Corrêa, em Queimados, na Baixada Fluminense. Viúva, mãe de dois adolescentes, há um ano e meio ela encontrou uma forma para esticar o salário de R$ 280: o fogão a gás foi aposentado, e a comida e a água para o banho são esquentadas no calor da lenha, o que significa uma economia de R$ 33 por mês (preço do botijão), mais de 10% do salário.
— Não sobra para o gás, e a lenha sai de graça. Com o dinheiro, compro remédios para a minha mãe, roupas e livros para os meus filhos. Meu pai pega a lenha numa mata perto de casa. Só uso o fogão a gás quando chove e a lenha fica molhada.
Usar a lenha em substituição ao gás de cozinha é mais comum do que parece. Em pleno terceiro milênio, as fontes alternativas de energia representam mais de 40% do consumo dos lares brasileiros. A principal causa é o alto custo da eletricidade e do botijão de gás.
Dados do Boletim Energético Nacional (BEN) de 2004, publicados pelo Ministério de Minas e Energia, mostram que a lenha tem a maior participação no consumo total de energia residencial no Brasil, 37,7%, na maioria das vezes como complemento ao gás de cozinha. Já o carvão vegetal é usado por 2,4% dos lares.
O querosene que alimenta lamparinas representa apenas 0,1% do consumo residencial de energia. O percentual já foi de 0,6% em 1996. Nos anos que refletem os impactos do racionamento, em 2001 e 2002, o consumo chegou a 0,3%.
Botijão aumentou 622% em dez anos
Enquanto o custo desses combustíveis é praticamente zero (caso da lenha) ou muito baixo, as fontes modernas vêm registrando fortes reajustes ao longo dos últimos dez anos. De janeiro de 1995 a julho de 2005, a inflação medida pelo IPCA ficou acumulada em 144,07%. No mesmo período, o botijão de gás teve uma alta de 622,82% e a energia elétrica, de 389,74%. Os registros do governo mostram que o GLP representa 27,3% da energia consumida nos lares brasileiros e a eletricidade, 31,6%.
Especialmente no caso da lenha, Adriano Pires, consultor do Centro Brasileiro de Infra-estrutura (CBIE), aponta três fatores que motivaram a troca: o empobrecimento da população, o aumento do peso dos impostos no preço do botijão e a rigidez do Vale-gás, distribuído pelo governo para a população de baixa renda e que não é reajustado desde sua criação. Com o orçamento apertado, a população encontrou formas alternativas de cozinhar e ter luz em casa.
Esta substituição não necessariamente deve ser associada à pobreza, na opinião do governo. O Ministério do Meio Ambiente entende que o uso da lenha como fonte de energia pode representar um atraso apenas se ela for explorada de forma indiscriminada. Se o uso for planejado, será uma fonte importante para países em desenvolvimento, segundo ambientalistas, gerando riqueza e renda.
— Temos que eliminar a idéia de que a lenha é sinal de pobreza. O uso é uma questão de oportunidade. EUA, Finlândia e Suécia usam a lenha para aquecimento - diz o diretor de Florestas do Ministério, Tácio Azevedo.
A classe média, por exemplo, descobriu a madeira e o carvão vegetal como combustíveis. Moradora de Sobradinho, a 30 km de Brasília, a estudante de Letras Kelcy Mara Filgueira, 35 anos, mãe de quatro filhos, usa o fogão a lenha nos fins de semana para cozinhar à beira da piscina. São utilizados no país 300 milhões de metros cúbicos de madeira por ano. Metade vira lenha para consumo residencial, de olarias e padarias. Os outros 150 milhões são consumidos pelas indústrias, principalmente na secagem de grãos.
O consumo da lenha, por ser um recurso renovável e que gera emprego e renda nas localidades, deveria inclusive aumentar, entende Azevedo. Ele conta que, se em uma pequena propriedade for plantado um quarto de hectare de madeira, produz-se lenha suficiente para o consumo de uma família:
— O interessante da lenha é que os gastos com energia, que normalmente são altos, podem ser apropriados localmente. É um combustível produzido na própria região.
O consumo de lenha no Brasil ainda é muito baixo se comparado ao de outros países em desenvolvimento: cerca de 1 a 1,5 metro cúbico por habitante/ano. O consumo na Tailândia, por exemplo, é de 8 a 9 metros cúbicos habitante/ano, por exemplo.
A região de maior consumo da lenha, cerca de 30%, é o Nordeste. No Centro-Oeste, o produto é usado para a secagem de grãos. No Norte, a lenha é usada essencialmente para cozinhar. No Sul, é utilizada para secagem de erva mate, de outros produtos agrícolas e para aquecimento. O governo está trabalhando junto a cem comunidades no Nordeste em planos de manejo. Elas cortam a Caatinga, usam a lenha e replantam a madeira, gerando emprego e renda.
