Terceiro Setor: Financiamento estatal põe em risco a autonomia?
2005-08-09
Doutorando em Sociologia Política na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Rodrigo Rossi Horochovski é autor de estudos sobre organizações da sociedade civil no Brasil. Um deles, publicado no Centro de Estudos da Rits em março, traz uma importante revelação: as organizações não-governamentais têm forte dependência financeira do Estado. Segundo o pesquisador, isso pode trazer riscos para a capacidade crítica e de inovação das ONGs.
De acordo com o levantamento, feito com 189 entidades filiadas à Associação Brasileira de ONGs (Abong), 20% delas dependem consideravelmente de recursos públicos. Isso significa que ao menos 50% de seus recursos vêm do Estado. A dependência é maior nas de atendimento. As ligadas ao meio ambiente e a movimentos sociais são menos dependentes.
Horochovski diz não ter percebido em seus estudos, até agora, perda de capacidade crítica nas instituições, mas afirma que o risco existe mesmo quando a principal fonte de financiamento é a cooperação internacional. A melhor fórmula, segundo ele, seria a auto-sustentabilidade das entidades por meio de contribuições de associados. Mas reconhece: — não há como fazer um trabalho abrangente e eficaz desse modo.
Entrevista
Revista do Terceiro Setor - Seu estudo Associativismo civil e Estado: um estudo sobre organizações não-governamentais e sua dependência de recursos públicos revela uma grande dependência de recursos públicos por parte das ONGs. Por que isso acontece?
Rodrigo Horochovsky - Inicialmente, é preciso ressalvar que o universo estudado é o das ONGs filiadas à Abong. A dependência de recursos públicos de algumas dessas ONGs resulta de diversos fatores. A Constituição de 1988 impôs ao Estado a universalização de serviços sociais, bem como a promoção de direitos de terceira geração (como os relacionados ao meio ambiente, por exemplo), o que trouxe melhorias substanciais para o país. Todavia, com a necessidade de ajuste fiscal e uma transformação em seu papel, os governos, em todos os níveis, não têm recursos materiais e humanos para prestar sozinhos esses serviços. As ONGs, com experiência no trato dessas questões, emergem, então, como aliadas do Estado. Além dos fatores acima, as ONGs enfrentam enormes dificuldades para captar recursos na sociedade e no mercado – no Brasil, a filantropia desinteressada está longe de ser uma realidade e só muito recentemente as empresas estão acordando para a chamada responsabilidade social empresarial.
Rets - Essa dependência financeira afeta ou pode afetar o papel de crítica e inovação das ONGs?
Rodrigo Horochovsky - Isso depende do modo como se estabelece a relação das ONGs com os órgãos governamentais. Uma pesquisadora de São Paulo, Ana Teixeira, estabeleceu uma tipologia de encontros, que assumiriam três formas: pressão, prestação de serviço e participativa. Os primeiros, os encontros pressão, são menos formais e a organização assume uma postura mais crítica, eventualmente colaborando na implementação de políticas que o Estado conduz. O problema aqui é a possibilidade de rompimento, de falta de diálogo.
No segundo, os encontros prestação de serviços, prevalecem relações burocráticas, exigindo-se eficiência, otimização de recursos e qualificação, comprometendo-se a autonomia, implicando enfraquecimento político das organizações. Os riscos neste caso são os de subordinação e de prevalência de uma lógica mercantil, de competição no campo.
No último tipo, os encontros participativos, há um projeto de elaboração conjunta, com maior compromisso do órgão governamental e divisão de responsabilidades. Neste último caso, tem-se uma situação ideal em que a organização pode manter um papel de crítica e inovação e manter parcerias com o Estado.
Rets - O estudo aborda as organizações do campo da Abong. Por que essa escolha?
