A política de extermínio de nossas florestas
2005-07-20
Se a onda é de pessimismo, melhor surfá-la com o
biólogo John Terborgh, que é doutor na matéria. Ele
dirige a escola de meio ambiente da Duke, que joga no
primeiro time das universidades americanas. Dedicou
todas as décadas de sua longa carreira a conservar
florestas tropicais, sabendo desde menino que esse é
um caminho seguro para sofrer muita derrota na vida.
Passou a infância entre cobras, jabotis, lagartos,
pássaros, mamíferos e seja-lá-que-for num bosque da
Virgínia que as motoniveladoras arrancaram do mapa nos
Estados Unidos logo depois da Segunda Guerra Mundial.
Agora defende as selvas transbordantes de vida que
estuda nos trópicos de um destino que considera
inevitável. Presume-se que elas acabem em meados deste
século. E Terborgh explica por que em Requiem for
Nature, livro que nunca saiu em português, talvez por
dizer o que nenhum povo gosta de ouvir sobre a
pilhagem de seu patrimônio.
Ele está no Brasil. Veio para estrelar um congresso
internacional sobre Biologia da Conservação em
Brasília. Aproveitou a viagem para visitar com a
mulher, Lisa, parques nacionais na Mata Atlântica e no
Pantanal. O casal esteve em Itatiaia, entre o Rio de
Janeiro e São Paulo, fazendo maravilhosas caminhadas
até picos a mais de 1800 metros de altitude e vendo
muitos pássaros, inclusive endêmicos. Mas achou que,
quase 70 anos depois de criado, o primeiro parque
nacional brasileiro é um lugar bonito, mas uma ilha
no meio de uma paisagem deprimente de morros nus,
encostas erodidas e abusos ambientais em larga
escala. E de Itatiaia foi a Mato Grosso, conhecer a
Chapada dos Guimarães.
Achou tudo isso muito divertido. Mas estava a
trabalho. Quatro anos atrás, quando passou por aqui em
outro congresso, ele lançou durante um churrasco em
Campo Grande a Parks Watch, uma rede internacional de
voluntários para vigiar as unidades de conservação nos
países onde as autoridades acham que isso é bobagem. A
receita da Parks Watch estava desde 1999 em Requiem
for Nature. No livro, descreve-a como uma Nature
Corps, semelhante ao Peace Corps. Desta vez, ele saiu
da Chapada dos Guimarães convencido de que o Brasil
fez, num lugar excepcionalmente rico, um parque
sovina. E previu que a Parks Watch tem um grande
trabalho a fazer por lá.
Os brasileiros evidentemente mal ouviram falar dessas
coisas, porque estavam ocupados demais com a crise
política. E com isso perderam uma grande chance de
mudar de assunto sem trocar de tema. Perto de
Terborgh, Roberto Jefferson é recreio. O biólogo, como
o deputado, também fala de corrupção sistêmica. Mas
Terborgh, ao contrário de Jefferson, especializou-se
no pior tipo de rapina, aquele que rouba ao mesmo
tempo futuro e passado, entregando o presente a quem
pegar primeiro. É uma praga nativa dos países onde o
atraso político, a desigualdade social e a inépcia
administrativa atacam juntos seu próprio território
como se fosse inimigo.
Como os maiores tesouros biológicos do planeta estão
hoje concentrados nas mãos de povos que não têm
recursos para preservá-los, Terborgh colheu, numa
vida inteira de andanças em busca na natureza
intocada, motivos de sobra para se sentir em pânico
diante de parques inadequados, sociedades instáveis e
instituições cambaleantes. A longo prazo, devastar
recursos naturais em nome da pobreza só produz mais
pobreza. Mas a curto prazo gera ótimos negócios a quem
investe nessa forma de assalto. E em países pobres
todos têm pressa.
Fora uma ou outra relíquia natural guardada naqueles
raros parques que seus responsáveis levam a sério –
como acontece na Costa Rica e no Nepal, por exemplo –
as florestas dos trópicos tendem a sumir
definitivamente dentro de 30 a 50 anos, segundo
Terborgh. Elas são especialmente sensíveis à desordem
política. E ficam em países onde em geral a bagunça é
endêmica. Terborgh viu muita mata virar pó. Cada uma
delas podia ser um exemplo único e inimitável da
profusão de vida selvagem que os ecologistas chamam de
biodiversidade. Mas a história de seu desaparecimento
é quase sempre a mesma. Elas acabam por falta de lei,
polícia e governo.
Para não encarar o problema de frente, os políticos
recorrem cada vez mais a paliativos ambientais que,
para Terborgh, não passam de conversa mole para
ambientalista dormir. Desenvolvimento sustentável em
floresta tropical, a seu ver, é puro disparate
porque, se for mesmo desenvolvimento, mais cedo ou
mais tarde tornará a floresta insustentável, porque
ela só se salva se parar no tempo. Entregar unidades
de conservação à tutela de populações tradicionais ou
indígenas resulta, na prática, em licença informal
para a caça predatória. — Uma cultura que caçava com
arcos e flechas no passado certamente caçará com armas
de fogo assim que tiver chance-, lembra Terborgh.
Manejo de madeireira certificada é uma tradicional
receita de fazer florestas que morrem de pé,
desertadas pela fauna e até pela flora original sob a
copa das árvores que sobraram. — O manejo de florestas
naturais tem uma longa história nos trópicos-, conta
Terborgh. — Os ingleses, os franceses e os holandeses
todos tiveram vigorosos programas florestais em seus
impérios ultramarinos-, sem que se possa extrair deles
um só exemplo de sucesso incontroverso. Nesses
ambientes onde centenas de espécies de pouco valor
envolvem as árvores de maior interesse econômico e o
crescimento das mudas valiosas, mais lento do que se
presume, até pelo excesso de sombra, compromete a
eficiência, o manejo florestal é um investimento de
muitas décadas. Isso exige estabilidade. Trabalha-se
em geral com horizontes de quase um século. E
estabilidade é coisa que os países tropicais
geralmente não têm.
Sobrou a reserva extrativista, uma invenção política
de burocratas americanos que na década de 70
enxertaram no programa dos bancos de desenvolvimento
essa patente ambiental do governo Lula. Produto
híbrido de assistência social com preservação da
natureza, a fórmula reserva extrativista serviu de
escudo para que agências como a USAID continuassem
fazendo o que faziam há décadas. Ou seja, programas
de desenvolvimento rural em países pobres. Para as
florestas, a mudança de nome só criou pressões
populacionais que acabam inevitavelmente debitadas aos
recursos dos parques onde essas experiências foram
adotadas.
Terborgh reconhece que o populismo ecológico tem,
sobre o discurso ambiental, a vantagem de ser muito
mais simpático. Pena é que funcione tão mal, em
lugares cuja aparente exuberância não é força, mas
fraqueza. Uma fêmea de onça com filhote precisa de 20
quilômetros quadrados só para ela. E dá para contar
nos dedos os parques com tamanho suficiente para
oferecer esse espaço todo a um bicho. — E daí? A onça não é a floresta-, diria o leigo. É sim, responde
Terborgh. Qualquer mata despovoada por grandes
predadores está agonizando. Mesmo seus espasmos de
aparente vitalidade são sintomas de sua decadência
senil. A proliferação de quatís, que é típica desses
casos, pode até encantar turistas. Mas é o aviso de
que, entregues ao quatís, os ovos são comidos nos
ninhos com uma velocidade que a reprodução de muitos
pássaros não alcança. Sem eles, lá se vão as plantas
que dependiam dessas espécies para propagar sementes.
E assim por diante, até o fim. (O ECO, 17/07)