Mas o uso doméstico está longe de ser privilégio de lugares isolados. Todos os dias a dona-de-casa Maria Salete Eduardo, 62 anos, por exemplo, cozinha no fogão a lenha para oito pessoas. E ela mora na Vila Planalto, bairro de Brasília que fica a um quilômetro dos palácios do Planalto e da Alvorada, onde trabalha e reside oficialmente o presidente da República. Valendo-se da brasa, ela consegue economizar, e o botijão de gás dura 20 dias. A lenha é recolhida num carrinho, em obras próximas:
— A comida fica mais gostosa.
A mais de mil quilômetros dali, em Petrópolis, a caseira Maria Cremilda Corrêa também usa o fogão a lenha:
— Eu e minha mãe usávamos dois botijões a cada 40 dias. Já com a lenha o gasto é de R$ 100 para as duas famílias, mas dura cinco meses.
No Nordeste, gás vira artigo de luxo e sertanejo recorre a lenha e carvão
Cada vez mais caro - o botijão chega a R$ 37 na área rural do Nordeste - o gás liquefeito de petróleo (GLP) virou artigo de luxo no sertão. O número de pessoas residentes em sítios e vilarejos que recorrem à lenha e ao carvão aumenta a cada dia, confirmando a pesquisa baseada no Balanço Energético do governo, segundo a qual o consumo doméstico de lenha vem crescendo nos últimos cinco anos. Há até os que adaptaram o fogão a gás para a queima de carvão, substituindo queimadores tradicionais por rústicos fogareiros.
Em três municípios visitados pelo GLOBO, a explicação foi a mesma: falta dinheiro para comprar gás. Alguns lavradores têm fogão industrializado, mas o reservam para situações como o preparo de chá, de madrugada, quando alguém está doente.
É o caso da agricultora Maria Gomes Porto, 60 anos, residente no Sítio Coqueiro, município de Arcoverde, a 260 quilômetros de Recife. Ela tem três fogões: o de tijolo queima lenha; outro, presente do marido, utiliza carvão; e o terceiro, a gás, foi comprado a prestação e é usado apenas em emergências.
— O gás está muito caro, ninguém pode comprar. Aqui é assim: quando o mato está seco, a gente usa lenha colhida no sítio, que não custa nada. Em dia de chuva, usamos o carvão, porque a madeira molhada não faz fogo. O gás fica só para quando tem doente na família - afirma Maria, viúva há cinco meses.
Saco de carvão custa um quinto do preço do botijão
As filhas de Maria, casadas, adotam o mesmo sistema:
— Fogão a gás é luxo de rico. O botijão daqui está com cinco meses e deve completar seis - prevê Lucreilda da Silva Porto, 42 anos, filha de Maria.
Se um botijão custa em média R$ 35, um saco de carvão não sai por mais de R$ 7. Dependendo do tamanho da família, pode durar mais de quinze dias, afirma Expedito Gomes de Almeida, presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Arcoverde. Ele lembra que os pequenos agricultores vivem da lavoura de subsistência, e o que colhem nem dá para vender na feira.
Que o diga Jamildo Luís da Silva, residente no Sítio Malhada da Pedra, localizado a 196 quilômetros da capital. Pequeno agricultor, na última quinta-feira, conduzia uma carroça pela BR 232, com um carregamento de lenha verde.
Na família de Claudinélia Conceição Silva, de 25 anos, residente no Sítio Fortaleza, em São Benedito do Sul, o gás só é usado quando chove e a madeira fica molhada. O engenheiro florestal Paulo Santos, do Ibama, informa que a lenha é a segunda fonte de energia no Nordeste, perdendo apenas para a eletricidade.
Reciclagem começa na cozinha
A dificuldade financeira para aquisição de um botijão de gás gerou um novo tipo de negócio nesta cidade sertaneja, localizada a 260 quilômetros da capital pernambucana: a reciclagem e venda de fogões que já utilizaram o combustível, mas foram descartados por seus donos e artesanalmente adaptados para queimar carvão. Eles são encontrados nas feiras e em mercados populares como o Centro Comercial Regional de Arcoverde (Cecore), onde a demanda só faz aumentar.
No fim de semana passado, a aposentada Celeste Pereira da Silva estava à procura do rústico equipamento na feira do município:
— Este é mais econômico. Um saco de carvão dura muito e, quando acaba, a gente já esqueceu o dia que comprou - afirma.
Segundo o feirante Djalma Leite Pires, de 58 anos, 43 de comércio, os fogões a gás reciclados para o carvão têm muita saída.
— Todo mundo que compra diz que é para economizar o dinheiro do gás - relata.
Para o serralheiro Charles Freire de Souza, de 27 anos, há males que vêm para o bem: com o alto preço do gás, ele vende entre dez e 15 fogões reciclados por mês.
— Compro a unidade por R$ 5, tiro os queimadores e faço os fogareiros usando a lataria de geladeiras velhas. O forno vira aparador de cinzas- conta Charles, que fornece o fogão a R$ 12 para ser revendido na feira por R$ 20.
— A procura não pára de aumentar. Eu só não faço mais porque está faltando fogão velho para comprar - comenta Charles. (O Globo, 04/09)