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2005-08-10
Com bases espalhadas por sete estados, o Projeto Tamar ajudou cerca de 7 milhões de tartarugas marinhas a chegarem sãs e salvas ao mar. O coordendor das atividades em Pernambuco e Rio Grande do Norte, Cláudio Bellini, conta que o Tamar é fruto de uma viagem de estudantes, na década de 70, ao litoral nordestino. O projeto hoje é uma marca internacionalmente reconhecida, emprega mil pessoas e só em Fernando de Noronha movimenta dois milhões de reais por ano com venda de produtos que levam seu nome. Mas o pessoal que está à frente deste programa não se dá por satisfeito. Apesar de contar com o patrocínio da Petrobras e com o apoio logístico do Ibama, a turma quer ganhar auto-suficiência para garantir que o Tamar sobreviverá tempo suficiente para ver as espécies que protege sair da listas de animais ameaçados de extinção. A seguir, a primeira parte da conversa que Bellini teve na redação de O Eco, onde passou cerca de 3 horas.

Como o Projeto Tamar começou?

Belini: Começou com uma foto de tartarugas que rodou o curso de oceanografia da FURG, a Fundação Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no fim da década de 70. Até então não tinha relato de ocorrência de reprodução de tartaruga marinhas no Brasil.

Nem na Amazônia?

Belini: Não se sabia que tinha desova de tartarugas e nem a presença de peixe-boi no Brasil, que foram os nossos dois primeiros projetos.

Mas e as populações ribeirinhas?

Belini : A cultura tradicional sabia, quem não sabia era a cultura científica, as universidades. A foto foi tirada pelo Guy Marcovaldi e pelo José Catuêtê de Albuquerque, o Catu, durante uma viagem ao Atol das Rocas. Eles eram estudantes do curso de oceanografia e ficaram impressionados quando viram pescadores matando tartarugas. Registraram tudo e descobriram que as tartarugas desovavam ali.

Como eles foram parar no Atol das Rocas?

Belini: Esta história é curiosa. Em 1976, eles saíram de carro do Rio Grande do Sul com o objetivo de ir até Fernando de Noronha. Em Salvador eles fizeram amizade com um casal na praia e os convidaram para comer um peixe que eles tinham acabado de pescar. O casal ficou super contente e quando eles disseram que queriam tentar ir a Noronha, o cara falou que era comandante da aeronáutica e que poderia ajudá-los a chegar na ilha. Resultado: eles pegaram carona em um avião militar. No caminho sobrevoaram Rocas, que eles nem sabiam que existia: - Pô, o que é isso? Que maravilha, um atol no meio do oceano! O que é isso? É o Atol das Rocas. Aí eles foram para Noronha, mas programaram uma ida para Rocas no ano seguinte.

E como é que as fotos desencadearam o Tamar?

Belini: As fotos foram parar na mão do Renato Petry Leal, diretor da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul que pouco tempo depois assumiu a Divisão de Proteção à Fauna Silvestre do Instituto Brasileiro de Florestas, O IBDF. Numa reunião sobre as responsabilidades do Brasil como signatário da CITES, Convenção Internacional de Tráfego de Espécies ameaçadas de extinção, se levantou a necessidade do país desenvolver um projeto na área de conservação. Renato lembrou das fotos e sugeriu o nome do Catuêtê para liderar um projeto de conservação de tartarugas marinhas. O Catu chamou o Guy e eles foram contratados no começo da década de 80 para fazer o levantamento da costa e identificaram as áreas prioritárias para conservação.

Quais eram?

Belini: Era Comboios (ES), onde tem a tartaruga de couro, Praia da Forte (BA), onde tem a tartaruga cabeçuda e a de pente e Pirambu (SE), onde tem a maior concentração de desova de tartaruga verde-oliva. Em Noronha tem a tartaruga verde e de pente, só que em populações muito reduzidas.

No Rio Grande do Sul não tem tartaruga?