Rodrigo Horochovsky - Em primeiro lugar, porque o campo da Abong é aparentemente o único que está delimitado e possui indicadores que permitem uma abordagem como a que fiz. Além disso, me interessava ver como se relacionam com o Estado ONGs que a literatura denomina cidadãs – aquelas comprometidas com a promoção da cidadania e da emancipação dos excluídos, compromisso expresso na definição de ONG construída pela Abong – o que muitas vezes implica adotar uma postura crítica em face do Estado e outros poderes. O restante do universo das ONGs é muito vasto e não há uma base de dados organizada sobre ele – até tentei formar uma, a partir de dados da Receita Federal e do Ministério do Trabalho. Entretanto, na medida em que não existe a figura jurídica ONG, a questão é de identidade: é ONG a organização privada sem fins lucrativos com objetivos sociais que assim se autodenominar. Assim, é impossível recortar com precisão o universo das ONGs.
Rets - Fora desse espectro (ONGs filiadas à Abong) a situação se repete?
Rodrigo Horochovsky - É difícil de saber com certeza, pelas razões que expus antes. Mas há um estudo sobre o associativismo global, que inclui o Brasil, segundo o qual a maior parte das organizações do terceiro setor não recebe recursos do governo [o estudo está disponível em: http://www.jhu.edu/~ccss/pubs/pdf/globalciv.pdf. Veja principalmente o gráfico da página 32]. O problema é que é não há como saber quais dessas organizações podem ser consideradas ONGs.
Rets - Essa dependência é um fenômeno novo ou sempre existiu?
Rodrigo Horochovsky - Sempre houve relações entre o Estado e organizações da sociedade civil. Entretanto isso era mais comum no campo da assistência social e envolvia, principalmente, entidades filantrópicas e de caridade.
É a partir dos anos 80, com a redemocratização, que organizações voltadas a temas relacionados ao empoderamento de parcelas marginalizadas e promoção de interesses difusos – tais como gênero, crianças e adolescentes, saúde, minorias étnicas, sexualidade, meio ambiente, trabalho e geração de renda, entre outros – passaram a estabelecer parcerias com o Estado que, às vezes, resultaram nessa dependência de recursos financeiros.
Rets - O estudo revela que algumas áreas são menos dependentes que outras de recursos públicos. As menos beneficiadas recebem mais recursos da cooperação internacional. Essa dependência também não pode ser problemática?
Rodrigo Horochovsky - Depende de como se dá o encontro entre a ONG e a agência de cooperação. Se o repasse não implicar subordinação automática e irrestrita, não vejo mal algum. Pelo contrário, há inúmeras experiências bem-sucedidas executadas por ONGs com recursos internacionais. Obviamente, quem financia os projetos tem direito de fazer demandas e controlar o uso dos recursos, enfim, fazer a accountability do processo, monitorando tanto os dispêndios quanto os resultados das ações. O problema surge quando o financiador interfere a ponto de retirar o poder de deliberação, seja das ONGs ou dos beneficiários dos programas financiados.
Rets - Qual seria a melhor forma financeira de manter uma organização não-governamental funcionando?
Rodrigo Horochovsky - Talvez o ideal seria elas serem auto-sustentáveis, que suas receitas, enfim, viessem da venda de bens e serviços e contribuições de associados e fossem suficientes para atender suas demandas. Entretanto não há como fazer um trabalho abrangente e eficaz desse modo. Ademais, não sou contra o Estado repassar recursos às ONGs. Apenas alerto para os riscos de o campo perder autonomia e o poder que tem de apontar as falhas dos governos na formulação e execução das políticas, embora isso não venha ocorrendo no caso das filiadas à Abong.
Rets - A legislação brasileira estimula a captação de recursos com o Estado? Por que não há mais doações de pessoas físicas?
