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2005-07-06
O secretário de Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia, Jorge Khoury, está na linha de frente no combate ao projeto de transposição do Rio São Francisco, apresentado pelo governo federal. Ele acaba de ser eleito presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco, tendo como vice o secretário de Meio Ambiente de Minas Gerais, José Carlos Carvalho, por 53 dos 60 membros titulares da entidade. Baiano de Juazeiro, nascido às margens do Velho Chico, Khoury é intransigente na defesa da revitalização do rio, que agoniza há anos com o lançamento de esgotos sem tratamento, o assoreamento e a derrubada de matas ciliares. Nesta entrevista em sua terra natal, o presidente do CBHSF aponta falhas de avaliação no projeto, critica a postura do governo e acusa a obra de ser pensada para priorizar grandes projetos de agro negócio.

Correio da Bahia - A transposição é um tema antigo, e chegou a ser considerada ainda nos tempos do império, assim como o debate em torno de seus riscos e custos. Na opinião do senhor, ela representa riscos pra quem e em que escala?

Jorge Khoury - Eu entendo que o fato de ser uma proposta antiga, e que até agora teve dificuldade de se realizar, seja o maior demonstrativo de que na forma como se apresenta não muito diferente do que aconteceu nos governos Itamar Franco e Fernando Henrique, o projeto não responde aos questionamentos com relação a aspectos ambientais, hidrológicos, sociais e econômicos. Na situação em que está o país pode investir R$4,5 bilhões em um projeto que não traz respostas convincentes? Diz-se que o projeto vai atender à população difusa do semi-árido do Nordeste Setentrional, mas o próprio Banco Mundial, que tem financiado projetos de recursos hídricos do Ceará à Bahia, se recusa a financiar a transposição, entendendo que ela não atende ao objetivo social a que se propõe. Sob o ponto de vista ambiental, só se mandou para o Ibama o estudo dos impactos nos eixos a serem implantados, e não das áreas onde vai ser retirada a água. Ou seja, o órgão só analisou o que vai acontecer na área beneficiada, o que todo o mundo questiona.

CB - Em pronunciamento oficial em rede nacional de TV, no último dia 23 de junho, o presidente Lula voltou a dizer que a transposição é uma obra contra a indústria da seca.

JK - Ele classificava o mesmo projeto dos governos anteriores de eleitoreiro e para atender a empreiteiros. Isso foi dito na Câmara Federal pelo deputado João Fortes, de Sergipe, que é ex-PT, durante o depoimento do governador Paulo Souto na Comissão Especial do Rio São Francisco. No governo Itamar Franco, o ministro Aloísio Alves tinha interesse direto na obra. Depois, no governo Fernando Henrique, o ministro Fernando Bezerra também tinha interesse direto político. Agora, no governo Lula, quando ele colocou o vice-presidente José Alencar para tocar o projeto, eu até imaginei que fosse tomar uma outra envergadura, refletir o interesse nacional, mas na verdade, na hora da execução, tudo ficou com o ministro Ciro Gomes, que é do Ceará, e tem interesse direto. Então, por tudo isso, acredito que não é por aí que vai se acabar com a seca, até porque a seca é um fenômeno da natureza e só podemos tentar encontrar os melhores meios de conviver com ela.

CB - O Ministério da Integração diz que a vazão de 1% não vai prejudicar os usuários e nem afetar as condições hídricas e ambientais da bacia. O senhor concorda?

JK - Realmente, se formos retirar 26m3 por segundo, que é a vazão mínima, a partir de Sobradinho, que tem regularizada uma vazão de 2000m3/s, dá mais ou menos 1%. Mas se considerarmos o quanto já vem sendo tirado do São Francisco desde Minas, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe, dá em torno de 91m3, e isso é um dado da Agência Nacional de Águas (ANA). Então, essa nova retirada dá quase 30% do que já sai do rio hoje. Outra questão: 26m3/s é a vazão mínima; fala-se em 65m3/s de vazão média e em 127m3/s de vazão máxima, o que só aconteceria quando Sobradinho estivesse vertendo água. Os dados históricos da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) dizem que Sobradinho só transborda quatro em cada dez anos. Isso significa dizer que a obra só vai funcionar em sua plenitude 40% do tempo.

CB - O governo federal tem um projeto de distribuição de água através de canais, para fazer do Vale do Salitre, em Juazeiro, um perímetro irrigado. Por que está parado?

JK - O grande Projeto Salitre é para beneficiar 30 mil hectares nas melhores áreas agrícolas do município. O governo federal, ainda na era Fernando Henrique, lançou um edital para a implementação do perímetro nos primeiros cinco mil hectares. Nem naquele governo e nem no atual essa primeira etapa foi implantada e nenhum recurso foi estipulado pelo governo para a obra nos orçamentos de 2004 e 2005. Nem para o Projeto Salitre e nem para o Projeto Baixio de Irecê, entre os municípios de Xique-Xique e Sento Sé, que contemplaria 60 mil hectares. Estes projetos estão parados porque não têm recursos. E vai ter recurso para fazer transposição...

CB - Guardadas as proporções, tecnicamente os projetos são semelhantes?