Belini: Não, não tem. Na verdade, acho que o processo se desencadeou em função dessa turma do Guy e do Catu terem o hábito do mergulho, uma cultura que é mais do pessoal do Rio de Janeiro. Foi uma coisa de estar na hora certa, no lugar certo. Na Universidade, tendo informações, se tornando profissionais e gostando de mergulhar, encontraram a tartaruga que é uma espécie de símbolo, como as baleias mamíferas, protegida por convenções internacionais.O Brasil teve que tomar uma iniciativa e aí eles foram contratados pra isso. Se fossem burocratas, com certeza não teria dado certo.

Deu muito certo. Belini: Até a gente fica impressionado com o tamanho do Projeto Tamar 25 anos depois. O Tamar é um programa do Ibama mas hoje tem que ser tratado como uma empresa porque a maior parte dos nossos recursos são administrados por uma Fundação de direito privado que tem muitas responsabilidades e como objetivos a integração comunitária e a auto-sustentação. Hoje a gente tem mais de mil funcionários e a maioria é morador das comunidades costeiras onde tem bases do Tamar.

Em tempo integral?

Belini: Eu acho que não em tempo integral porque o trabalho dos pescadores é sazonal. Mas a gente fez um levantamento recente de pessoas que estão diretamente envolvidas com a atividade da tartaruga e deu mil cento e poucas. Isso inclui, por exemplo, as 30 mulheres da confecção no Espírito Santo que fazem as camisetas do Tamar. É uma cooperativa de trabalho, elas não são contratadas pela fundação, mas o Tamar é a instituição mantenedora. E os Patrocinadores?

Belini:A Petrobras é a nossa maior patrocinadora.

E quem mais? Belini : O Tamar é um programa do Ibama. Eu sou funcionário do Ibama e o Instituto paga o salário das vinte pessoas que ocupam as principais funções dentro do Tamar.Isso nos dá um alívio e uma certa estabilidade.

Mas tem uma independência do Ibama.

Belini: O Ibama é o responsável pela política de conservação brasileira, inclusive das tartarugas marinhas. A Fundação Pro Tamar foi criada porque tem como objetivo gerar empregos que permitam a sustentabilidade da conservação da tartaruga no Brasil e o Ibama não pode receber o dinheiro gerado por essas atividades. Essa parte social também foi um dos pilares do projeto. A gente contratou os pescadores dos lugares onde havia desova e que costumavam comer as tartarugas para nos ajudar. Eles nos ensinavam onde aconteciam as desovas e como achar os ninhos. Aos poucos se criaram laços de amizades e a possibilidade de convencê-los a parar de comer tartarugas. Até porque é proibido e a gente está lá para cumprir a lei. Ou seja, a gente tirou a proteína deles, mas deu um salário.

E eles pararam?

Belini: Há quase 15 anos a gente praticamente não faz mais transferência de ovos para cercados de incubação porque interfere muito no processo de eclosão. Quando você movimenta o ovo que já está num processo de desenvolvimento embrionário, ele gora. No começo nós éramos obrigados a movimentar todos os ovos porque senão eles eram comidos. Hoje já não existe mais esse problema, mas quando aparece uma tartaruga morta, os pescadores ficam loucos. Brigam para ver quem pega a cauda, que seria afrodisíaca. Quais são os predadores naturais da tartaruga?

Belini: São os grandes predadores de topo de cadeia, como tubarão. Mas o pior inimigo delas é a pesca comercial.Elas não são o alvo dos pescadores, mas ficam presas nas linhas quilométricas usadas para pescar atum, por exemplo. Esse problema levou o Tamar a sair da praia e ir trabalhar no mar.

Como é que é isso? Belini:As tartarugas nascem numa praia e são levadas pelas correntes. Elas estabelecem áreas de alimentação, crescem, se tornam adultas e voltam pra se reproduzir nas áreas em que nasceram. Elas estão, portanto, espalhadas por aí. Proteger a tartaruga apenas na praia não garante a conservação da espécie.

Como que vocês fazem para protegê-las no mar?

Belini : Fazemos estudos genéticos pra comparar as diferentes populações e onde tem problema de captura acidental a gente toma medidas que promovam a redução. Por exemplo, mudança nos tipos de anzol e de isca. Existe uma lula artificial que atrai tanto albatroz quanto tartaruga. Estamos fazendo testes de tingimento nas lulas para que esses animais não consigam vê-las. O projeto Tamar e Projeto Albatroz têm uma convergência na proteção desses animais no sul do Brasil muito importante.

