Artigo: Resolução Conama, APPs e a gilete na mão do Macaco
2005-07-11
Carlos Bocuhy*
A reunião ocorrida em São Paulo, a título de Reunião Pública de
Esclarecimentos, conduzida pelo Ministério do Meio Ambiente, demonstrou toda
fragilidade das justificativas da resolução CONAMA que pretende regulamentar
intervenções em Áreas de Preservação Permanente (APPs). O encaminhamento
proposto foi pelo adiamento da votação no CONAMA e a realização de
Audiências Públicas em cinco macro-regiões do Brasil, com o objetivo de
colher subsídios junto à sociedade, em especial junto à comunidade
científica, que sequer foi ouvida durante o processo de elaboração da
proposta. Entre as maiores lacunas existentes, chamo a atenção para a
desconsideração de mínimas condições que seriam essenciais para
implementação da resolução.
Para que o poder público das esferas de competência federal, estadual ou
municipal possam cumprir efetivamente as suas atribuições em relação à
proteção do meio ambiente fazendo valer os princípios Constitucionais e da
Política Nacional do Meio Ambiente, é indispensável que ele esteja
capacitado e estruturado para exercer esta tarefa.
A manutenção de um meio ambiente ecologicamente equilibrado não é uma missão
que pode ser sustentada por meio de achismos ao sabor da conveniência de
políticos, de oportunistas ou de interesses econômicos imediatos.
Os efeitos de qualquer diretriz, meta ou estratégia normativa relativa a
questões ambientais devem ser necessariamente avaliados em longo prazo, com
base em fundamentação e análise consistente, porque o meio ambiente e os
processos ecológicos essenciais devem ser mantidos para as presentes e
futuras gerações, envolvendo escalas de tempo muito maiores do que a do
ciclo de vida de um ser humano, ou de um governo. Se não houver
responsabilidade, um altíssimo preço deverá ser pago pelos nossos
descendentes.
Esta responsabilidade precisa ser assumida, não de forma demagógica para
iludir ou enganar a sociedade, mas de modo a permitir que a mesma caminhe de
fato em direção a um desenvolvimento comprometido com o conceito de
sustentabilidade, sobre o qual muito se fala, mas pouco se faz. Realizar
esta tarefa depende de condições efetivas para que os órgãos públicos
competentes que integram o Sistema Nacional de Meio Ambiente possam executar
avaliações ambientais procedentes em um contexto de estratégias articuladas
e consistentes de planejamento e gestão do território.
Infelizmente, pouco ou quase nada disso ocorre na prática. As avaliações
ambientais pontuais de projetos e intervenções vêm ocorrendo de modo
generalizado, com sérias insuficiências, incorporando falta de fundamentação
e até irregularidades do ponto de vista legal, salvo raríssimas exceções. A
abordagem de fragmentar projetos em etapas, induzindo a avaliações pontuais
e sub-estimativas de impactos vêm sendo amplamente empreendida tendo como
meta principal burlar o sistema de licenciamento e as restrições legais. Os
instrumentos de planejamento municipal (Planos Diretores) ou regional
(Zoneamento Ecológico-Econômico - ZEE) estes estão ausentes na maioria do
território brasileiro. Quando são elaborados, o que têm sido raro, estes
tendem a ter uma discussão concentrada no atendimento de demandas
político-partidárias, constatando-se que as audiências públicas acabam sendo
convertidas em vergonhosas propagandas governamentais. Depois de aprovadas,
as diretrizes dos ZEE’s não vêm acompanhadas dos instrumentos de
articulação, execução e gestão necessários para as suas implantações
efetivas. Elas acabam sendo adotadas por quem quer, na hora que lhes convém.
De resto, passa a ser mais um jogo de mapas e textos estáticos e
desatualizados, mofando nas gavetas das repartições públicas.
As únicas estratégias dinâmicas são aquelas voltadas para manter as
aparências em meio ao quadro de descontrole da gestão ambiental. Um exemplo
claro é a emissão de licenças ambientais condicionadas a dezenas de
exigências que não são cumpridas e nem sequer fiscalizadas, prática muito
comum junto à Secretaria de Estado do Meio Ambiente de São Paulo, nas
decisões tomadas pelo CONSEMA.