JK - O Salitre e o Baixio de Irecê são projetos de irrigação. O da transposição se resume em dois grandes canais - um chamado eixo norte, e outro chamado eixo leste. E mais de 80% dessa água que vai pro eixo-norte, é para projetos de irrigação no Ceará e de criação de camarão em cativeiro no Rio Grande do Norte. Isso está no estudo de impacto ambiental do próprio Ibama. Menos de 20% é para abastecimento humano e dessedentização animal. Já o eixo leste, cujo valor do investimento é praticamente um terço do eixo norte, esse sim, 80% é para uso humano. É um eixo que poderia ser conversado com o presidente. O próprio governador Paulo Souto quando esteve no programa Roda Viva (TV Cultura) chegou a dizer isso. Todo grande projeto começa por um módulo, e esse poderia ser o primeiro módulo, porque realmente a região de Caruaru (PE) e Campina Grande (PB) tem um déficit hídrico muito grande, e não tem alternativas muito viáveis. Mas o Ceará tem armazenados mais de 17 bilhões de metros cúbicos de água em açudes (50% do lago de Sobradinho), trabalho financiado pelo Banco Mundial. E deste total, o estado só aproveita 25%; os outros 75% podem, perfeitamente, atender a seus interesses. Se juntar esses 17 bilhões de metros cúbicos com o restante que o Nordeste Setentrional tem armazenado, dá em torno de 30 bilhões de metros cúbicos. Então, o problema lá não é de água, é de distribuição. E o governo federal diz que vai levar água, mas que os estados é que vão distribuir. Os estados têm condição de arcar com esse custo?

CB - Não é difícil encontrar problemas de distribuição na própria bacia do São Francisco. A dois, três quilômetros do rio, tem gente passando sede...

JK - Se o simples fato de ter uma calha com água - que o Rio São Francisco pode ser considerado assim - representasse progresso e desenvolvimento, a nossa bacia seria uma área próspera, de pessoas ricas. E na verdade, um dos mais baixos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil está na Bacia do São Francisco. É onde falta água para o abastecimento humano, onde faltam condições de drenar os esgotos das cidades, vilas e povoados, onde os cuidados com o rio não ocorrem. Por isso mesmo, não faz sentido levar água para outro lugar que tem alternativas locais. Os recursos poderiam vir, em escala bem menor, para a revitalização do rio, de suas matas ciliares, recuperação das cabeceiras de seus afluentes, desassoreamento, e criação de condições para o esgotamento. Com o rio revigorado, com o São Francisco tendo uma outra condição hidrológica, pode-se até pensar em atender uma ou outra região. Agora, o que você não pode é tirar sangue de um paciente anêmico para dar a um paciente que precisa de uma cirurgia.

CB - Segundo o governo federal, o rio tem problemas mas não está morrendo, porque continua a receber a mesma quantidade de chuvas e a manter o suprimento de energia sem alterações há mais de duas décadas.

JK - É uma meia verdade. Não tem três anos que nós vimos aí, por falta de água no Rio São Francisco, a Chesf instituir um programa de racionamento de energia. Houve uma enxurrada de recursos para financiar as unidades termoelétricas porque, ou se faziam as termoelétricas ou corríamos o risco de apagão. E isso não é coisa do outro século não, foi o que, inclusive, motivou Fernando Henrique a sustar o projeto de transposição. Então, nós vivemos agora um momento de bons períodos de chuva, mas segundo os estudiosos dos ciclos históricos, devemos estar nos aproximando de uma grande estiagem, até por conta dos últimos dois anos com período chuvoso muito rico. A afirmação do governo não condiz com a realidade.

CB - O senhor acaba de ser eleito presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco. De que maneira o governo federal encara a opinião do comitê, e qual o nível de autonomia desse colégio diante das decisões do governo?

JK - Os comitês de bacias hidrográficas foram criados pela lei nacional 9433, juntamente com a ANA, como órgãos gestores das bacias. O Comitê da Bacia do São Francisco definiu que a transposição para outras bacias, no capítulo intitulado Água para usos externos, poderia acontecer desde que para consumo humano e dessedização animal, e só. Em caso de outro uso, a prioridade é da bacia. O governo federal perdeu na 1ª instância e recorreu à 2ª instância, que é o Conselho Nacional de Recursos Hídricos. Lá, a gestão não é partilhada, e mais de 50% dos votos são do governo federal. Infelizmente, projetos muito menores demandam câmaras técnicas, discussões exaustivas e só depois de tudo isso, é que podem ser votados. No caso do projeto de transposição, eu diria que não foi nem discutido em plenária, e que foi votado de maneira praticamente cega. Com isso, logicamente, o comitê ficou alijado, mas vem trabalhando pra mostrar à sociedade o quão descabido é o projeto neste momento.

CB - Mais de 120 empresas já compraram o edital de licitação das obras do projeto, e as interessadas têm até 14 de julho para entregar as propostas. O início está previsto ainda para 2005. O senhor acredita que exista articulação capaz de barrar a execução do projeto?

JK - Na verdade este ano inteiro foi se protelando o que se pôde protelar. Audiências públicas frustradas, que não ocorreram mas que o governo deu como realizadas, ações na Justiça que, quando chegam em Brasília, são minimizadas... Mesmo assim, uma série de órgãos está se movimentando. Tem o Fórum Permanente de Defesa do São Francisco, a Frente contra a Transposição do São Francisco, a CIB (Comissão Interinstitucional das assembléias legislativas dos estados da Bacia), o Ministério Público, a OAB, o Crea e outros organismos atuando no campo jurídico também, e que entendem que esse projeto não deve ir à frente por não atender ao interesse público. Evidente que os estados estão se manifestando - os governadores Aécio Neves (MG), Paulo Souto (BA) e João Alves (SE) se reuniram no último dia 15 de junho em Belo Horizonte - no sentido de mostrar ao presidente da República o equívoco, e que ele deve abrir o diálogo, e conversar para adequar e ajustar os procedimentos. Se não, podemos cair em mais uma obra faraônica como tantas outras que hoje fazem parte daquela lista de obras inacabadas do TCU (Tribunal de Contas da União), como a Transamazônica, a Ferrovia Norte-Sul e tantas outras. (Correio da Bahia, 05/07)

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