E a conscientização?

Belini:Por sorte, as áreas onde têm tartaruga, também têm turistas. No caso de Fernando de Noronha, as pessoas podem acompanhar as nossas atividades e a gente tem um centro de visitantes com um pequeno museu e um anfiteatro. Lá acontecem palestras super legais, onde a gente mostra como é o nosso trabalho. As pessoas adoram.

Mas não tem exemplar vivo de tartaruga.

Belini:A gente nunca quis construir aquários ou fazer culturas artificiais. Para ver tartaruga tem que se aventurar no mar, afinal é um parque nacional marinho. No período de desova tem atividade para os turistas. Se eles quiserem, podem ir à praia à noite com uma de nossas equipes para acompanhar a desova. Mas o legal é mergulhar, é muito comum encontrar tartarugas marcadas pelo projeto. Eventualmente aparece uma na África.

Qual foi o lugar mais longe que já apareceu tartaruga?

Belini: Taisi e eu, minha ex-mulher, marcamos uma em Noronha que apareceu na Baía de Corisco, no Gabão. Era uma tartaruga de pente que tinha ido desovar por lá. Elas nascem na África e as correntes as trazem em direção ao Brasil, é a corrente do descobrimento. O mais engraçado é que não tem padrão. No começo do ano foram colocados transmissores por satélite em 15 fêmeas na Praia do Forte BA. Duas foram parar em Belém, uma no Rio Grande do Norte, outra no Ceará, duas em Abrolhos. Curiosamente elas não ultrapassaram o rio Amazonas.

E o que vocês sabem do comportamento delas?

Belini: A gente sabe que em Noronha tem uma espécie de tartaruga que tem entre 20 a 30 centímetros. A partir desse tamanho, que é um tamanho que a gente chama de sub-adulto, elas vão para outro lugar. Elas não nascem lá. Vêm nessas correntes e vivem por ali um período. Ou seja, a que nasce em Noronha não fica no arquipélago e a que fica é estrangeira. É uma estratégia de conservação, todas as gerações não ficam juntas no mesmo lugar. O tsunami, por exemplo, detonou populações de tartaruga. Porque quando a praia inunda, os ovos morrem. Isso acontece muito em Noronha quando chove muito.

Nesses 25 anos do Tamar, vocês salvaram quantos filhotes?

Belini: Olha, com essa última temporada, acho que uns sete milhões. Em Noronha , onde temos a menor população de tartarugas, a gente bateu nosso recorde. Neste ano, 17 fêmeas procuraram a ilha para desovar.

E Trindade?

Belini: Em Trindade tem o posto oceanográfico da Marinha que é considerado também uma base do Tamar. A ilha é a principal área reprodutiva do Brasil, mas só reproduz a tartaruga verde. Estima-se que cerca de mil e cem fêmeas procurem Trindade todos os anos. E a taxa de mortalidade é alta ?

Belini: Duas estimativas indicaram que 10% a 15% morrem no caminho para a água. Um dos motivos é que em Trindade existem milhões de caranguejos. No fim da tarde, você pisa em caranguejo de tanto que tem. Mas as populações de tartaruga também se auto-regulam. Onde tem muita desova, a fêmea que vem no dia posterior às vezes detona os ovos da mãe que veio colocar no dia anterior. Não é proposital.

Tem praia onde as tartarugas pararam de desovar?

Belini: Em Fernando de Noronha há relatos de que na praia do Praia do Porto de Sto Antonio tinha muita tartaruga. Uma vez, uma máquina abriu uma greta na areia e foram encontradas 20 desovas muito antigas. Talvez de centenas de anos.

Por que elas teriam desistido dali?