A retórica de transversalidade da questão ambiental em nível dos governos se
revelou de modo inverso, pois assistimos à tomada de decisões que nos
assolam como um rolo compressor, sem que seja dado o devido valor à questão
ambiental. Primeiro, os governos decidem tudo, fazem pactos com corporações
econômicas, licitações, arrumam verbas e fecham contratos. Depois,
dirigem-se ao cartório para tirar a licença ambiental. Neste cenário
perverso, não é levado em conta o grave fato que os órgãos do SISNAMA
(Sistema Nacional do Meio Ambiente) vivem uma deterioração progressiva de
condições de atendimento para suas demandas. Faltam conhecimentos,
planejamentos, profissionais capacitados e em número adequado, equipamentos,
informações, isenção nas análises, estrutura, materiais e muitos outros
recursos. Isso tudo pode ser demonstrado e comprovado. Bastaria visitar
estes órgãos, em todo o país, e conversar com os seus agentes públicos
(evidentemente com o compromisso de estes não viessem a ser perseguidos,
intimidados ou demitidos) e verificar o enorme volume de análises aos quais
estão submetidos, as áreas sob as quais estes têm responsabilidade de atuar
em atividades de licenciamento, controle e fiscalização ambiental. Ao mesmo
tempo são submetidos à pressão e à precariedade de condições para suporte e
vazão a este trabalho.
Melhor ainda seria que os poderes públicos, nas diferentes esferas de
competência, abrissem a caixa preta e revelassem, por uma simples questão
de dignidade, e com a devida riqueza de detalhes, uma radiografia
documentada sobre como está a situação em cada unidade dos órgãos ambientais
brasileiros, quais são as suas responsabilidades e que condições existem e
são necessárias para cumpri-las. A situação que a imprensa noticiou sobre o
IBAMA do Mato Grosso foi apenas um ligeiro exemplo. O iceberg submerso na
realidade do SISNAMA surpreenderia pela enormidade de fatos graves e pela
insuficiência operacional, tendo por conseqüência um contingente de
degradações ambientais que a imprensa não noticia – e a sociedade brasileira
não dimensiona.
Revelar a amplitude do iceberg seria a transparência desejável. Isso, sim,
seria democracia para a área do meio ambiente, tornando mais evidente que a
gestão ambiental não pode ser feita só de textos legais, mas também de
efetivas condições para colocá-los em prática de modo procedente e
responsável. É preciso chamar a atenção para esta ferida aberta e expor à
sociedade que os órgãos ambientais vêm se tornando cartórios a mercê dos
interesses de governos e grupos econômicos. Assim, a sociedade poderia
avaliar de modo mais consciente as perspectivas para a gestão ambiental e a
viabilidade dos pacotes normativos recentemente discutidos pelo CONAMA, que
representam uma deformação dos instrumentos de proteção ambiental
consolidados no país.
Pois é exatamente neste contexto de precariedade e derrocada dos órgãos
ambientais que o CONAMA, para piorar ainda mais a situação, vêm
estabelecendo uma desfiguração do Código Florestal Brasileiro (Lei 4771/65).
Ao propor uma resolução que pretende regulamentar situações de EXCEÇÃO nas
quais será permitida a supressão de vegetação e realizações de intervenções
em Áreas de Preservação Permanente, o que o CONAMA está fazendo de fato é o
estabelecimento de REGRAS de grande abrangência... que só promovem a
degradação ambiental.
As APP’s são essenciais à manutenção dos recursos hídricos, com seus
diversos usos múltiplos, das nascentes, dos ecossistemas, das paisagens, bem
como para a preservação da biodiversidade, dos fluxos gênicos da flora e
fauna, dos solos, e da estabilidade geológica, sendo extremamente
importantes para o bem-estar das sociedades humanas e para a manutenção e
recuperação da qualidade do meio ambiente.
Exibimos na “reunião pública de esclarecimentos” um vídeo produzido pelo
PROAM – Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental -, com o depoimento de
especialistas como a professora Yara Schaeffer Novelli, o professor José
Pereira de Queirós Neto, o engenheiro Mauro de Moraes Victor, entre outros,
retomando discursos sobre a importância vital das APP’s para a sociedade.