Rodrigo Horochovsky - Não posso responder essa pergunta como um especialista, mas me parece que ao permitir uma série de parcerias (como, por exemplo, as previstas pela Lei das Oscips) que implicam o repasse de recursos do Estado para ONGs, a legislação acaba estimulando, sim, pois é menos custoso e menos incerto obter recursos públicos que privados. Não há incentivos para doações diretas de pessoas físicas a organizações sem fins lucrativos. Sei que há, por exemplo, a possibilidade de abater parte do Imposto de Renda devido se você fizer doações ao Conselho de Direitos das Crianças e Adolescentes, por meio de seu Fundo correspondente, que então decide sobre a alocação dos recursos. Sou contra incentivos que estimulem a doação direta de recursos a ONGs, devido à impossibilidade de controlar o uso desses recursos e os resultados de sua aplicação. Se já é difícil fazê-lo na esfera do Estado, com todos os mecanismos de controle que existem, imagine em um campo não organizado, fragmentado e que admite os mais diversos arranjos organizacionais. Talvez alguns constituíssem ONGs apenas para deixar de recolher tributos.
Rets - O financiamento público pode aumentar? Há dados comparativos de outros países sobre a dependência de organizações em relação ao Estado?
Rodrigo Horochovsky - Atualmente está bastante difícil aumentar o financiamento público, já que as despesas do Estado estão praticamente todas carimbadas, há limites de gastos, como os impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal, e não há folga para fazer novos investimentos. É difícil encontrar estudo comparativo específico sobre ONGs, mas o trabalho que citei anteriormente [disponível em http://www.jhu.edu/~ccss/pubs/pdf/globalciv.pdf] traz alguns dados para o associativismo em geral.
Rets - O financiamento público deve ser estimulado para que novas tecnologias sociais e procedimentos sejam adotados?
Rodrigo Horochovsky - Acredito que sim, pois em diversos casos as ONGs têm uma velocidade de ação e um nível de acesso a grupos sociais que o Estado não tem. Vou citar um exemplo extremo: acho muito difícil um órgão governamental distribuir seringas descartáveis para usuários de drogas, procedimento necessário como política de saúde pública, porém dificultado por evidentes limites legais e pela resistência dos beneficiários.
Rets - O outro lado da questão também existe? Há dependência do Estado em relação às ONGs no momento de aplicação de políticas públicas?
Rodrigo Horochovsky - Sem dúvida. Embora isso seja difícil de ser medido em um nível mais amplo, devido à imprecisão das fronteiras do campo, estudos de caso revelam que sem a presença das ONGs alguns serviços entrariam em colapso ou apresentariam resultados bastante inferiores. Vou dar um exemplo: durante meu mestrado, estudei a Pastoral da Criança, cuja atuação produz uma redução inegável e substancial da mortalidade infantil no Brasil.
Rets - O estudo revela que ONGs ligadas a questões de saúde são mais dependentes de recursos públicos. Por que isso acontece?
Rodrigo Horochovsky - A saúde é um serviço social universal que obrigatoriamente deve ser prestado pelo Estado no Brasil, e os problemas de saúde demandam soluções imediatas. Como os recursos públicos são insuficientes em face da demanda e a burocracia estatal dificulta a prestação ágil de muitos serviços, é menos oneroso e mais eficaz para o poder público repassar recursos para que ONGs prestem alguns serviços. Evidentemente, isso não exime o Estado de traçar as políticas de saúde e oferecer os principais serviços. Além disso, o repasse de recursos às ONGs não significa uma privatização, já que o serviço continua a ser prestado no âmbito da esfera pública.
Rets - As ONGs ligadas a movimentos sociais recebem poucos recursos do Estado. Você levanta a hipótese de que isso acontece por elas produzirem efeitos materiais imediatos. A razão não seria política?
Rodrigo Horochovsky - Tudo é política, mesmo aquilo que parece puramente técnico, na medida em que qualquer aspecto da vida social é marcado pelo poder e por interesses. É evidente que para uma sociedade como a brasileira, cuja maioria da população é conservadora, é mais palatável que ONGs prestadoras de serviços sociais recebam mais recursos públicos do que movimentos sociais, principalmente a parcela destes rotulada como radical. Você deve se lembrar da celeuma que a mídia promoveu em torno do fato de o governo de Goiás e a Prefeitura de Goiânia terem auxiliado financeiramente a marcha do MST a Brasília neste ano. (RETS - Revista do Terceiro Setor, 07/08)