Belini : Ali com certeza o motivo foi a matança. O processo todo de ocupação da ilha se deu do Porto. A praia do Leão é a praia mais distante de toda a ocupação e é a praia que mais tem tartaruga. Por exemplo, em Fernando de Noronha a gente tem um mínimo de três e um máximo de 17 fêmeas por ano. Em Atol das Rocas a gente tem um mínimo de 50 e um máximo de 150 e Trindade tem aproximadamente 1.100 fêmeas. É interessante porque Trindade e Noronha têm uma formação geológica muito parecida. A única explicação para Noronha ter tão pouca tartaruga é o passado de ocupação intensa e predatória.

No Brasil, o problema está resolvido?

Belini: Não, porque as tartarugas se deslocam e não reconhecem fronteiras políticas. É um programa de longo prazo. Eu diria que elas estão muito bem conservadas. E isso é um reconhecimento do nosso trabalho nesses 25 anos.

O projeto sempre se chamou Tamar?

Belini : Já nasceu como Tamar. No começo a gente chamava Projeto Tartarugas Marinhas, mas era muito comprido, difícil de gravar.

O projeto Tamar se tornou uma marca forte.

Belini: A sorte é que as nossas queridas tartarugas, além de nos darem muitas alegrias, estão nas áreas onde as pessoas vão visitar. Então, no começo, elas viam as nossas camisetas e sempre queriam saber onde poderiam comprar. As primeiras foram confeccionadas por nós mesmos e virou um grande negócio.

E a Aqualang?

Belini: A Aqualang nos ajudou muito. A parceria foi fechada há uns 15 anos e como ela desenvolvia produtos muitos bons, alavancou a nossa imagem. Mas a relação sempre foi comercial, ela nunca foi patrocinadora, e chegou um momento em que a gente não conseguia chegar a um denominador comum sobre a divisão dos lucros. Decidimos fazer as camisas por conta própria e envolver a comunidade no processo. No ano passado a confecção do Espírito Santo bateu o recorde, produziu cento e dez mil peças.

Dá quanto?

Belini: Se a gente somar tudo, vai dar 30% a 40% do nosso orçamento, o que alimenta o nosso Programa de Auto-sustentação.

Que seria a venda de roupas e coisas assim?

Belini: É, centro de visitantes e bilheteria. Fernando de Noronha, Praia do Forte, Espírito Santo, Sauípe e Ubatuba são os maiores pontos de comercialização.

Quanto dá Noronha, só Noronha?

Belini: Eu nem sei se é conveniente dizer, se alguém lê vai falar - Não vou mais mandar dinheiro pra vocês. Em valores brutos a Regional movimenta cerca de dois milhões de reais, pode parecer muito mais não é pois, somente a nossa folha de pagamento custa R$ 40 mil reais por mês. São 40 pessoas diretamente contratadas, encargos, etc. O restante é utilizado para comprar camisetas e fazê-las chegar até a ilha. E o lucro liquido aplicado nas atividades de conservação e pesquisa, manutenção, educação ambiental, pequenos investimentos, etc. Como uma das nossas funções é a inserção social procuramos cumprir bem este papel. Por exemplo, todos os funcionários do Tamar de Fernando de Noronha têm plano de saúde, pago pela Pró Tamar. Não sei ao certo, mas acho que poucos empregadores proporcionam este tipo de benefício aos seus empregados. E ficamos muito felizes por isso.

A administração dessa parte comercial ocupa muito tempo?

Belini: No começo, tudo era diferente, tinha uma outra proporção, a gente fazia um pouco de tudo. Ás vezes eu ia para loja vender camiseta. Hoje não, hoje a gente tem que ter um controle de estoque que tem que estar integrado com a venda das lojas. Um dia desse o meu administrador quase pediu demissão tamanha a pressão. O problema é que a nossa política é independência ou morte. Se a gente não for auto-sustentável, quem garante que amanhã a Petrobrás não será privatizada e a nova direção não vai querer mais nos patrocinar?

Você é gaúcho e está passando a vida numa ilha do Nordeste?

Belini: As coisas vão acontecendo e não tem como. A tartaruga virou a nossa vida, a gente faz isso com o maior carinho. Para nós é um hobby, cuidar da tartaruga é uma aventura, uma diversão. Às vezes eu fico, como qualquer pessoa, deprimido, de saco cheio, mas aí eu paro e digo: - Não, para mim isso é uma diversão. (O Eco, 08/08)

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