Comparamos também a apropriação das APP’s por atividades degradadoras como a
ocupação ambiciosa do território, a ponto de atingirmos as paredes das
artérias vitais para a manutenção da vida do planeta. Assim, podemos provar
que o problema crucial imposto à sociedade é que a proposta relativa ao
assunto em discussão no CONAMA partiu de premissas profundamente
equivocadas, levando a um texto com conteúdos perigosos.
Com base neste texto, o CONAMA abriu a perspectiva de discussão por meio de
emendas. Ocorre que não há como propor emendas em uma proposta normativa com
este nível de vício, principalmente porque o processo que culminou na sua
elaboração foi viciado por natureza. É fácil comprovar que toda a concepção
da proposta de Resolução foi baseada na flexibilização de intervenções, usos
e ocupações nas Áreas de Preservação Permanente, o que, na prática,
representará uma ocupação predatória com evidentes prejuízos às presentes e
futuras gerações. A proposta que se pretende aprovar no CONAMA em nada
garante a salvaguarda do meio ambiente e de seus processos ecológicos
essenciais, e está abrindo um grande flanco para as atividades de caráter
privado, de modo injustificado e atabalhoado.
Embora os legisladores tenham a obrigação de preservar o patrimônio
ambiental, propuseram, como fruto de discussões inconsistentes e não
representativas em termos de Brasil, um conjunto de diretrizes inoportunas e
equivocadas cuja eficácia é insustentável, especialmente porque as
orientações postas pelo texto de Resolução proposto vão encontrar órgãos
ambientais sem as mínimas condições, sem o devido preparo e sem o devido
discernimento para utilizá-lo de modo procedente. Tal situação se assemelha
ao conhecido risco incorporado ao dito popular de colocar gilete na mão de
macaco, com o agravante das artérias serem as APP’s.
Não há como emendar um texto que estimula loteadores e especuladores
imobiliários a usar Áreas de Preservação Permanente como sistemas de lazer
para aumentar seu lucro a cada empreendimento à custa da redução das funções
ambientais destas áreas. Pode parecer incrível, mas há uma Seção da proposta
de Resolução feita só para eles (Da implantação de Área Verde de Domínio
Público em Zona Urbana). Esta seção é um equívoco por concepção. Não há como
arrumá-la, ou propor emendas.
Do mesmo modo, não há como emendar um texto que abre brechas, ao nível
nacional, para se fazer atividade de exploração mineral em APP’s sem exigir
Estudos de Impacto Ambiental (Seção II), admitindo genericamente o seu
caráter de utilidade pública, coisa que pode não ser cabível em certos
casos. Também não se pode aceitar ou emendar um texto normativo que em uma
simples canetada pretende assumir, em uma norma de cunho ambiental, uma
enorme responsabilidade no sentido de qualificar o ordenamento territorial
de ocupações de baixa renda sempre como uma situação de “interesse social”.
É evidente que estas posturas não estão considerando as múltiplas situações
existentes, a complexidade dos temas, as debilidades dos órgãos ambientais e
a ausência de contrapartidas efetivas dos poderes públicos para garantir que
a implantação destas ações ocorra dentro de contextos sérios de planejamento
ambiental e gestão territorial. Será gilete, mais sangue... e porque não
dizer hemorragias?
Os órgãos ambientais, desestruturados, suscetíveis e falidos, vão receber
uma imensa responsabilidade para a qual não estão preparados. Eles não só
vêm deixando de cumprir suas responsabilidades mais básicas, como vêm
induzindo centenas de decisões sobre intervenções e projetos, que passam a
caracterizar e compor um passivo autorizado, que se agrega a tantos outros
já existentes em território nacional. Nossos órgãos ambientais deveriam
estar capacitados e ter efetivas condições de realizar com seriedade e
fundamento as análises envolvendo, por exemplo, a comprovação da
inexistência de alternativas técnicas e locacionais, diante da proposição
de intervenções no meio ambiente, como pretende o texto de Resolução CONAMA,
garantindo-se qualidade, segurança e credibilidade para a eficácia da
avaliação ambiental, mas isso não ocorre. Não é raro que assuntos como este
tendam, por vezes, a serem abordados e instruídos por meio de uma olhadela
rápida na área em análise, ou apenas com base em relatórios ou relatos de
terceiros (sem sequer se ir ao local), seguida da concordância crônica aos
argumentos dos interessados nos projetos.
No texto base da proposta de Resolução aprovada pelo CONAMA, a questão do
baixo impacto (Seção V) é apresentada por meio de uma lista de atividades
pré-estabelecida; quando este enquadramento depende de muitos fatores que
podem mudar caso a caso. É muita subjetividade colocada à disposição de um
sistema de avaliação e decisão extremamente frágil e precário. Um exemplo da
fragilidade da proposta é a desconsideração que várias intervenções de
baixo impacto em propriedades vizinhas, ou em locais próximos, podem ser
tornar, cumulativamente um grande inconveniente para as funções ambientais
das APP’s (por exemplo: várias pequenas trilhas; construções de rampas de
lançamento de barcos e pequenos ancoradouros; além de pequenas vias de
acesso interno e suas pontes e pontilhões). Difícil será convencer as
pessoas que um vizinho pode ter uma rampa de barco e o outro não pode, e
assim por diante.
Hoje em dia basta um empreendedor ou um prefeito aumentar o volume de voz,
mesmo com afirmações infundadas e distorcidas em documentos unilaterais e
verticais, para que o sistema de licenciamento acate docilmente as
argumentações, correndo-se o risco de que este venha se tornar até sócio
do projeto proposto, como se integrasse uma holding com os interessados.
Para piorar o nível de ameaça ao meio ambiente, o texto da Resolução
proposta indica hipóteses em que as decisões poderão ser tomadas também
pelos órgãos municipais, em que as suscetibilidades são ainda maiores.
Devemos lembrar que esta proposta de Resolução é apenas o primeiro passo dos
lobistas. As novas resoluções sob encomenda estão na ordem do dia. O exemplo
mais premente refere-se às coorporações econômicas que querem manter
plantações de eucalipto em extensas APP’s de topo de morro, visando evitar
prejuízos em seus processos de Certificação Ambiental. O que impressiona é
que estas áreas estão em situação irregular há décadas.
As tendências atuais do desmonte de sistemas públicos de gestão ambiental,
via inanição estrutural e fragilidade a pressões têm que ser revertidas a
todo custo. Projetos e intervenções no meio ambiente não podem ser avaliados
somente pela ótica pontual, superficial e quantitativa, por meio de práticas
temerárias do tipo tentativa e erro, empurrados por achismos ou
deixismos arbitrários, sem critérios ou com critérios inadequados ou
subjetivos. O preço a pagar é muito alto. É preciso contar também com
avaliações qualitativas e com a visão de conjunto, em escalas variadas, para
não sermos surpreendidos por efeitos cumulativos nefastos.
Não há como aceitar ou emendar o texto de Resolução do CONAMA proposto com
este nível de equívoco, permissividade e subjetividade. Até mesmo a sua
viabilidade de aplicação e eficácia são insustentáveis nos termos postos. A
suspensão da edição da resolução se impõe como medida indispensável para
permitir que o assunto possa ser reconsiderado e avaliado de forma profunda
e responsável, como o assunto requer, uma vez que o que está em jogo são
áreas protegidas por Lei, importantes demais para serem tratadas deste modo.
A Resolução CONAMA parece finalmente ter um grande mérito: provocar a
reflexão da sociedade sobre nossos meios operacionais para a implementação
da gestão ambiental no Brasil. É o momento de refletir, avaliar e buscar
soluções para o fortalecimento e capacitação do SISNAMA.
Enquanto isso, nossa responsabilidade, enquanto sociedade, é de não permitir
que se coloque a gilete na mão do macaco... mesmo que tentem pintá-la de
verde!
*Carlos Bocuhy é Presidente do PROAM – Instituto Brasileiro de Proteção
Ambiental - e Conselheiro do CONSEMA - Conselho Estadual do Meio Ambiente de
São Paulo. (fonte: Ambiente Brasil 06/07)